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Lindener Pareto

Professor e historiador. Mestre e Doutor pela USP. Professor de História Contemporânea e Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). É apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação científica de História e historiografia nos canais do ICL.

Viver e sofrer em SP

"E o que é que a gente tem a fazer neste mundo, senão rir das fragilidades humanas, das bobices da terra, dos frivolismos da vida?"
11/06/2024 | 13h42

Quem vive em SP, entre centros e periferias, e pertence às várias camadas precarizadas da classe trabalhadora, sabe que viver de aluguel não é nada fácil. Encontrar um apartamento minimamente conservado e de um tamanho digno é tarefa nada fácil numa das metrópoles mais espoliadas pela especulação imobiliária no mundo.

Pois é, por dever de ofício, o historiador aqui há de lembrar ao público leitor que trabalhar, estudar, viver, comer e pagar aluguel em São Paulo sempre foi tarefa árdua e sofrente. Por isso recupero aqui uma crônica dos anos 1940, que parece — dadas as devidas proporções — servir bem aos dias de hoje.

Em setembro de 1940, quando São Paulo já era uma imensa metrópole e contava com mais de 1 milhão e 300 mil habitantes, o jornalista, cronista e escritor João Lellis Vieira (1880–1949), um dos inventores do popularíssimo personagem Juca Pato, publicava uma de suas apuradas crônicas no tradicional Correio Paulistano. Transcrevo aqui a mesma na íntegra, para deleite e desespero da gente trabalhadora paulistana.

Corra o barco…

Estamos convencidos, hoje mais que nunca: quem se propuzer a endireitar o mundo, morre louco, a família não sabe, os jornaes boycottam e o “cabra” entra bonito na galeria dos anoynimos. O melhor é a gente dansar conforme o toque da gaita, e a vida, que deslise no asfhalto da indifferença trololó pão duro. Não adeanta dizer: “seu” Fulano, deixe de besteira, não se envaideça com a casa que você construiu a prestações, não esteja a falar a toda hora na sua “casa própria”, porque, de repente, quasi sempre, 99 ½ % desse negocio a Companhia fica com o predio depois de ter recebido 8 ou 10 annos de amortização e juro…E você acaba indo morar em cochicholo de aluguel, numa bruta difficuldade p’ra arranjar fiador.

“Seu” Fulano, não se metta a sebo, enfeitando-se com pennas de pavão, porque não falta por ahi quem diga que você é um idiota…

Ruy, o grande Ruy (Barbosa), recebeu certa vez uma carta anonyma dizendo que ele, a “Agua de Haya”, podia ser tudo quanto diziam da sua genialidade, mas para o signatário da missiva, Ruy era só garganta, e nunca fôra nem era o que pensava ser, um gênio! Por isso não adeantam, realmente, preoccupações de vaidade. Há poucos dias passava pela rua 15 de novembro, um cavalheiro sem perna, isto é, um moço com perna de páo. E vinha muito satisfeito na sua elegância pernil de caviúna, não só porque a perna era novinha em folha, como tambem porque se prestava á melhor articulação no andar.

Pois os senhores sabem o que aconteceu?

Um pandego, encostado no predio Michel, fez o perna de páo parar e lhe disse:

– Moço você me deixa dar uma volta “nisso”?

Vejam bem o mundo: Leva uma creatura a estudar toda a sua mocidade, forma-se em direito, medicina, engenharia, pharmacia ou dentista, e entretanto os rabulas, os curandeiros, os gamelas, os praticos e os licenciados, quasi sempre fazem mais negocio…

Conta-se que em Paris, um medico de notavel competência, verificando que a clinica não ia nem a mão de Deus Padre, mudou-se para o interior, onde tentaria montar consultorio. Continuou o azar. Sala ás moscas. Mas o curandeiro da cidade estava “assim” de clientes. Resolveu o medico tirar a placa, raspar a barba, vestir-se á provinciana, e noutra rua dava consultas como mesinheiro, operando casos difíceis. A fama correu por toda a cidade e municipio, de que o curandeiro novo era um bicho! E a freguezia do outro desaparecia, indo toda ella para o colega. Houve denuncia contra ele. Processo por exercicio illegal da medicina. Trabalho politico do prejudicado, que se viu vencido. Inquirições. Testemunhas. Provas. Tribunal. Julgamento. Juizes de facto. Promotor. Accusação, toda a idummentaria da Justiça. Na horinha agazota do curandeiro ser condenado, elle pede a palavra:

– Senhor presidente: Eu sempre suppuz que a vida, os homens, as academias, os diplomas, o saber, toda essa embromina que constitui a illusão humana, fosse uma coisa seria…mas veja v. exc. o meu caso: Estou aqui processado e em vias de condenação por exercer a medicina sem diploma…(o réo pigarreou ironicamente deante do augusto tribunal) e continuou: Tive de usar desse recurso para viver da minha profissão, visto como, sendo medico (espanto geral na sala!), meu consultório se conservava limpo de doentes…Appellei para o curandeirismo no interior e so ahi pude aplicar meu conhecimentos scientificos, academicamente conquistados, porque arranjei clientes. Estou convencido, portanto, sr. ministro, de que a vida é muito divertida, mórmente em seus aspectos mais sérios como este…

Termino aqui a minha defesa, exhibindo ao tribunal o meu diploma de medico pela Faculdade de Paris…

E o que é que a gente tem a fazer neste mundo, senão rir das fragilidades humanas, das bobices da terra, dos frivolismos da vida? O melhor é olhar p’ra cima, aguardando na eternidade da alma o premio do bem que aqui se fizer. E isto, porque a terra, o homem e seus derivados, são simplesmente uns pandegos.

(João Lellis Vieira, Correio Paulistano, 17/09/1940)

 

Pois é, cara leitora, caro leitor… como costumo dizer a vocês… nem tudo é tão novo quanto parece e tudo parece mudar, para que tudo continue no seu devido lugar…

Anhangabaú nos anos 1960, com destaque para o Viaduto Santa Ifigênia e os edifícios Altino Arantes, Banco do Brasil e Martinelli. Coleção Werner Haberkorn, Museu Paulista (Ipiranga). Foto: Domínio Público.

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