Nota do editor:
A publicação do primeiro capítulo do livro de Alexei Navalny foi a primeira de uma série de publicações de trechos de livros que o portal irá fazer daqui para a frente. O conteúdo foi oferecido pela Editora Rocco ao site, que ao publicá-lo fez o alerta na apresentação dizendo que Navalny era um nacionalista, mas que o testemunho dele faz parte da história.
Diante da reação de leitores do portal, como editor-chefe, devo esclarecer que não há nenhuma afinidade ideológica do autor com a nossa linha editorial, como a verificação de nosso noticiário cotidiano pode comprovar: somos progressistas.
Observando reações tão fortes, está claro que houve um erro de avaliação de minha parte, e por isso peço desculpas aos leitores.
Nosso compromisso em ajudar a construir uma sociedade democrática, progressista, antifascista continua intacto, como escrevi no editorial do primeiro dia em que o site foi ao ar.
Assinado:
Chico Alves
Foi depois do envenenamento quase fatal ocorrido em 2020 que Alexei Navalny começou a escrever o livro “Patriota”. Nele, o autor relembra a história do colapso soviético e a abertura da Rússia para o sistema capitalista, o surgimento de uma nova classe de oligarcas sedentos por poder, o governo e a derrocada de um fraco Bóris Yeltsin, assim como a ascensão de um líder autoritário, a quem se oporia até o fim de seus dias: Vladimir Putin.
Navalny acabou morrendo na prisão em fevereiro de 2024 e a obra está sendo lançada agora no Brasil pela Editora Rocco. O ICL Notícias publica com exclusividade trecho do primeiro capítulo.
No livro, o autor conta os caminhos de sua carreira política, os muitos atentados que sofreu e a campanha que travou contra um regime cada vez mais violento. Como seria de se esperar, Navalny constroi uma narrativa em que se coloca no papel de herói, algo que é sempre questionável.
Mesmo entre a esquerda russa ele não era uma unanimidade, por conta do discurso nacionalista cuja inconveniência política todos os democratas conhecem.
No cenário mundial, em que os governantes autoritários têm ganhado cada vez mais terreno, conhecer de perto os desmandos de Putin, um dos mais antigos exemplares dessa espécie, é algo praticamente indispensável.
Além disso, o livro tem relato de seus últimos anos, passados na prisão mais brutal da Terra.
A seguir, o leitor do portal ICL Notícias poderá conhecer, com exclusividade, trceho do primeiro capítulo do livro “Patriota”, de Alexei Navalny. Boa leitura.
Trecho do livro “Patriota”, de Alexei Navalny (Editora Rocco):
Capítulo 1
Morrer, na verdade, não doeu. Se não estivesse dando meu último suspiro, eu jamais teria me estendido no chão do banheiro de um avião. Como podem imaginar, não era lá muito limpo.
A viagem era de Moscou a Tomsk, na Sibéria, e eu estava muito satisfeito. Eleições regionais aconteceriam dentro de duas semanas em várias cidades da Sibéria, e meus companheiros da Fundação Anticorrupção (FA) e eu estávamos decididos a infligir uma derrota ao partido do governo, Rússia Unida. Seria uma mensagem importante: mesmo depois de vinte anos no poder, Vladimir Putin não era onipotente nem sequer apreciado naquela região da Rússia — embora muita gente por lá assistisse aos apresentadores e comentaristas de jornais da tv entoando loas ao líder do país 24 horas por dia, sete dias na semana.
Há vários anos eu era impedido de concorrer a cargos públicos. O Estado não reconhecia o partido político liderado por mim e recentemente se recusara a registrá-lo pela nona vez em oito anos. Por algum motivo
nós sempre deixávamos de “preencher os formulários corretamente”. Nas raras vezes em que o nome de um dos nossos candidatos chegava a constar da cédula, os pretextos mais absurdos eram invocados para
considerá-lo inelegível. O desafio enfrentado pela nossa rede — que no auge de suas atividades chegou a ter oitenta escritórios regionais, sendo uma das maiores do país e sob constante ataque do Estado — exigia,
portanto, uma capacidade esquizofrênica de vencer eleições das quais havíamos sido proibidos de participar.
No nosso país, onde, durante mais de duas décadas, o regime autoritário teve como prioridade inculcar nos eleitores a crença de que eles não têm poder nenhum e não podem mudar nada, nunca foi fácil convencer
as pessoas a saírem de casa para votar. Mas a verdade é que a renda da população vinha caindo há sete anos consecutivos. Se pelo menos um terço dos que estavam fartos do regime pudessem ser levados até as cabines de votação, nem um único candidato de Putin teria chance. Mas como fazer as pessoas votarem? Pela persuasão? Oferecendo recompensas? Optamos por deixá-las realmente putas.
Há vários anos meus companheiros e eu vínhamos filmando uma interminável novela sobre a corrupção na Rússia. Nos últimos tempos, quase todo episódio registrava três a cinco milhões de acessos no YouTube. Conhecendo a realidade russa, desde o início descartamos qualquer abordagem jornalística escorada em ressalvas cheias de dedos — “alegadamente”, “possível”, “suposto” — como nossos assessores jurídicos teriam preferido. Um ladrão era chamado de ladrão, e corrupção, de corrupção. Se alguém tinha uma propriedade gigantesca, não nos limitávamos a revelar sua existência, mas fazíamos vídeos com drones e mostrávamos a propriedade em todo o seu esplendor. Também descobríamos o valor e o cotejávamos com a renda modesta declarada oficialmente pelo burocrata que a possuía.
É possível teorizar infindavelmente sobre corrupção, mas preferi uma abordagem mais direta — como examinar as fotografias do casamento do secretário de imprensa do presidente e, no momento em que ele beija a noiva, focar o relógio espetacular que aparece por baixo da sua manga. Obtivemos junto a um fornecedor suíço um certificado de que o relógio custa 620 mil dólares e o mostramos aos cidadãos do nosso país, onde uma a cada cinco pessoas vive abaixo da linha da pobreza — 160 dólares por mês, o que seria mais apropriadamente considerado como a linha da miséria. Tendo devidamente indignado o público com o descaramento da corrupção no mundo oficial, o passo seguinte é encaminhá-lo para um website que lista as pessoas em quem eles devem votar se não quiserem continuar sustentando a vida de luxo dos burocratas.
Funcionou.
Ao mesmo tempo divertimos e enfurecemos nosso público com imagens da vida dos “humildes patriotas que governam nossa terra”, explicando como funcionam os mecanismos da corrupção e propondo iniciativas concretas para causar o máximo de dano ao sistema de Putin. Material não nos faltava.
Olhando pela janela do avião, eu pensava que a essa altura tínhamos o bastante para carregar no YouTube dois ou três vídeos sobre a corrupção nas cidades da Sibéria. Eles seriam vistos por milhões de pessoas, centenas de milhares delas vivendo em Novosibirsk e Tomsk. Essas pessoas não só os veriam como ficariam revoltadas o suficiente para atender ao nosso chamado para comparecerem às urnas e votarem contra os candidatos do partido de Putin.
Um sorriso irônico veio a mim quando me lembrei das maneiras como as autoridades oficiais, que sabiam o que estávamos preparando, tinham tentado boicotar nosso plano. Para funcionários de todos os níveis, minhas viagens pela Rússia eram como uma capa vermelha agitada diante de um touro. Eles encaravam minhas visitas como uma ameaça e inventavam infindáveis acusações judiciais para entravar meus deslocamentos pelo país, pois um réu não pode se afastar da região de sua residência. Desde 2012, passei um ano em prisão domiciliar e vários outros proibido de sair de Moscou.
Dois meses antes, outra ridícula ação judicial, instigada pelo canal de TV Russia Today — controlado pelo Estado —, fora movida contra mim, sob a acusação de “difamar um veterano de guerra”, acompanhada de mais uma ordem me proibindo de sair de Moscou. Considerando ilegal a restrição, eu a ignorei e parti para mais essa viagem de investigação à Sibéria. Meus colegas e eu estávamos levando para casa centenas de gigabytes de imagens, inclusive entrevistas com a oposição local e um vídeo com imagens da resi-
dência de um deputado pró-governo numa ilha particular. O material fora criptografado e enviado para um servidor, pronto para edição.
Eu esperava derrotar o partido da situação em Tomsk e pelo menos lhe dar uma dor de cabeça em Novosibirsk. Dava satisfação pensar que, apesar dos crescentes atos de intimidação — nos dois últimos anos houvera mais de trezentas batidas nos nossos escritórios, homens com máscaras pretas serrando portas, revirando tudo, confiscando telefones e computadores —, só tínhamos nos fortalecido. Naturalmente, quanto mais agradável para mim, mais desagradável para o Kremlin e para o próprio Putin. Deve ter sido isso que o levou a dar a ordem de “iniciar medidas ativas”. Tradicionalmente usada por funcionários da antiga KGB, essa frase continua a ser usada pelo atual FSB* quando escrevem memórias. Livre-se da pessoa e você se livra do problema.
* KGB, Comitê de Segurança do Estado, a temida e brutal polícia secreta da União Soviética, criada em 1954. Com o fim da urss, foi substituída, com a fundação da Federação Russa, em 1991, pelo fsb, o Serviço Federal de Segurança (N. do T.).
Na vida cotidiana, coisas terríveis podem acontecer a qualquer um. O sujeito pode ser devorado por um tigre. Alguém de uma tribo hostil pode atacá-lo, pelas costas, com uma lança. Ao tentar demonstrar suas habilida-
des culinárias ao parceiro ou parceira, você pode amputar um dedo sem querer, ou perder a perna ao usar uma motosserra na garagem, caso não preste atenção. Um tijolo pode cair na cabeça de uma pessoa ou alguém pode despencar de uma janela. Para não falar dos habituais ataques do coração e outras tragédias angustiantes, mas pelas quais normalmente se espera.
Poucos leitores, espero, terão sido atacados por uma lança ou caído da janela, mas é fácil imaginar como seria. Nossa experiência de vida e a observação dos outros nos permitem conceber vividamente tais sensações. Ou pelo menos era o que eu pensava antes de entrar naquele avião. (…)
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