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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

Colunistas ICL

O ano Bob Malcolm Marley X

100 anos de Malcolm X, 80 de Bob Marley
02/01/2025 | 05h00

Você teria um segundo para a palavra de Malcolm X? Então lá vai: “Não se pode separar paz de liberdade porque ninguém consegue estar em paz a menos que tenha sua liberdade” ou “As únicas pessoas que realmente mudaram a história foram as que mudaram o pensamento dos homens a respeito de si mesmos.”

Fique mais um pouco para pensar com Bob Marley: “Libertem-se da escravidão mental, ninguém além de nós mesmos pode libertar nossas mentes” ou “Até que os direitos humanos básicos sejam igualmente garantidos a todos, sem discriminação de raça, isso é guerra”.

Teremos em 2025 duas efemérides inescapáveis, o centenário de Malcolm X (19 de maio de 1925) e o octogenário de Bob Marley (6 de fevereiro de 1945). Um pertencimento negro profundo liga esses dois. Ambos foram criados por suas mães e, em algum momento das vidas sofridas, elas foram consideradas loucas; a Jamaica aparece nas duas histórias; tanto um quanto outro foram ícones mundiais do século 20, grandes pensadores e defensores dos direitos humanos. Quando Bob nasceu, Malcolm estava com 20 anos. Quando Malcolm morreu, Bob contava 20 anos. Tanto um quanto outro possuem relações interraciais na família que lhes deram um tom mais claro de pele negra. Marley era filho de um militar britânico branco. O avô materno de X era um homem branco.

O pai de Malcolm (nascido Malcolm Little), Earl Little, foi assassinado por supremacistas brancos, pois fazia parte da Associação Universal para o Progresso Negro – UNIA, fundada pelo jamaicano Marcus Garvey, na capital Kingston em 1914 e que se espalhou pelo mundo, pois este era um dos objetivos de Garvey, ou seja, unir “todas as pessoas de ascendência africana do mundo”. A versão oficial diz que Earl foi atropelado pelo bonde e que se suicidou, mas a violência racial da época aponta para a Black Legion, um grupo terrorista e supremacista como a Ku Klux Kan. A mãe de Malcolm, Louise, criando sozinha oito filhos em enormes dificuldades, apresentou transtornos mentais e foi internada. Os irmãos foram separados e enviados para instituições.

O pai de Bob abandonou a ele e sua mãe, Cedella. Quando o menino contava cinco anos, ele enviou uma carta convencendo-a a enviar o filho para a capital onde poderia ter uma educação melhor convivendo com a família branca, mas o enviou para um local de órfãos. Cedella só conseguiu reencontrar o filho em 1951. Casada outra vez, em 1956 moveu um processo contra o marido acusando-o de bigamia e foi sentenciada como insana.

Não há como resumir neste espaço as vidas tão relevantes, ricas, contraditórias e complexas destas pessoas que forjaram conceitos, influenciaram pensamentos, teorias, vertentes artísticas, inflamaram massas. Trouxe alguns dados biográficos que se tocam porque, não por acaso, há neles uma dor profunda, marcas irrecuperáveis do flagelo de um povo e de um movimento que extrapola fronteiras.

Malcolm X não pode ser analisado de forma anacrônica por nós, humanos do século 21, na distância de tanta água rolada nestes 100 anos. Fazemos uma pálida ideia dos momentos históricos que forjaram o homem que teve pelas mãos brancas, um pai com o corpo partido ao meio e a mãe internada como louca . Alguém podado nos anseios mais básicos, criado nas ruas, marginalizado, ex-presidiário e que viveu sob o racismo institucional dos chamados “Black Codes” ou “Jim Crow Laws”, leis estaduais que impediam, entre outras coisas, o casamento inter-racial e a livre reunião, e que dificultavam ao extremo a participação de negros em atividades especializadas, restringindo-os ao trabalho doméstico ou a agricultura.

Alguém que adotou o X como sobrenome para assumir ele mesmo o controle de sua história e mergulhou dentro da cadeia nos livros e no aprendizado para se libertar de uma sombra, que brilhantemente Denzel Washington interpretou na cine biografia baseada no livro “Autobriografia de Malcolm X”, escrita por Paul Gray em colaboração com ninguém menos que o escritor Alex Haley, considerado por muitos um dos 10 livros de não ficção mais importantes do século passado.

O que não morre é sua oratória contundente, sua coragem em expor as chagas de uma sociedade brutal, aniquiladora de possibilidades de vida para pessoas como ele, como nós… sim, como nós. No próximo dia 20 um herdeiro dos supremacistas subirá outra vez ao poder naquela nação, tendo como promessa de campanha reeditar numa versão 2.1/2025 toda a bestial ferocidade excludente. Malcolm nunca esteve tão atual e, em alguma medida, tão certo.

Quando Malcolm morreu assassinado em 1965, o jovem Marley ascendia vertiginosamente e sobre ele, igualmente, não há como analisar sua fé e suas escolhas de maneira rápida sem ser irresponsável. Bob foi o primeiro pop star mundial não americano, popularizou no planeta um estilo, uma filosofia, um jeito de dançar, cantar, pensar. Assim como o norte americano com sobrenome X, a coragem de suas letras em falar de amor em tempos de guerra, em igualdade e liberdade fazem de Marley mais que camiseta, mais que uma das marcas mais consumidas do planeta, mais que os dreads locks e o cigarro de marijuana. Bob Marley tem um recado sério, muito sério a dar ao mundo. Colonialismo, panafricanismo, direitos humanos, desigualdade social, ideias do movimento Rastafári, coragem em ser o que se é, valorização das origens… Tudo isso faz dele e de sua obra atemporais.

Malcolm se foi aos 40. Bob, aos 36. Tão cedo, tão jovens… Em 2025 vamos celebrar lendas e por falar em lenda, comecemos o ano com o disco Legend, coletânea lançada em 1984, três anos após a morte do artista jamaicano, em 1981, e que é o álbum de reggae mais vendido da história. Está lá, na música “Get up, Stend up” :

“Get up, stand up, don’t give up the fight (Levante, resista, não desista da luta!)

 

 

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