Cada brasileiro tem seu motivo para ser contra a anistia, em debate no Congresso, ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Tentativa de golpe, desvio de joias das Arábias, gabinete do ódio, usina de fake news, preguiça de governar, ineficiência administrativa…
Ao ingerir a minha pílula diária de memoriol, escolho os crimes durante a pandemia de Covid-19 como a razão maior para rejeitar qualquer papinho sobre anistiar o ex-capitão.
Sigo no embalo e no protesto do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que acaba de entregar uma representação criminal à Procuradoria-Geral da República. É mais uma tentativa de responsabilizar Bolsonaro pelo festival de omissões, erros e mortes em 2020 e 21.
Nesta mesma semana — o efeito memoriol não me deixa esquecer! —, faz aniversário de três anos da entrega do relatório da CPI da Pandemia. A PGR não moveu uma palha até agora. Nem sob Bolsonaro, nem sob Lula.
Seguiremos lembrando.
O ex-presidente teria sido apenas cômico e folclórico se as suas bizarrices não representassem consequências desastrosas, muitas vezes até mortais, na vida dos brasileiros.
Em depoimento à CPI, o epidemiologista Pedro Hallal revelou, baseado em estudos e pesquisas, que pelo menos 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas caso o Brasil tivesse adotado medidas mais rígidas de controle da pandemia e imunização mais rápida, ao contrário das orientações espalhadas por Bolsonaro e sua equipe.
Taí a justificativa do título desse texto: 400 mil motivos para não anistiar Jair Bolsonaro.
Ao desempenhar o papel de garoto propaganda de hidroxicloroquina e ivermectina — comprovadamente ineficazes no tratamento de Covid —, o presidente cometeu o crime de charlatanismo, uma das principais acusações da CPI do Senado.
Nas suas “lives” do Facebook e cerimônias oficiais, Bolsonaro exibia as caixas dos remédios e receitava o uso aos brasileiros. Uma cena, em especial, marcou essa obsessão presidencial: ele mostrou as embalagens dos medicamentos para duas emas no gramado do Palácio da Alvorada — as aves saíram correndo, em desespero.
Ao longo de 2020, Bolsonaro sabotou, de forma metódica, as tentativas dos governos estaduais e municipais de combaterem a pandemia, sempre se escorando em uma suposta “imunidade de rebanho” que seria alcançada graças à infecção generalizada da população. Quando começou a ser cobrado pelo número de mortes, ainda no segundo mês depois da chegada do coronavírus ao Brasil, respondeu: “Eu não sou coveiro, tá certo?”. Àquela altura, 20 de abril, o número de vítimas era de 2.575.
O festival de falas bizarras seguiu no rastro das mortes. Em novembro, Bolsonaro associou o medo dos brasileiros diante da pandemia à sexualidade: “Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas. Olha que prato cheio para a imprensa. Prato cheio para a urubuzada que está ali atrás. Temos que enfrentar de peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa?”
No mês seguinte, em Porto Seguro, no sul da Bahia, o presidente seguiu na sua cruzada negacionista contra as vacinas. “Eu não vou tomar. Alguns falam que eu estou dando um mau exemplo. Ô, imbecil, ô idiota. Eu já tive o vírus. Eu já tive anticorpos, para que tomar a vacina de novo? E outra coisa que tem que ficar bem clara aqui: lá na Pfizer tá bem claro no contrato ‘nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’, se você virar um jacaré o problema é de você, pô”, disse, em ritmo de desaforo. A frase levou inúmeros brasileiros a se fantasiar do réptil no momento de tomar a vacina nos postos de saúde.
A tentativa de desacreditar as vacinas seria atrelada a uma série de denúncias de corrupção. Segundo a CPI da Covid, o Ministério da Saúde teria postergado a decisão de comprar os imunizantes ao negociar propina com intermediários nos contratos.
Nesse período, o governo ignorou uma série de ofertas da Pfizer para vender sua vacina para o Brasil. A empresa farmacêutica havia encaminhado 56 e-mails às autoridades, perguntando sobre o interesse nas negociações. A administração federal demorou 47 e-mails para dar a primeira resposta, em 9 de novembro de 2020.
Ao mesmo tempo em que ignorava a Pfizer, assessores do governo andavam metidos em uma negociata paralela com um grupo comandado pelo pastor evangélico Amilton Gomes. A empreitada era um golpe por parte de Gomes, que não tinha qualquer contato com a Johnson e a Astrazeneca, farmacêuticas citadas na trama.
Como se não bastasse o rolo na compra dos imunizantes, conforme mostrou a CPI, Bolsonaro associou as vacinas à transmissão do vírus HIV. “Vacinados contra a Covid estão desenvolvendo a síndrome da imunodeficiência adquirida [Aids]”, alardeou na sua live do dia 21 de outubro de 2021, amparado por notícias falsas. “Posso ter problema com a minha live. Não quero que caia a live aqui, quero dar informações”, disse o presidente. Três dias depois, o Facebook e o Instagram retiraram os vídeos mentirosos do ar.
O negacionismo virou uma marca presidencial. Quando a maioria dos brasileiros já havia tomado, mesmo com atraso, as duas doses do imunizante, Bolsonaro ainda esperneava, em março de 2022, em um evento no Palácio do Planalto: “O problema é meu, a vida é minha. ‘Ah, ele não tomou vacina’. Pô, tem gente que quer que eu morra e fica me enchendo o saco para eu tomar vacina. Deixa eu morrer…”.
Um levantamento da agência de checagem “Aos fatos” concluiu que o presidente deu uma média de 6,9 declarações falsas ou distorcidas por cada dia de 2021, o segundo ano da pandemia. O “normal”, desde o início da sua gestão, era um número de 4,3 mentiras ou inverdades a cada 24 horas.
Deixe um comentário