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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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580 anos de Afrobestialização Estrutural

Um ensaio sobre o cansaço
18/04/2024 | 18h00

No mês de agosto deste ano completam-se exatos 580 anos em que o guarda-mor da Torre do Tombo, Gomes Azurara, testemunhou e registrou uma cena emblemática para toda a posteridade.

A população de uma pequena vila do Algarve topou com seis navios que deixaram sair de seus porões uma “carga” com 235 pessoas, todas pretas, para venda, naquele que foi o primeiro leilão de africanos escravizados que se tem notícia em Portugal.

Tomando este marco temporal, o desconhecimento sobre o continente onde se originou a humanidade e muito da ciência, surrupiada por outras partes do planeta, foi só ladeira abaixo.

Conscientemente incentivaram, fomentaram, expandiram e sedimentaram o que poderíamos chamar de “afrobestialização”. E ela se entranhou em tudo, nas estruturas que nos sustentam.

O continente africano — ainda hoje um grande mistério para nós, os que descendem dele —, foi estigmatizado e excluído dos saberes da história planetária.

Todos os seres humanos semelhantes aos vendidos (uma parte significativa para a igreja) neste fatídico dia ao sul de Portugal, receberam o rótulo “negros” e foram enfiados num saco de gatos sem distinção de traços culturais de nações tão diferentes umas das outras quanto são os peixes de um oceano.

Seres sem cultura não possuem história, quem não tem história não é humano, quem não é humano não sente dor como gente sente, não ama ou chora como gente e — para todos os brancos da época e principalmente os padres que compraram os viajantes de 1444 —, não possui alma. Estava assim inventado o racismo e seus derivados macabros.

Então, seis séculos depois…

Seis séculos de sistemática e competente afrobestialização construíram elites planetárias que se acham merecedoras de toda honra e glória. Pessoas que por gerações foram criadas para ter do mundo o tapete vermelho da existência.

Hoje, alguns até acham que indígenas não convidaram ninguém a exterminá-los pela peste e pela espada e gritam “vidas negras importam!”. Dizem tudo isso lindamente desde que fiquem convenientemente nas postagens das redes e não se chegue muito perto.

Quando o contato precisa existir de forma mais intensa e, principalmente, quando existe o risco de dividir ou perder algo para os descendentes daquele pessoal pela primeira vez vendido em 1444, toda a meticulosa afrobestialização secular emerge com força descomunal.

Acontece que o outro lado se mexeu. Brigou, morreu, renasceu, estudou, entendeu todo o processo, criou e recriou. Arte, ciência, conceitos, vida… Uma luta tremenda nem sempre vista, quase nunca valorizada, muitas vezes ridicularizada, criminalizada em muitas ocasiões e, outra vez, sistematicamente apagada. Mas aí…

Em primeira pessoa

Ouvi falar sobre o termo “afrobetização” em algum momento lá atrás, na primeira década deste século em que estamos. Quando o termo ressurgiu na mídia estes dias, eu não conseguia lembrar em qual contexto. Recorri às professoras Fernanda Felisberto, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; e Fabiana Lima, da Universidade Federal do Sul da Bahia. Refresquei a memória.

Foi no contexto das lutas pela implementação da lei 10.639, que determina o ensino da história da África nas escolas e que foi complementada pela 11.645, que inclui também a nossa história indígena. Instrumentos para que o alunato se entenda, se orgulhe da sua história e veja a riqueza de um país diverso e poderoso justamente por isso.

A professora Fabiana deu mais informações: “Essa palavra não é minha. Tive acesso a ela numa oficina no Fórum Social de 2005. Inclusive essa história está na minha tese, que pensou esse neologismo como um conceito mesmo”.

A 10.639 e a 11.645 são ousadas iniciativas para começar a reverter o feitiço de seis séculos produtores de “afrobestialização”, que efetivamente assassinou milhões e escravizou outros milhões. Elas pretendem dar a chance a pessoas em formação de jamais se menosprezarem, de se valorizarem pelo que possuem de mais precioso e, se por ventura se tornarem pessoas públicas, evitarem se verem em rede nacional hostilizando pessoas que são um espelho delas mesmas.

A conversa com minhas amigas professoras acabou sendo um grande desabafo sobre todo o adoecimento de tempos que cooptam lutas, conquistas, trabalhos extensos e que esvaziam de sentido tudo isto jogando no ridículo de redes sociais construções de conhecimentos demais preciosos.

Depois de tanta batalha pelo direito de usar a primeira pessoa para ensinar ao invés de sermos objetos de estudo, terceirizamos a voz não para alguém, mas para um instrumento do capitalismo chamado “marketing”.

A maioria das palavras e expressões que mais nos irritam na atualidade estão ligadas a banalização e ao desgaste naturais que o uso sem consciência do que elas significam provoca.

Um país que tem professores no último degrau de salários do funcionalismo, não quer alfabetizar e engrandecer pelo conhecimento absolutamente ninguém, quanto mais “afrobetizar”.

Finalmente chegamos aqui, após seis séculos de metódica “afrobestialização” usando a “afrobetização” para este mesmo fim, pois não há como afrobetizar quem orgulhosamente afrobestializa há 580 anos.

Não é “reality show” é “show (de horrores) da realidade”

Só para não deixar esquecer que não é sobre isso, mas também é. A celebridade cansou de brincar. Ela apagou o vídeo-arrependimento de seu “racismo estrutural” e optou pelo vídeo-faturamento sobre seu “cancelamento nacional” e instrumentalizando e capitalizando em cima de adivinhem quem?

Mais uma história sobre ego, poder e dinheiro em igual medida.  Pois é, desde 1444 não importa se existe um coração batendo naqueles corpos, desde que o faturamento venha.

Seis séculos… Cansa, mas seguimos.

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