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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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Ficção Brasileira

Resposta a uma leitora do ICL Notícias
14/03/2024 | 05h00

Uma usuária do portal de educação do ICL enviou por e-mail uma questão direcionada a mim, que me fez pensar e creio que este seja um bom espaço para responder.

Contextualizando, na última semana participei de um debate no ICL com Manuela D’Ávila e Márcia Tiburi sobre violência contra a mulher, logo após uma emocionante entrevista de Eduardo Moreira com Maria da Penha. Ela mesma, a que nomeia uma das leis mais importantes para as mulheres brasileiras. Porém, a questão que me chegou foi sobre um tema transversal a este: racismo.

No debate, eu não podia deixar de falar sobre as questões raciais embutidas nas agressões às mulheres, pois os números não mentem. A maioria das agredidas são mulheres negras. Carolina (usaremos um nome fictício) uma mulher com mais de 50 anos, em sua segunda graduação e atuante em um coletivo antirracista da universidade, pediu orientação sobre como auxiliar os jovens que são vítimas de racismo. Ela então escreveu:

“(…) Embora eu tenha bastante idade, também me sinto inexperiente, pois a sociedade não nos deixa aprender, apenas a sobreviver. (…) Tenho disposição de aprender e queremos ajudar aos que necessitam”.

É difícil saber por onde começar, dada a quantidade de coisas dentro destas frases. Vamos pelo “embora eu tenha bastante idade”. O etarismo, esta expressão popularizada para falar do preconceito com a idade, provoca falsas impressões de que a partir de determinado momento na vida tudo se sabe, tudo está resolvido. No tocante às questões raciais, no Brasil, muito já se sabe (por poucos), mas nada está resolvido.

Aqui, devido ao mito da democracia racial que apenas há poucos anos começou a cair por terra, muita gente não se via como negra e, mesmo a maioria das que são inequivocamente negras, jamais pensaram a fundo no quanto as questões étnico-raciais são bombas que estão por trás de todos os grandes dramas nacionais como, por exemplo, o feminicídio. A psiquiatra, psicanalista e acadêmica Neuza Santos Souza escreveu um clássico sobre o tema, o livro “Tornar-se negro”.

Como fui instada a ajudar, aí vai meu primeiro conselho: estudem e leiam não ficção. Além do livro da professora Neuza, existe uma infinidade de títulos, artigos e textos com muita reflexão, legitimidade e seriedade ao alcance de um clique, custando pouquíssimos reais, comprando em e-books ou até mesmo gratuitos. Como diria minha bisavó, quem tem o conhecimento tem o poder. Não existe “bastante idade” que saiba tudo e que também não possa começar a se instruir.

Sobre a segunda sentença, quando ela afirma que a sociedade nos empurra para uma luta tão encarniçada pela sobrevivência que nos impede de pensar e aprender com a jornada da vida, só posso dizer que é a mais pura verdade.  Este cansaço provocado pela briga diária para se manter respirando num país que asfixia, somado ao baixo letramento e conhecimento, faz com que fique fácil cair em armadilhas terríveis que se chamam estereótipos. Aí entramos em cena nós, escritores, roteiristas e criadores de imaginários.

O filme que concorreu ao último Óscar, “Ficção Americana”, baseado no livro do escritor Percival Everett, “Erasure”, traz como protagonista um escritor irritado com os lugares-comuns da ficção focada em pessoas negras, que decide criar sob pseudônimo uma obra toda feita destes mesmos estereótipos. O filme fala sobre a sociedade estadunidense, mas também sobre a nossa, que nos olha limitadamente, enquanto nossa vida, nossas questões e possibilidades são infinitas. No entanto, a “ficção brasileira” dá conta de deslocar estas personagens dos locais habituados a colocá-las.

Outra vez, como fui provocada a auxiliar, aí vai o segundo conselho: estudem e leiam ficção de escritores e escritoras nacionais. Um debate em torno de histórias com rostos, trajetórias e humanidade, pode fazer a mente sair do congelamento provocado pela dureza de uma vida apenas para pagar contas, em direção a uma existência onde exista lugar para a empatia, palavrinha gasta, mas eficiente.

Sobre a terceira parte do texto da Carolina, “queremos ajudar aos que necessitam”, um lembrete: racismo é crime mesmo. Está na lei, logo… cumpra-se! Tratem este tema friamente como a matéria penal que é, ou seja, reúnam provas, testemunhas e envolvam a polícia. Em alguns casos extremos, cotizem-se para um advogado competente. Existem muitos grupos ligados ao direito antirracista que podem orientar como, por exemplo, o IDPN (Instituto de Defesa da População Negra), uma entidade sem fins lucrativos fundada e organizada por profissionais negros, que oferece serviços jurídicos gratuitos.

Tudo o que foi citado acima é ferramenta para fortalecer o espírito e a mente, pois um alerta: não será fácil.

Isto tudo é tão pesado, que a luta contra ela pode adoecer tanto ou mais que o próprio ato racista, pois na caminhada aparecerão palpites racistas da opinião pública, defesas racistas da parte contrária e muito trabalho ardiloso para fazer desistir e ainda duvidando das próprias convicções. Não desistam.

Por último, mas não menos importante, já que estão em um COLETIVO universitário, usem e abusem do fato de estarem reunidos e reunidas. A coletividade existe não para fazer com que os indivíduos sejam engolidos por ela, mas para elevar e fazer com que brilhe a estrela individual que cada pessoa carrega. Disto já sabiam há milênio nossos ancestrais. É hora de relembrar.

*****

IMPORTANTE!

Obrigada às quase 30 mil pessoas que em um domingo à noite ficaram até muito tarde conosco, assistindo e participando ativamente de debates tão importantes. A mudança está a caminho e ela passar por cada um e cada uma de nós. Em frente!

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