Na contramão da orientação do presidente Lula, que determinou à sua equipe de governo o cancelamento de todos os eventos e manifestações de repúdio por ocasião dos 60 anos do golpe militar no Brasil, o ICL Notícias faz questão de lembrar do tempo de ditadura e suas consequências. Este dia 31, que marca o aniversário da quartelada ocorrida em 1964, é a data ideal para ativar a memória.
A seguir, uma série de historiadores e historiadoras – de várias gerações – dão a sua impressão sobre os 60 anos do golpe de 1964.
Como costumava dizer Eric J. Hobsbawm, os historiadores existem para lembrar aquilo que outros querem esquecer.
Abaixo, a foto em destaque mostra o corpo do estudante secundarista Edson Luis Lima Souto, assassinado em 1968 pela polícia no Rio de Janeiro. Ele foi morto quando participava de um protesto contra o governo ditatorial. Esse fato marcou o começo de um ano em que as manifestações contra a ditadura militar se intensificaram, até que, em dezembro, foi decretado o Ato Institucional n.º 5 (AI-5). Essa foi a fase mais dura de repressão aos opositores do regime.
Pablo de Oliveira de Mattos | 41 anos | Historiador, pesquisador e professor da UERJ/FFP
Nestes 60 anos do golpe militar no Brasil é preciso ampliar debates e reflexões sobre as (assim chamadas) vítimas indiretas da ditadura: negros, moradores e favelas, indígenas, ribeirinhos, entre outros. Não apenas enquanto vítimas, mas enquanto atores centrais na produção de caminhos e rumos que consolidaram as liberdades e direitos aos brasileiros. A atuação de intelectuais negros como, Clovis Moura, por exemplo, apontam para a articulação entre a história da escravidão, das permanências de uma sociedade racista e a radicalização do debate racial em um contexto que buscava silenciar tal debate em prol do mito da democracia racial. Que estes 60 anos do Golpe nos sirvam para que vozes como as de Clóvis Moura, perseguidas e silenciadas durante a repressão militar, sejam centelhas para as transformações necessárias que a sociedade brasileira tanto precisa.
Deborah Neves | 40 anos | Historiadora e pesquisadora de Pós-Doutorado UNIFESP
Neste emblemático ano de 2024 a sociedade brasileira precisa analisar criticamente os 60 anos do golpe de 1964 combatendo o passado que continua presente. Há 36 anos, o país reconquistou a Democracia, cujos problemas são em parte devido à negação em refundar instituições e punir servidores do Estado que cometeram crimes que não são passíveis de anistia. A palavra retorna à cena depois de 45 anos porque já no nascimento da Lei se configurou ilegítima e resultou na certeza da impunidade que levou novos servidores do Estado, nas mesmas instituições, a tentar repetir a imposição de seu projeto de poder. A ditadura está presente no cotidiano, na mentalidade e nos corpos brasileiros. Fazer da memória e da História um compromisso público do Estado e da sociedade, punir a quem deve é encerrar a ditadura de fato e assim fortalecer a democracia contra golpistas que nunca dormem”.
Marcos Napolitano | Historiador – Departamento de História – USP
O golpe de 1964 foi um evento disruptivo na História contemporânea brasileira. Demarcador de uma ruptura no interior do processo de modernização social e econômica do Brasil, o golpe e a ditadura que se seguiu tentaram manter as forças sociais sob tutela no caminho de uma “modernização sem conflitos”. Neste sentido, 1964 é continuador de 1937 e do Estado Novo. Mas, por outro lado, 1964 ainda é um desafio historiográfico, posto que é um evento que concentra múltiplos eventos e atores conectados. Havia um projeto claro de tomada de poder ou foi um golpe mais contra Goulart do que a favor de algo? Por que não houve uma resistência consistente dos setores progressistas? Em que momento a rebelião militar contra Goulart se torna um golpe de Estado efetivo? Qual o papel da memória na (des)orientação dos personagens golpistas e golpeados no calor dos acontecimentos? Em que 1964 se encontra com outros golpes e tentativas de golpe ao longo da nossa história republicana? Essas, na minha opinião, são as perguntas de uma história política daquele momento fatídico.
Arnaldo Lemos Filho | 87 anos | Sociólogo e historiador
Lembrar o que foi a Ditadura Militar é fundamental para definir a identidade nacional. Temos identidade nacional porque temos memória. Não podemos deixar morrer a memória nacional, pois sem memória não há futuro. É preciso lembrar o passado, pois não podemos esquecer ou negar a história. Um regime que torturou, assassinou e desapareceu com presos políticos, fechou o Congresso, impôs atos e leis de exceção e censura nos jornais, exilou democratas e patriotas, cassou mandatos eletivos, perseguiu estudantes, intelectuais, jornalistas e artistas, deve ser lembrado e denunciado para que não se repita nunca mais. Além disso, a ausência de responsabilização pela violência política dos agentes do Estado, expressa numa anistia negociada, não só impediu a condenação dos responsáveis mas permitiu também a sua sobrevida, o que se vê ainda num “entulho autoritário”, incompatível com a democracia.
Emily Bueno Pereira | 23 anos | Historiadora
O papel que o historiador se presta a realizar, mais valorizado durante os marcos da barbárie mundial, traz em si uma dor constante, dilacerante e indissociável ao nosso trabalho. Nos dias mais triviais transformamos nossas dores como cidadãos, em revolta e descobertas como um cientista humano. Entre essas cicatrizes, o Golpe de 1964, ainda se mostra como uma ferida aberta na história do Brasil. Uma continuidade, uma permanência. Esse processo incessável do autoritarismo, que pôde ser parcialmente iluminado pela ‘Comissão Nacional da Verdade’ em 2011, tem se mostrado mais latente nos últimos anos. Entre a repressão policial- de uma polícia militarizada que tortura e mata jovens periféricos- e discursos que saúdam a memória de torturadores e da própria ditadura, observamos os efeitos práticos de uma má transição democrática que tenta normalizar a cruel realidade do passado nacional. Estagnado na teoria do homem cordial, o Brasil se vê preso em um ciclo nocivo de autoritarismos. Que nos próximos 60 anos, sejamos mais Rita Lee, Pagu e Marighella. Que os brasileiros desafiem o sistema numa rebeldia pela justiça e pela memória daqueles que se foram e das famílias que não puderam se despedir. Que o discurso apaziguador, e cordial, com aqueles que nos mataram e continuam nos matando, seja visto como uma afronta à memória nacional e à resistência daqueles que ousaram desafiar o sistema.
Dirceu Franco Ferreira | 43 anos | Historiador
É necessário para a consolidação da democracia que falemos sobre a ditadura, passados 60 anos do golpe de 64. Sobretudo se pensarmos, por democracia, um regime em que a luta por justiça social, distribuição de renda, liberdade de expressão, pensamento e organização coletiva são pautas em constante discussão e aplicação. Nada disso existiu em nossa experiência ditatorial. A narrativa fundacional da democracia no Brasil não está de todo consolidada e uma de suas fraturas foi a ausência de uma justiça de transição. Por causa da lei da Anistia, de 1979, não punimos os crimes cometidos pelos agentes do Estado e, no entanto, foi em nome desse mesmo Estado que se forjou uma transição política “pelo alto”, com claros limites ao engajamento popular. Quando pensávamos estar vencida a batalha contra os porões da ditadura, eis que deles cresceu uma força política antidemocrática e golpista, valendo-se do sentimento de ódio interclasses para chegar ao poder. Por isso, educar e informar a população a respeito dos malefícios daquela experiência deveria fazer parte da missão coletiva dos professores, pois é disso que depende a luta permanente de defesa da democracia.”
Lindener Pareto | 40 anos | Historiador e Professor | Curador Acadêmico no ICL
“Marcado por dezenas de golpes de Estado desde 1822, o Brasil ainda é o país do golpe e das tentativas de golpe. Ao relembrarmos os 60 anos do golpe de 1964, que levou o Brasil ao abismo, lembramos da história inteira do Brasil. De Frei Caneca à Luiz Gama, de Anita Garibaldi à Pagu, de João Cândido à Marighella, de Dilma Rousseff à Marielly Franco, uma única história de luta constante contra a tirania. A questão que não nunca quer calar em nossa história: conseguiremos deixar os nossos mortos em paz? Vamos superar o passado autoritário que ainda não passou?”
Pedro Paulo Chaves Mattos (Pedro Chê) | 37 anos | Historiador e Policial Civil
A história não escapa de nos aniversariar com a lembrança de momentos que nos tragam à lembrança os nossos pecados e tragédias. Este atributo da referida ciência, talvez por uma inteligência divina de Clio, provavelmente nos foi ofertado para mais do que apenas entendermos os erros de nosso passado – como fosse uma névoa que se dissipa-, também para o despertar de que os fatos históricos não são engolidos e digeridos por datas no calendário. Pensar na Ditadura, é assim, olhar para as pecaminosas milícias, é assistir pela TV a tragédia de cada dia que é a nossa segurança pública. Se com lupa analisarmos tais pecados e tragédias, daria até para dizer que se tratam de processos anteriores a ditadura cívico-militar, mas, a verdade é que chegados esses 60 anos, um autoritarismo dotado de ódio ao próprio povo segue à espreita, e os mencionados pecados e tragédias – se não forem filhos legítimos – são os seus mais queridos, o seu bastião.
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