Passados 135 anos do decreto de abolição da escravidão, o Brasil ainda engatinha em ações de reparação à população negra, afetada até hoje pelas consequências de séculos de exploração de sua mão de obra no mais complexo esquema de tráfico de seres humanos da história.
Principal responsável por esse crime, Portugal sinalizou a disposição de reparar os danos causados pela escravidão no Brasil — cujos ganhos econômicos viabilizaram sua consolidação como integrante do clube dos países desenvolvidos. O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, reconheceu pela primeira vez que seu país praticou crimes contra indígenas, africanos e seus descendentes durante a colonização do Brasil.
“Temos que pagar os custos (pela escravidão). Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso”, declarou ele.
Justiça de transição para a escravidão
O procurador da República Júlio Araújo, integrante da Procuradoria Regional de Direitos do Cidadão do Rio de Janeiro, acredita que a declaração do presidente português pode servir para que o Estado brasileiro também adote ações de reparação à população afetada pelas consequências da escravidão.
Araújo vem atuando na vanguarda da criação de uma justiça de transição sobre a escravidão no Brasil. Em setembro de 2023, ele abriu um inquérito civil para apurar as responsabilidades do Banco do Brasil no tráfico de escravizados — historiadores afirmam que a instituição financeira foi decisiva no financiamento do crime.
A partir da declaração do presidente de Portugal, o que o senhor acha que o Brasil podia pleitear para ver, de fato, uma reparação acontecer?
Tem uma frente internacional inevitável, que passa por Portugal e pela Inglaterra. Por discutir o tráfico transatlântico e buscar todos os mecanismos de reparação desde o campo mais simbólico até eventuais reparações financeiras. Além disso, há uma frente interna. O Brasil tem que dar exemplo porque a escravização teve um papel fundamental no Brasil, principalmente no século 19, que foi o período em que esse tráfico mais se acentuou. Então, eu acho que o Brasil tem que se associar a toda essa demanda por reparação no diálogo com outros países. Mas tem que dar o exemplo.
O senhor falou sobre o Brasil dar exemplo. A escravidão, ela é considerada um crime contra a humanidade. Por isso, não é um crime que prescreve e poderia ter enfim ações na justiça. Mas antes a gente precisa esclarecer os fatos. O senhor acha que o Brasil deveria discutir a criação de uma Comissão da Verdade?
Vivemos esse fenômeno das respostas via comissões, como a Comissão Nacional da Verdade sobre a ditadura. É uma missão da sociedade civil que existe até hoje e mostra exatamente que o nosso passado autoritário não se limita à ditadura. O nosso passado autoritário, que precisa ser reparado e enfrentado, remonta à história.
Há uma dificuldade por conta dessa distância histórica. Por outro lado, a presença tão gritante do racismo institucional e estrutural mostra o quanto essa marca ainda persiste na nossa realidade. Então, eu penso que, independentemente do modelo, a gente precisa de comissões que discutam formas de reparação, como está acontecendo nos Estados Unidos. Por exemplo, em vários lugares na Califórnia estão discutindo o que fazer com esse passado trágico. Acho que o mais importante é que as comissões discutam as formas de reparação e o que precisa ser feito para enfrentar esse legado.
Existe espaço para reparação na justiça criminal também pensando que é um crime permanente?
Do ponto de vista criminal é inviável. Diferentemente da ditadura, em que eles [torturadores] já são velhinhos, mas estão vivos, os [criminosos] da escravidão já morreram. Então, do ponto de vista criminal, você não tem mais esse tipo de discussão. A gente precisa pensar nas garantias de não repetição, construir medidas que olhem para esse passado independentemente de ir à justiça responsabilizar [criminalmente os responsáveis].
Pensar nisso para construir medidas que não tem um olhar só retrospectivo, mas um olhar preventivo para que essas atrocidades não se repitam. Algo diferente daquela sociedade que está imediatamente pós-conflito. No campo da escravidão, a gente tem que lidar com esse legado diluído. A gente tem que desnaturalizar, mostrar as digitais desses processos. E, com isso, buscar as respostas institucionais dos atores privados, das empresas, aí entra na discussão, por exemplo, o caso do Banco do Brasil.
O senhor pode explicar está o caso do Banco do Brasil?
Nós instauramos [um inquérito] em setembro do ano passado. Em novembro, eles fizeram um pedido de desculpas em uma audiência pública na Portela. Nós achamos insuficiente. Abrimos uma consulta pública de dezembro até março. Aí nós mandamos para o banco as 500 propostas com mais de 40 entidades apresentando ações de reparação ao banco. O banco, junto com o Ministério da Igualdade Racial e o Ministério dos Direitos Humanos, está construindo um plano de reparação para responder a essa questão [também em relação ao Banco do Brasil].
A gente ainda acha que precisa avançar e ter concretude. Acho que precisa do envolvimento mais claro do governo federal em relação a isso. Fico feliz que o governo federal, o Ministério da Igualdade Racial, tem se manifestado rapidamente em relação a Portugal, mas eu espero isso em relação à questão do Banco do Brasil e a outras reparações de instituições que a gente vai fazer. Espero que eles também tenham esse compromisso. Porque é dentro daquela linha que o próprio presidente Portugal falou: o pedido de desculpas é importante, mas não é suficiente. Ele é um reconhecimento. Mas esse reconhecimento tem que gerar consequência.
O governo Lula está se recusando recriar a comissão de mortos e desaparecidos que foi ilegalmente encerrada no governo Bolsonaro. Isso cria um alerta?
Acho que preocupa. Até porque são duas marcas cruéis na nossa história. A escravidão, os impactos do racismo e do autoritarismo da ditadura. Recentemente nós estamos propondo uma discussão em relação ao João Cândido, que é um personagem que faz cruzar esses dois movimentos, como a gente viu ontem pela manifestação da Marinha [contrária à inclusão do marinheiro no Livro de Heróis da Pátria]. Ele sofreu as crueldades numa sociedade ainda muito marcada pela ideologia escravista. Foi expulso da Marinha, mas mais do que isso, foi perseguido a vida inteira e sua memória é perseguida até hoje. O que mostra como esses sistemas se cruzam.
Então, se o presidente Lula e o governo federal não deram a devida importância para a justiça de transição, no campo da ditadura, a gente fica preocupado que isso se coloque também no campo da escravidão. É por isso que a discussão tem que se dar a partir do exemplo. O Brasil tem que dar um exemplo no enfrentamento das nossas feridas coloniais.
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