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O ensaio sobre a loucura no filme ‘As linhas da minha mão’

Em cada relato, sem que a câmera se mova, visualizamos toda a dor e a delícia de alguém em investigação profunda sobre quem é
27/04/2024 | 12h51

Por Matheus Pichonelli*

Faz menos de uma semana que assisti ao documentário “As linhas da minha mão” e desde então perdi as contas de quantas vezes citei alguma história que a atriz Viviane de Cássia Ferreira me contou em uma hora e vinte minutos de sessão.

Escrevo “me contou” meio como um ato falho — nós nunca nos encontramos.

Ela contou e se abriu para amigos, entre eles o diretor, João Dumans, em situações de intimidade: uma conversa à mesa, entre nuvens de cigarro, no meio-fio de uma calçada movimentada, ou deitada de bruços numa cama.

Como entrevistador, não sei dizer quantas vezes perdi boas entrevistas por não ter conseguido deixar entrevistados e entrevistadas à vontade para tirar o melhor delas. Ou o pior.

Dumans consegue duas proezas ao longo do filme. Uma é deixar claro que ele está lá em um processo de registro. A outra é observar a tudo sem intervir em (quase) nada. Nessa hora que a protagonista se sente à vontade para descosturar as linhas da própria mão e se revelar por inteiro.

Todos nós temos um amigo ou amiga cuja vida vale um filme. Ou porque vale mesmo (alguma não vale?) ou porque a pessoa sabe como ninguém contar uma história e prender a atenção com seus pormenores, pausas retóricas, apostos, parêntesis, e espaços reservados para a reflexão. A vantagem de ser cineasta é poder pegar a câmera e transportar a impressão para a tela.

O filme da Viviane, atriz do núcleo Sapos e Afogados, um dos grupos teatrais mais importantes do país na área de criação e saúde mental, tem mais de vida do que de obra — embora, de início, seja uma obra em gestação o ponto de partida e confissão. Essa obra, ela avisa, é uma forma de lidar com o luto para que o corpo não adoeça nem seja internado.

É então que ela se abre e destrincha a própria fragilidade psíquica, diagnosticada como transtorno de bipolaridade.

E é a partir desses poucos cenários (uma mesa, uma cama, uma calçada) que o filme se projeta em outros territórios: para dentro da mente, mas também uma viagem (real) para o Rio, após a perda da mãe, o perrengue para ir a um lugar desconhecido sem os remédios, a briga para obter uma nova receita, uma conversa dura com uma tia, a rotina em hospitais, como acompanhante ou paciente.

Em cada relato, sem que a câmera se mova, visualizamos toda a dor e a delícia de alguém em investigação profunda sobre quem é. Em um momento estamos no hospital. Em outro, numa noite de lua cheia em uma praça em Roma com um desconhecido, um baseado, e um banheiro de trem.

Richard Linklater, de “Antes do amanhecer”, ficaria impressionado com o poder de concisão e resolução dos personagens reais. E as versões de lado de cá são bem mais intensos.

O curioso é que não vemos nada disso em cena.

Mas vemos.

Aos poucos, se apresentando e se embrenhando em territórios que também são intimidades nossas, Viviane produz algumas das reflexões mais honestas sobre envelhecimento, sanidade e solidão que testemunhei no cinema recente.

A cena em que deixa a mãe doente no hospital e não percebe o frio do lado de fora do portão é congelante. Foi um dos dois momentos da vida em que ela se sentiu mais só.

O outro partiu de um diálogo com uma tia sobre relacionamentos e vínculo afetivo, laços fragilizados, no caso dela, por não comportarem tanta intensidade.

Escancarando, já de saída, o que ela mesmo define como fragilidades, Viviane se queixa, a certa altura, da maneira como o mundo, muitas vezes, manipula o diagnóstico contra ela. Ela diz algo como: “Minha natureza é ser dócil, mas não sou sempre dócil, às vezes me irrito e me revolto. E quanto me revolto as pessoas pensam que o remédio não está agindo e preciso de controle”.

Viva, como é conhecida, precisa então gritar para alguém lembrar que ela existe. Que está viva, muito viva.

Nesse momento nós nos abraçamos, mas ela ainda não sabe disso.

“As linhas da minha mão” chegou ao circuito com o prêmio da Mostra Aurora do Festival de Tiradentes do ano passado.

Dumans, codiretor de “Arábia”, um dos grandes filmes nacionais da última década, conta, no texto de divulgação da obra, que a fascinação dele pela personagem está relacionada com a clareza e a precisão com que ela é capaz de articular certas ideias sobre a vida e a loucura e a capacidade de explicar realidades e estados emocionais complexos.

Chega a ser tentador dizer que, em uma época de diálogos tão travados e incapacidades latentes de reflexões sobre si, o filme serve como guia para (re)encontro com o que guardamos também de mais profundo e não temos força, capacidade ou talento para admitir em voz alta. Mas ela avisa desde o início do filme que não é pastor e não está ali para guiar ninguém.

Quem busca ali respostas bateu no lugar errado. Mas quem precisa de respostas quando saímos da sessão com a impressão de que ganhamos uma nova amiga?

 

Crônica originalmente publicada na newsletter https://matheuspichonelli.substack.com/

 

*Formado em jornalismo e ciências sociais. É roteirista do ICL Notícias, com passagens por Folha de S. Paulo, iG, CartaCapital, Yahoo, Intercept Brasil, UOL, e colaborações para o jornal O Globo e a revista Piauí.

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