Por Igor Mello
Os parentes de uma das vítimas da inundação no Hospital de Pronto Socorro de Canoas (HPSC) vivem há dez dias uma busca para reconstituir o que aconteceu com seu familiar. O operário Fábio Eduardo Viécili Fay, de 55 anos, estava na UTI da unidade e, desde o sábado, 4 de maio, a família não conseguiu mais informações sobre ele.
Um funcionário de saúde do hospital informou aos parentes de Viécili Fay, dias atrás, que ele não pôde ser salvo e acabou ficando na unidade. Contudo, seu corpo não foi recuperado até o momento. A coluna também confirmou com outros integrantes da equipe do hospital que o operário estava internado no HPSC.
Desde que o hospital foi evacuado, no dia 4 de maio, após ser tomado pela enchente no bairro Mathias Velho, em Canoas, a família de Viécili Fay peregrinou por unidades de saúde que receberam pacientes transferidos do HPSC em busca de informações, acreditando que seu parente também havia sido salvo. Também estiveram no IML para tentar encontrar informações, mas não conseguiram.
O sinal de alerta soou alguns dias depois. A coluna revelou com exclusividade que o prefeito de Canoas, Jairo Jorge (PSD-RS), cancelou a transferência dos pacientes para outras unidades, que havia sido marcada para a manhã de 3 de maio, um dia antes da enchente atingir o hospital.
A administração municipal ignorou apelos do corpo de funcionários e manteve a decisão quando o bairro de Mathias Velho, onde fica o hospital, já estava debaixo d’água. Os pacientes só começaram a ser removidos no início da tarde de 4 de maio, com o primeiro andar do HPSC completamente tomado pela água.
No meio do caos provocado pela demora no resgate, ao menos dois pacientes morreram. Diante disso, a família passou a temer que Fábio fosse um dos pacientes deixados para trás.
“A gente não poderia reclamar se fosse estritamente a força da natureza. A gente ia viver esse luto que é natural: ia sofrer, chorar. O que nos dói é saber do abandono que ele pode ter sofrido”, conta Rosane Viécili, prima de Viécili Fay e uma das familiares envolvidas na busca por informações.
Vidas em risco no Hospital de Canoas
Apesar da dor, a prima do paciente, que é profissional de saúde, imagina o desespero dos colegas no hospital e questiona o atraso da transferência dos pacientes. “Vi os vídeos e fiquei chocada em perceber como uma decisão política atrás de uma mesa segura pode ter colocado toda a equipe de saúde daquele hospital em risco para salvar vidas. As pessoas que ficaram para tentar salvar os pacientes são heróis. Eu sou trabalhadora da saúde e imagino o sentimento que esses colegas tiveram de ter que sair de lá sabendo que nem todos os pacientes foram resgatados”, desabafa ela.
Até hoje a família do paciente não recebeu nenhuma informação oficial sobre o que aconteceu com ele. Eles só obtiveram alguma notícia, de modo informal, após rodar unidades de saúde da região para localizar funcionários do HPSC, o que só conseguiram no dia 9 de maio.
“Viajamos por horas até o Hospital da Ulbra de novo. Chegamos por volta da meia-noite e fomos atendidos por uma enfermeira que foi super atenciosa. Ela conseguiu chegar, depois de alguns contatos, duas pessoas confirmaram que ele tinha morrido”, relembra ela.
“Então eu perguntei: em que circunstâncias ele morreu? Ela não soube responder. Perguntei onde estava o corpo e ela também não soube responder. Aí eu perguntei se tinha deixado para trás no HPSC no momento da evacuação, e isso ela também não respondeu”.
Família quer enterrar corpo para evitar ‘página perdida’
Fábio Eduardo Viécili Fay era operário da construção civil e estava internado no HPSC desde 11 de abril, quando sofreu um acidente de trabalho. Uma viga caiu em sua cabeça, provocando traumatismo craniano com perda de massa cefálica.
Desde então, ele estava em coma sem previsão de acordar, mas apresentava melhoras: na véspera da tragédia no hospital, a família foi informada que ele havia voltado a respirar de maneira autônoma, sem ajuda do respirador, após uma traqueostomia ser bem-sucedida.
A informação que a família recebeu dos funcionários do HPSC é que Viécili Fay havia sido deixado para trás por ter sido classificado como um paciente não reanimável. “São pacientes que não têm prognóstico de qualidade de vida. Se ele parar, parou”, explica Rosane, que é profissional de saúde, em referência a uma parada cardiorrespiratória.
“Ainda assim, uma pessoa que não seja reanimável tem direito de não morrer afogada. O que é um drama para nós e a nossa impotência é não poder dar dignidade e uma despedida para ele”, completa a prima.
A mãe de Viécili Fay, que tem 80 anos, ainda não sabe do possível destino trágico de seu filho. Deprimida com a falta de notícias, ela apresenta um quadro emocional fragilizado.
“Com a mãe dele, a gente não teve coragem de falar com toda segurança. Dentro da cabecinha dela, de uma senhorinha de 80 anos, cria uma fantasia de que ainda vai ver ele vivo. E como a gente não tem o corpo e não pode fazer essa despedida, ninguém tem coragem de impor a ela essa verdade de que ele pode ter morrido afogado. A gente não quer trazer isso para aumentar o sofrimento”, lamenta Rosane.
Ela diz que localizar e enterrar o corpo do primo é a única forma que todos os seus entes queridos têm para seguir em frente: “A gente cresceu juntos. Eu tenho a impressão de que se isso [o sepultamento] não acontecer, essa página vai ficar sempre perdida na nossa mente”.
Rosane critica as autoridades de Canoas pela demora na evacuação do HPSC. Ela deseja que os responsáveis pelas falhas na evacuação da unidade de saúde sejam punidos, mas diz que nem isso irá reparar a perda das famílias afetadas.
“Podem falar que a gente quer levantar bandeira para fazer justiça. Pelo amor de Deus! Não é justiça, não há nada que torne justo isso. A gente precisa por a responsabilidade para que as pessoas não fiquem pensando que podem, detrás de uma mesa segura, decidir sobre a vida dos outros sem consequências. Nada que se faça pode devolver a vida dessas pessoas que morreram no abandono e nem o emocional dessa equipe [de funcionários do hospital] toda que foi posta em risco emocional e físico, de morte mesmo, para salvar vidas”.
A coluna procurou a prefeitura de Canoas em busca de esclarecimentos sobre o caso de Fábio Eduardo Viécili Fay e a falta de informações à família. A equipe da prefeitura informou por nota que a administração da unidade é da empresa IAHCS (Instituto de Administração Hospitalar e Ciências de Saúde).
“Todas as informações sobre pacientes, estado de saúde, baixas e altas hospitalares, transferências para outros locais (incluindo as realizadas no dia de sábado, 04 de maio) são de responsabilidade da empresa gestora. O IAHCS é que detém os prontuários de todos os pacientes e é o responsável por repassar as informações para os familiares dos pacientes”, informa a nota da prefeitura.
“Sobre a situação apresentada pelo site ICL no dia de hoje, 15 de maio, sobre uma família que não recebeu notícias de um paciente específico, a Secretaria Municipal da Saúde já acionou o IAHCS para que preste informações sobre o caso. A Prefeitura reitera que solicitou urgência aos gestores do HPSC para elucidação desta situação. Em caso de eventual demora na prestação das informações solicitadas, medida administrativa disciplinar de sindicância será aberta para apurar os motivos pelos quais essas informações ainda não foram repassadas aos familiares. A Prefeitura de Canoas se solidariza com a aflição da família do paciente e não medirá esforços para que o caso seja esclarecido”, completa.
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