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Refugiados sofrem xenofobia em abrigos no Sul: ‘fomos chamados de ignorantes e famintos’

A ONU estima que 41 mil pessoas refugiadas e outras sob proteção internacional foram afetadas pelas enchentes gaúchas
18/05/2024 | 16h39

Por Lauro Neto — Projeto Colabora

Após sofrerem ao sair de seus países de origem em busca de melhores condições de vida no Brasil, refugiados e migrantes vivem um novo drama nas inundações do Rio Grande do Sul. A ONU estima que 41 mil pessoas refugiadas e outras sob proteção internacional foram afetadas pelas enchentes gaúchas.

Além de enfrentarem os mesmos problemas que os brasileiros, estrangeiros sofrem com xenofobia, segregação e exclusão em abrigos, além da ausência de uma rede de apoio. Há denúncias de restrições de comida, água e roupas a imigrantes.

Só de venezuelanos, o Rio Grande do Sul recebeu 20.101 refugiados de 2018 a 2024, segundo dados do governo federal. Refugiada no Brasil há cinco anos, a liderança venezuelana Makhariannys Gonzalez teve que sair do segundo abrigo com seus familiares nesta quarta-feira (14), em Porto Alegre, após relatos de xenofobia e exclusão em relação aos 59 conterrâneos que dividiam o espaço com mais de cem brasileiros.

“Fizeram uma reunião com todos os imigrantes, como sempre separados dos outros , disseram que a comida para nós teria que ser reduzida, que o barulho das crianças era quase insuportável e que não poderíamos pegar roupas porque já tínhamos muitas, sendo que só temos roupa suja que não dá para lavar. Fomos chamados de ignorantes e famintos de uma maneira muito arrogante. Com essa situação, dessa vez não vou me calar. A situação foi muito séria, o preconceito falou bem alto dessa vez, e tivemos que sair daquele abrigo, infelizmente”, lamenta Makhariannys.

Foi o segundo abrigo que ela e seus familiares deixaram por causa da xenofobia e da segregação. Makhariannys morava com a mãe, que faz tratamento contra um câncer, dois filhos e dois sobrinhos, no bairro do Sarandi. Foram resgatados após um dique transbordar na região no dia 5 de maio.

Ela faz um apelo ao Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e à Organização Internacional para as Migrações (OIM) para que ajudem os imigrantes afetados na região.

“Saímos do primeiro abrigo porque não tinha água, e as condições não estavam adequadas. Havia situações de preconceito. Ontem , o grito do preconceito saiu. Não dava para aguentar mais. Além da minha mãe, que é idosa, encontrei uma mulher chorando. Guardaram as frutas para as crianças e nos deixaram comer por último, depois dos brasileiros. Falamos com alguns representantes , que foram legais conosco. Mas a diretora, especificamente, fez toda essa sacanagem”, conta.

A venezuelana Makhariannys Gonzalez

Presidente da Associação de Haitianos no Brasil, Anne Dominique Bruneau está refugiada há quase sete anos no Brasil e atua como voluntária no Vida Centro Humanístico, abrigo na zona norte de Porto Alegre, onde há cerca de 140 imigrantes, entre conterrâneos e venezuelanos, além de mais de 400 brasileiros. A estrutura estadual foi visitada pelo governador gaúcho Eduardo Leite na última sexta-feira (10).

A haitiana confirma os relatos de preconceito contra estrangeiros, com restrições de comida, água, roupas e itens de higiene. “A discriminação e a xenofobia são muito grandes. Estão dando comidas cruas para os imigrantes. Há várias crianças que não estão comendo direito. Estão dando as roupas mais rasgadas para os estrangeiros, não só para os haitianos. Não estavam dando desodorantes. É preciso que um representante da associação vá pedir e entregar para os demais. Só dão uma escova de dente por família, o que é absurdo. Não estavam dando garrafinhas de água. Se a pessoa sentia sede, tinha que ir lá pegar de copinho em copinho. Fiz esse relato e, agora, estão liberando mais água”, denuncia a haitiana.

Imigrantes impedidos de ajudar na cozinha e na recepção

De acordo com o Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra), da Polícia Federal, há 14.560 haitianos residentes no Rio Grande dos Sul. Com formação em auxiliar de enfermagem e a experiência de quem enfrentou um terremoto no Haiti, em 2010, que matou mais de 200 mil pessoas e deixou mais de 1 milhão de desabrigados, Anne Dominique entende a situação difícil pela qual o Rio Grande do Sul está passando.

Ela tenta ajudar na logística do abrigo, mas alega que há resistência dos brasileiros, que não aceitaram que houvesse a participação de imigrantes na cozinha nem na recepção. A haitiana aponta barreiras linguísticas como outro fator de discriminação.

“Por questão de idioma, estão sofrendo muita xenofobia. Há algumas venezuelanas que não sabem falar bem português. Quando pedem uma coisa, ficam bravos, irritados, de cara feia. As pessoas se sentem muito humilhadas. Já enfrentamos uma situação crítica e estar passando por isso de novo é muito constrangedor. Os haitianos sabem o que aconteceu em 2010, como foi caótica a situação no nosso país. Agora, estamos vivendo a mesma coisa aqui. Estamos batendo de frente e lutando por melhorias. Todo mundo é igual nessa situação, não importa se é preto, amarelo ou branco. Estamos no mesmo barco”, ensina

O #Colabora recebeu a denúncia de que a xenofobia e a exclusão também estariam acontecendo em outros abrigos no interior do Rio Grande do Sul, em municípios como Arroio do Meio, Canoas, Encantado, Lajeado e Teutônia. Em alguns casos, haveria dificuldades de ter acesso aos abrigos por serem refugiados e imigrantes. A identidade da fonte que denunciou será preservada por receio de retaliações.

Em nota enviada ao #Colabora, o ACNUR confirmou que tem recebido informações sobre situações de discriminação de diferentes naturezas, em especial xenofobia contra refugiados e migrantes, em alguns dos abrigos emergenciais montados.

“A equipe do ACNUR no Rio Grande do Sul está fazendo um monitoramento dos casos de proteção, trabalhando de forma coordenada com os gestores destes espaços para poder mitigar quaisquer formas de discriminação e para assegurar os direitos das pessoas refugiadas e migrantes que, assim como as brasileiras, estão passando por situações muito delicadas em razão das perdas sofridas e têm, como diferencial, as barreiras linguísticas que em situações de emergências, podem as fragilizar ainda mais”, informa a nota.

A Organização Internacional para as Migrações (OIM) informou, também em nota, que está trabalhando em conjunto e em coordenação com o Governo Federal, do Rio Grande do Sul e atores locais para atender as pessoas que tiveram que deixar suas casas.

“A sua equipe está mobilizada para atender as demandas de apoio técnico referente à gestão de locais que estão recebendo as pessoas em necessidade de abrigamento, assim como ao diagnóstico da resposta de proteção social em realização pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. No caso da calamidade pública no Rio Grande do Sul, de maneira mais específica para as pessoas migrantes internacionais e refugiadas, a OIM tem apoiado diretamente as autoridades locais e federais para facilitar o acesso a informações sobre direitos e acesso a serviços, assim como no levantamento de necessidades de documentação”, afirma a OIM.

A Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul informou que vai promover uma reunião nesta sexta (17/05) para discutir questões envolvendo a população de migrantes, refugiados e apátridas, mas afirmou que não recebeu denúncias de caso de xenofobia nos abrigos. De acordo com levantamento do governo, 350 haitianos foram atingidos pela enchente em Porto Alegre: 200 estão em abrigos e 150 em casas de parentes.

Nas cidades de Lajeado, Encantado, Arroio do Meio e Estrela, estima-se que haja cerca de 1000 haitianos abrigados. Há também entre os desalojados e desabrigados, cerca de 1350 senegaleses (na capital e no interior) e 230 peruanos na Região Metropolitana de Porto Alegre.

“Esses dados fornecem uma visão parcial da magnitude e distribuição dos impactos enfrentados pela comunidade migrante durante este período desafiador. Prioritariamente, as demandas identificadas têm sido relacionadas à documentação básica”, informou a SJCDH em nota, acrescentando que está trabalhando em parceria com a Polícia Federal e a OIM para ajudar a resolver os problemas.

‘Dificuldade dos imigrantes é maior do que dos nativos’, diz liderança angolana

Presidente da Associação dos Angolanos e Amigos do Rio Grande do Sul e integrante da Associação de Imigrantes e Refugiados do estado, Narrador Kanhanga corrobora os relatos de conflitos com refugiados em Porto Alegre, além de demandas alarmantes enfrentadas por imigrantes na capital e em Lajeado.

Vivendo há mais de 18 anos no Brasil, Kanhanga é articulador de migrantes e refugiados desde 2019. Atuando na linha de frente para recolher e entregar doações de alimentos, roupas e cobertores diretamente a famílias que estão abrigando estrangeiros, ele prevê outros obstáculos depois que as águas baixarem.

Segundo ele, imigrantes sentem mais o impacto de problemas como especulação imobiliária e burocracias para alugar um novo imóvel, sem poder contar com familiares e amigos na reconstrução, como os brasileiros.

“A dificuldade dos imigrantes e refugiados sempre está numa dimensão maior que a dos nativos. Com a crise da catástrofe natural, acaba piorando. Foi o que aconteceu em Lajeado, ano passado, com as enchentes no Vale do Taquari. Um grupo muito grande de imigrantes ficou sem casa. A reclamação deles era como conseguir alugar outra casa por conta das burocracias das imobiliárias, que fazem uma série de exigências para imigrantes. Como um imigrante vai conseguir estrutura financeira para fazer locação? Isso vai acontecer aqui de novo: o imigrante vai ser obrigado a ir para lugares mais vulneráveis, nas regiões mais pobres, às vezes sem água nem energia, para poder se estabelecer e seguir sua vida”, antevê Kanhanga.

Em Lajeado, onde o Rio Taquari transbordou e inundou parte da cidade pela quarta vez em 8 meses, há cerca de 75 angolanos em dois abrigos, de mais difícil acesso. Segundo o Sismigra, em todo estado, há 111 angolanos residentes, 107 temporários e 39 provisórios.

Problemas nas torres de transmissão dificultaram o contato do #Colabora com Mateus João, um dos conterrâneos de Kanhanga, abrigado no salão de um centro esportivo. “Estamos sofrendo muito. Precisamos de ajuda”, disse o angolano em uma das tentativas de ligações entrecortadas.

‘Ainda tenho esperança na humanidade’, acredita refugiado cubano

Nem todos os refugiados têm experiências traumáticas. Em Esteio, na região metropolitana de Porto Alegre, a situação está menos caótica: de acordo com a prefeitura do município, dos 12 mil desalojados, 500 estão em abrigos, e os demais foram acolhidos por familiares e amigos.

O tradutor cubano Orlando Abel, refugiado no Brasil há 1 ano, foi resgatado em casa com seus familiares na manhã do dia 3 de maio. Segundo dados do Sismigra, há 1.089 cubanos residentes no Rio Grande do Sul.

“Por volta das 5h,um barco nos pegou e nos levou até a entrada de Novo Esteio. A água estava na altura da cintura. Parte da família voltou no mesmo dia, às 15h,  para tentar salvar alguma coisa. Só foram possíveis duas televisões porque a água estava na altura do peito. Já no sábado, a água chegou ao telhado”, relembra Abel.

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