Por Carla Vilhena*
No início do ano de 1945, o mundo conheceu um horror nunca antes registrado em imagens. Naquele fim de inverno, ao chegar aos campos de concentração de Dachau, Buchenwald, Auschwitz, entre outros, as tropas soviéticas e norte-americanas encontraram cenas tão degradantes, de tamanha crueldade, que o comando aliado ordenou que fossem gravadas em filme, sob a alegação de que o mundo jamais acreditaria num simples relato.
E não foi só isso; habitantes de cidades próximas aos campos, escoltados por soldados, foram obrigados a fazer um “tour” macabro, para conhecer o que vinha acontecendo ali, próximo às suas casas.
Os filmes que retratam essa “visita forçada” são de domínio público e podem ser consultados e reproduzidos livremente. Todos foram periciados para confirmação da veracidade e fazem parte de acervos disponíveis na internet.
Em um deles se vê um grupo alegre e animado de cidadãos alemães, conversando em estradas bucólicas, a caminho dos Läger. Ao chegar, senhoras — bem-vestidas e bem alimentadas — são recebidas por homens de rostos encovados, em pijamas listrados.
Eram os prisioneiros, que ainda permaneciam nos campos, encarregados da tarefa de enterrar seus companheiros, alguns falecidos mesmo depois da chegada das tropas.
Centenas de crianças encontradas em Auschwitz, alvo dos experimentos de Josef Mengele, mostram para a câmera os números tatuados nos bracinhos. O cheiro no campo é insuportável, como mostram as imagens das senhoras ao sair de alojamentos, com seus lenços brancos cobrindo o rosto.
Os internos, como espectros, se misturam aos mortos; veem-se pilhas de corpos e ossos por toda parte, principalmente ao lado dos fornos crematórios. E objetos de arrepiar, como abajures confeccionados com pele humana, são apresentados pelos militares aos aldeões estupefatos.
A reação dos visitantes alemães, ao ver de perto o que vinha sendo feito por seus governantes, é de choque. Alguns desmaiam. Outros choram.
Seguem-se muitos e muitos anos dedicados à desnazificação, um processo doloroso e difícil, já que nazistas estavam em todas as instâncias do Estado alemão, da burocracia às forças policiais, dos professores nas escolas e universidades aos políticos e empresários.
Surge assim a primeira de várias gerações de pessoas envergonhadas, tentando apagar e esquecer um passado de conivência com crimes e políticas infames.
Hannah Arendt, em seu famoso relato sobre a banalidade do mal, traça um panorama de diversas reações da população nos países europeus, ocupados ou não pelos nazistas.
Muitos deles não aceitaram as deportações ordenadas pelos alemães, como na Holanda, onde estudantes fizeram greves e protestos contra a demissão de seus professores judeus.
Ao serem instados a marcar os trajes de seus cidadãos de origem judaica com estrelas de Davi, funcionários dinamarqueses se recusaram a cumprir as ordens, dizendo que o primeiro a usar a estrela amarela seria seu próprio rei.
Os franceses, mesmo sob ocupação, se recusaram a entregar seus cidadãos judeus. Na Bélgica, os ferroviários sabotavam o transporte dos nazistas para deportação de judeus, abrindo portas dos trens e organizando emboscadas.
A Suécia, que não foi ocupada, abriu suas fronteiras e ofereceu cidadania para judeus perseguidos pelo regime de Hitler nos países vizinhos, como a Noruega.
Certamente, muitos que colaboraram, durante esse período de terror, se beneficiaram de várias maneiras. Da mesma forma, o destino de outros que resistiram nos territórios ocupados foi a prisão e a morte.
No entanto, num mundo de pernas para o ar, foram os valores e princípios dessa minoria, mesmo em inferioridade numérica e bélica, que sustentaram a Resistência e salvaram a Humanidade.
Valores humanistas que constam de nossas Cartas constitucionais se originaram de histórias como estas, de dor e sofrimento.
Hoje, infelizmente, com a ascensão da extrema direita, vemos no mundo o recrudescimento de várias formas de desumanidade. Ações policiais e militares, com fins eleitoreiros ou escusos, julgam e condenam sem tribunais, em clara afronta à legalidade.
Mortes de “bandidos” e “terroristas” se misturam a mortes de inocentes, chamadas de “danos colaterais”. Governantes populistas induzem forças públicas a agir de modo indigno, deturpando seu papel de Estado e usando-as como se fossem milícias particulares, contrárias à lei que juraram respeitar.
A população e as instituições, de quem se esperava a defesa desses princípios, se dividem entre os que reagem com perplexidade e os que apoiam escancaradamente a ilegalidade.
Que não seja necessária mais uma visita forçada ao inferno.
*Carla Vilhena é jornalista
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