Em 2019, Jair Bolsonaro se encontrou em Brasília com um jovem indígena da terra Yanomami. O objetivo era transformá-lo em uma espécie de garoto-propaganda do garimpo ilegal em terras indígenas. Do encontro resultou uma live nas redes sociais bolsonaristas. Nas imagens, o rapaz é exibido ao lado do então presidente, em uma mensagem clara de apoio à mineração ilegal.
Os líderes das principais associações da Terra Indígena Yanomami se indignaram e reagiram rápido. Reunidos em Boa Vista (RR), publicaram um vídeo e uma carta atestando que o rapaz não representava os indígenas e repudiando o garimpo ilegal.
Mais tarde, o mesmo jovem indígena assistiu a uma série de ataques à comunidade onde vivia, na região do Palimiu. A violência foi promovida por garimpeiros ilegais de uma uma facção criminosa ligada ao narcotráfico. Duas crianças morreram afogadas no rio ao tentar escapar dos disparos de fuzil.
Arrependido, o rapaz procurou a antropóloga Marília Senlle, que atua junto à Hutukara Associação Yanomami, a principal organização do povo. “Ele entendeu que tinha feito uma besteira e me pediu para conversar diretamente com o Davi Kopenawa [principal liderança dos Yanomami]. Disse que queria aprender o caminho dos brancos com o Davi”, contou Senlle.
Bastou uma conversa com o rapaz para que a antropóloga compreendesse os motivos que o levaram ao encontro com Bolsonaro. “Ele aceitou participar dessa reunião porque os garimpeiros prometeram a oportunidade da educação. Eles iriam promover escola na aldeia. Então ele poderia virar advogado, professor, o que ele quisesse. E Bolsonaro e os garimpeiros iam ajudar ele com isso”, contou Marília.
O Brasil de Fato ouviu essas e outras histórias de quatro experientes indigenistas com atuação na Terra Indígena Yanomami. Os relatos revelam impactos menos explícitos do que as imagens de crianças desnutridas e crateras no solo, mas igualmente devastadores.
Além de rios e peixes, a mineração ilegal contamina o imaginário dos jovens nas aldeias, estimulando um conflito de gerações que produz sequelas profundas nos modos de organização social ancestrais. Enquanto finge empoderar jovens indígenas, o garimpo tenta deslegitimar os anciãos, subvertendo um sistema no qual a autoridade é exercida pelos mais experientes.
Armas e celulares em troca de trabalho
“O garimpo alicia principalmente o jovem e oferece armas e celulares em troca de que eles trabalhem no garimpo. Ou muitas vezes oferecem dinheiro para que esses jovens os levem até as suas comunidades. Isso já por princípio causa uma desestruturação, de forma que os velhos vão perdendo autoridade”, explica a antropóloga Ana Maria Machado, da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, que atua no território Yanomami há 15 anos.
A antropóloga Marília Senlle testemunhou o momento em que um garimpeiro foi levado por um jovem indígena a um encontro que discutia a produção sustentável de cacau. “Os garimpeiros entraram na reunião para fazer uma fala. Imediatamente foi solicitado que eles saíssem dali, porque não era o ambiente deles. Foi uma situação sem conflito, mas bastante tensa”, relatou.
Impacto no imaginário dos jovens
O geógrafo Estevão Senra foi chamado em 2013 pelos Yanomami para ajudar a desenvolver possibilidades de gestão territorial rentáveis e adequadas à cultura dos Yanomami. Ele diz que o poder de atração das vilas garimpeiras, principalmente junto aos adolescentes indígenas, vai além da promessa de recursos materiais.
“As grandes estruturas das currutelas do garimpo têm um papel de atração porque ali se concentram serviços e comércios importantes, que vão impactar o imaginário dessas pessoas. Isso é potencializado, por exemplo, pelo wi-fi. Há um deslocamento importante de adolescentes justamente para ter acesso ao sinal de internet”, explicou.
Ele lembra que os Yanomami são um povo de recente contato. Isso significa que eles não compreendem integralmente a lógica da sociedade não indígena, baseada na troca de mercadorias por dinheiro. Esse “mal entendido interétnico”, como o geógrafo define, está na base de conflitos violentos e da insegurança alimentar que produz a tragédia humanitária.
“Na lógica econômica Yanomami, você não armazena mercadorias, você distribui. Ao chegar nessas grandes vilas e ver fardos de comida, a expectativa dos indígenas é que essa comida será distribuída e que deve ser distribuída. Os garimpeiros se aproveitam dessa expectativa e respondem a ela com o objetivo de aliciá-los. E isso automaticamente atualiza a expectativa dos indígenas de que a relação com os garimpeiros será de generosidade”, explica Senra.
A exploração da generosidade Yanomami
“Um dos valores mais importantes para os Yanomami é a generosidade. Eles têm a ideia de que é quase uma obrigação moral que as mercadorias fluam do sentido de quem tem mais para quem tem menos. Os não indígenas detém essas mercadorias e portanto, dentro da lógica indígena, teriam essa obrigação de distribuir essa mercadoria para os indígenas”, prossegue o geógrafo.
Mas em pouco tempo a doação se transforma em exploração. “Os Yanomami voltam para pedir mais coisas, e os garimpeiros começam a negar. E falam: ‘a gente não vai dar mais. Para a gente dar, você precisa realizar um determinado trabalho’. A pessoa vai se submetendo a uma relação de dominação. E aí fica doente, sem roçado. E seu entorno está completamente destruído”, descreve o geógrafo.
O trabalho de gestão territorial desenvolvido pelo geógrafo é, essencialmente, forjar a construção de um futuro melhor. Mas o ciclo econômico predatório dificulta, por exemplo, planejar o acesso a mercados mais justos e rentáveis de castanha e cacau, ou ainda a expansão de escolas em uma comunidade.
“O garimpo fica parecendo que é a única vida possível. Uma vida muito violenta e com muito abuso. E acaba ganhando espaço também na imaginação, nos sonhos das pessoas. Cria-se uma sensação de instabilidade, da impossibilidade de se aprimorar as coisas que já estavam sendo construídas”, relata Estevão.
Extração de ouro viola regras do mundo espiritual
O povo Ye’kwana, que compartilha a Terra Indígena com os Yanomami, perdeu seu principal sábio, Vicente Castro, em dezembro de 2022. Com mais de 90 anos, seu corpo não resistiu às múltiplas contaminações de malária e covid-19. As doenças chegaram junto com os garimpeiros em uma área que não via invasores desde a década de 80.
Na região de Awaris, extremo norte de Roraima, os sábios e anciãos tentavam encontrar, ainda nos anos 80, uma forma de extrair ouro sem desrespeitar os espíritos da floresta. A reflexão era necessária diante de uma invasão garimpeira que, ainda sem escavadeiras ou aeronaves, empurrava os indígenas em direção a experiências de garimpo manual, em uma escala muito reduzida se comparada a de hoje.
“Retirar algo da terra tem que ser dialogado com os espíritos donos desses elementos. Toda extração, como de um cipó que se vai usar como veneno de pesca, exige um presente para esses donos. No caso dos Ye’kwana, essas trocas são feitas muitas vezes com miçangas. É um ciclo de reciprocidade. Você pede licença, tira algo e deixa outra coisa no lugar.”
A explicação é da antropóloga e pesquisadora Majoi Gongora, que atua há 10 anos com os Ye’kwana e conheceu o sábio Vicente. Segundo ela, justificar a exploração de ouro pela ótica do lucro não faz sentido dentro da concepção espiritual do povo.
“A extração de ouro é também uma violência contra as entidades que são donas da floresta. Os sábios dizem que a extração na escala atual pode provocar uma mudança brutal das coisas como a conhecemos. As consequências de hoje no mundo real confirmaram as previsões espirituais”, lamenta Gongora.
Homens no garimpo, mulheres na prostituição
Além da perda de autoridade dos mais velhos, o garimpo ilegal se apoia sobre a exploração do corpo e do trabalho das mulheres Yanomami. Os homens jovens são escalados para trabalhar em atividades braçais, como carregar combustível ou mantimentos para os invasores. Em troca, recebem pouco dinheiro, quase sempre gasto nas próprias vilas de garimpeiros, em um esquema que se assemelha a escravidão por dívida.
“Às vezes elas são levadas a se prostituir para que possam alimentar suas famílias, porque são as principais cuidadoras das crianças. E os filhos estão quase sempre doentes, de malária, febre, diarreia”, diz Ana Maria Machado, da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana.
É o caso da região de Awaris, de onde jovens indígenas do sexo masculino são recrutados para trabalhar na Venezuela em garimpos de brasileiros. As mulheres ficam sozinha nas aldeias tendo que alimentar as crianças, mas sem amparo. Segundo Ana Maria Machado, como os homens são responsáveis pela caça, a comida falta.
“As mulheres no máximo pescam, coletam e cuidam da roça. Sobra para elas toda a responsabilidade de nutrir as crianças, em uma situação super frágil, enquanto os homens estão no garimpo”, descreve a antropóloga.
“É muito duro. Tenho amigas Yanomami que eu conhecia desde bebê, ficavam comigo na rede, tínhamos uma relação muito próxima. Mas tive notícia que viraram prostitutas de garimpo ou que estavam em uma relação de quase escravidão sexual”, lamenta a integrante da Hutukara Associação Yanomami.
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