Por Rodrigo Viana Borges, de Santiago do Chile
Na semana passada, presidente chileno Gabriel Boric foi ao Congresso Nacional em Valparaíso para a sua terceira Cuenta Pública, evento anual de prestação de contas da campanha e novos compromissos.
Antes do evento, os temas em que a oposição mais pressionava o governo eram a Segurança Pública e a Economia. Só que as manchetes dos dias seguintes deram destaque a outro assunto: o aborto legal.
Quem não acompanhou as quase três horas de discurso pode ter tido uma surpresa. O presidente usou o evento para fazer propaganda “abortista”? Boric forçou uma “agenda woke” para o Congresso chileno? Pelo contrário, o termo “aborto” apareceu apenas duas vezes em uma fala que totalizou 22.069 palavras.
Para se ter uma comparação, “seguridad” apareceu 31 vezes junto com “justicia” (13), “víctimas” (13), “carabineros” (12) e “delincuencia” (9). Os temas de Educação, Economia e Saúde também têm termos que se repetiram duas dezenas de vezes.
No entanto, a oposição e a imprensa preferiram destacar o projeto de lei de interrupção de gravidez que o presidente prometeu enviar ao Congresso no fim do ano.
Não que este tema não tenha peso suficiente para estar nas manchetes. É raro que um chefe de Estado tenha não só apoiado o aborto de forma pública, como também esteja disposto a transformá-lo em projeto de lei.
O problema da imprensa e da oposição é o foco. Não há discussão das repercussões jurídicas e de saúde pública. O que existe é uma lupa no que seriam as ambições políticas secretas de Boric por trás da pauta.
É fato que uma pesquisa do Centro de Assuntos Públicos (CEP) em 2023 revelou que caiu de 55% para 19% a parcela da população que acredita que o aborto deva ser proibido em todos os casos.
No país transandino, o aborto é legal nos casos de estupro, risco de vida ao feto e à mãe, as chamadas “tres causales”. O apoio à lei também subiu de 35% a 49%.
Com isso, os deputados conservadores começaram a forçar um caráter extremista a um político que chegou ao poder justamente fazendo uma série de concessões e criando uma frente ampla nas eleições de 2021, que teve ecos até no Brasil de 2022.
Boric está longe de ser extremista. Pelo contrário, ele anda perdendo apoio dentro do próprio campo político justamente por uma conduta que, por vezes, contradiz a figura que o fez famoso.
Já a imprensa tradicional acusa Boric de usar o tema, que tem apoio crescente na população chilena, para dominar o debate público em ano de eleições locais e regionais e emparedar os conservadores. E criticam o destaque a uma pauta de valores sobre o que julgam ser temas essenciais da gestão pública.
Em primeiro lugar, o destaque foi feito pela imprensa e oposição, não em discurso. Em segundo lugar, é tipico do pensamento neoliberal colocar a Economia e a Segurança Pública como pautas essenciais e reduzir o debate do aborto a “temas de valor” tirando suas correlações com a saúde pública, a educação de jovens e adolescentes, a paridade no mercado de trabalho, os impactos na Assistência Social, entre tantos outros.
E os parlamentares conservadores de fato morderam a isca. O partido Republicanos disse que rompeu relações com o governo e o Democracia Cristã (DC), que não era parte do governo, mas votava com ele, disse que o presidente não vai ter o apoio que precisa “para as outras coisas”, conforme reportou o jornal La Tercera.
É importante destacar aqui que o governo luta para conseguir a aprovação de uma reforma do sistema de pensões, privado no Chile, para diminuir a desigualdade e a pobreza na população idosa.
De fato, existe um motivo político para que Boric avance com um projeto de lei sobre aborto no Congresso: seu mandato ainda precisa de uma cara.
A tentativa de um novo texto constitucional mais progressista falhou duas vezes e, por isso, ele vai usar a reta final para pautar questões que considera urgentes. O direito ao aborto foi uma, o direito à eutanásia foi outra. Só que esta última não gerou nem de perto a mesma comoção.
Seja por motivações eleitorais, por forçar a tal “agenda woke” ou por motivos de marketing pessoal e político, o que Boric fez, e que pode ser aprendido no Brasil, é que é preciso pautar o debate público por meio de avanços e deixar a oposição correndo atrás dos assuntos.
Parlamentares conservadores chilenos, inclusive, já avisaram que não devem votar a reforma do sistema de pensões do governo como retaliação. E, sem querer, Boric ganha outro ponto ao botar a bola no campo do adversário para que eles expliquem porque colocam seus valores pessoais acima das pautas necessárias para o dia a dia.
Logicamente, vamos colocar em perspectiva: é mais fácil para Boric já que o Chile não tem uma extrema direita tão histriônica que grita mentiras na câmera frontal do celular no meio das sessões.
O governo brasileiro ainda joga na defesa e evita brigas em avanços sociais, sempre de olho no termômetro das redes sociais pautadas pelos escandalosos bolsonaristas. Só que decisões progressistas se provam no longo prazo. Algumas deles, decididas no plenário do STF, já são realidade.
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