Por Angela Boldrini
(Folhapress) — O Hospital da Mulher, principal serviço de referência em aborto legal no estado de São Paulo, não realiza o procedimento nos casos em que a gestação é resultado de retirada de preservativo sem consentimento. A prática é um dos tipos de violação sexual mediante fraude, crime previsto no Código Penal desde 2009.
A reportagem obteve a informação de que o aborto não é autorizado quando a principal violência relatada é a retirada da camisinha sem autorização — prática conhecida como “stealthing” — e a confirmou com pessoas próximas ao serviço de abortamento legal do Hospital da Mulher. Houve ao menos duas recusas em 2024.
A rede municipal paulistana de aborto legal, por sua vez, realiza o procedimento em casos de “stealthing”, afirma a Secretaria Municipal de Saúde.
A Secretaria de Estado da Saúde foi questionada sobre o porquê das recusas e confirmou que não faz o procedimento em casos de retirada de preservativo. Em nota, a pasta afirmou que “segue todas as previsões legais e normativas federais vigentes relativas à interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, visando garantir a segurança, o acolhimento e o atendimento humanizado às mulheres”, e que “o protocolo para os casos citados pela reportagem está em discussão pelo Legislativo e Judiciário no país”.
Segundo especialistas consultados pela reportagem, há embasamento técnico e jurídico para realizar o aborto legal em casos de retirada de preservativo sem consentimento.
Norma técnica de 2012 do Ministério da Saúde, por exemplo, afirma que o “abortamento é permitido quando a gravidez resulta de estupro ou, por analogia, de outra forma de violência sexual”. Além disso, a Lei Maria da Penha inclui em seu rol exemplificativo de violência sexual qualquer conduta que “impeça [a mulher] de usar qualquer método contraceptivo”.
Aborto legal em debate
No Congresso Nacional há dois projetos de lei de 2022 em discussão. Eles tramitam na Câmara dos Deputados e preveem a inclusão de um artigo específico relacionado ao “stealthing” no Código Penal, que seria numerado como “215-B”, em referência ao artigo 215 da legislação atual.
Com redação dada pela lei 12.015, de 2009, o artigo 215 dispõe sobre a “violação sexual mediante fraude” e diz que “este crime ocorre quando alguém tem conjunção carnal ou pratica outro ato libidinoso com outra pessoa, mediante fraude ou outro meio que impeça a livre manifestação de vontade da vítima”. A pena prevista é de dois a seis anos de reclusão.
Na proposta feita pelos projetos de lei, que foram apensados (juntados) e aprovados pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara em 2023, a prática de retirada de preservativo sem consentimento seria punida com reclusão de um a quatro anos. Não houve movimentação do projeto desde então.
A Defensoria Pública de São Paulo afirma, em documento obtido pela Folha, que o artigo 215 do Código Penal já engloba a prática de retirada de preservativo sem consentimento e que, portanto, as gestações decorrentes dessa violência são passíveis de aborto legal.
Em janeiro de 2023, o Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha, no Campo Limpo (zona sul de São Paulo), fez uma consulta ao órgão sobre qual conduta adotar no seu serviço de aborto legal em casos de violação sexual mediante fraude. Na resposta, a Defensoria afirma que a interrupção deve ser acatada “sempre que a narrativa da mulher atendida corresponder a qualquer das hipóteses violência sexual”.
A unidade do Campo Limpo é uma das que realiza o procedimento na rede paulistana de saúde em casos de violação sexual mediante fraude.
De acordo com o ofício, a mudança das condições da relação sexual sem autorização invalida o consentimento inicial oferecido pela vítima. “Isso porque o consentimento da mulher foi emitido diante de condição específica, o uso do preservativo. A retirada dessa condição, em momento posterior à emissão do consentimento e sem conhecimento da mulher, faz com que seu consentimento seja viciado e, portanto, inválido”, diz o documento.

Rio de Janeiro — Mulheres defendem legalização do aborto e protestam contra CPI na escadaria da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Em 2020, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal autorizou o aborto legal de uma mulher vítima de “stealthing” que foi obrigada a continuar o sexo após a retirada do preservativo, entendendo que houve invalidação do consentimento anterior. O procedimento havia sido negado pelo juiz de primeira instância.
Organizações da sociedade civil que apoiam mulheres que buscam serviços de aborto legal afirmam ter encontrado dificuldades em casos de violência sexual mediante fraude no Hospital da Mulher.
“Como já tivemos recusas, hoje em dia procuramos já encaminhar essas pacientes para outros serviços”, afirma a advogada Rebeca Mendes, da ONG Vivas. “Não importa se esse ato começou consentido, se a mulher não soube da retirada [do preservativo] na hora, isso é violência sexual.”
Em São Paulo, o aborto legal em casos de “stealthing” é realizado nas seguintes unidades: Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio (Tatuapé), Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha (Campo Limpo), Hospital Municipal Tide Setúbal, e Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mário Degni (Jardim Sarah).
Serviços de referência em outras regiões do país também permitem acesso ao procedimento, como o Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), no Recife.
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