Por Catarina Duarte — Ponte Jornalismo
O silêncio ainda mata muitas mulheres. No primeiro semestre deste ano, 81,1% das vítimas de feminicídio no Brasil foram mulheres que nunca antes haviam registrado um boletim de ocorrência ou obtido medida de proteção contra seus agressores. O dado é do relatório do Monitor de Feminicídios no Brasil, elaborado pelo Laboratório de Feminicídios no Brasil (LESFEM).
Entre janeiro e junho, o Monitor registrou 905 casos com indícios de feminicídio consumado e 1.102 tentativas. A média diária foi de 4,98 feminicídios e 6,05 tentativas. Em comparação com o semestre anterior, o aumento foi de 4,8% nas mortes e de 319% nas tentativas. Segundo o Código Penal, feminicídio é a morte cometida em razão de a vítima ser uma mulher.
O relatório também mostra que o “feminicídio íntimo” é o mais comum. A tipologia diz respeito a casos em que o agressor fez parte do círculo de intimidade da vítima, como um marido ou ex-companheiro. E é aos finais de semana, especialmente no domingo, que a maioria dos casos (consumados ou tentados) ocorre. O período concentra um terço dos registros.
Para a socióloga Silvana Mariano, professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e coordenadora do LESFEM, a concentração de mortes aos finais de semana e a autoria, quase sempre ligada a pessoas que têm intimidade com as vítimas, evidencia que o feminicídio difere de outros crimes. “Essa é uma natureza particular do feminicídio. Nos outros crimes em que temos taxas significativas, não existe vínculo entre vítima e réu”, diz.
A casa não é um local seguro, já que é onde mais feminicídios são praticados e tentados: 58,7% e 48,9%, respectivamente. O crime não atinge apenas a mulher. O relatório mostra que, em 17,8% dos casos consumados, os filhos estavam presentes e viram as mães serem mortas.
O LESFEM calculou a taxa de feminicídios consumados e tentados a cada 100 mil mulheres por estado. Os números populacionais foram retirados do Censo de 2022. Nesse caso, a taxa média nacional ficou em 1,03. Onze estados registraram números acima da média nacional, sendo que a maioria se concentrou na região Norte e Centro-Oeste, formando uma espécie de cinturão. O Mato Grosso do Sul lidera, com dois casos para cada 100 mil mulheres.
As hipóteses que explicam o cinturão de feminicídios acima da média nacional concentrado nas regiões Centro-oeste e Norte têm relação com os processos de urbanização, diz Silvana.
A pesquisadora aponta que o estilo de vida urbano tende a ser acompanhado pela conquista de direitos pelas mulheres. Estruturas de proteção dos direitos das mulheres também se mostram mais presentes neste cenário. Tal aspecto pode ajudar a explicar o fenômeno do cinturão do feminicídio naquelas regiões.
Sobreviventes do feminicídio
O relatório divulgou dados de feminicídios consumados, mas também das tentativas. A pesquisadora destaca a importância de não limitar a análise apenas para os feminicídios consumados e a urgência em falar das tentativas e das sobreviventes. Silvana afirma que existem necessidades específicas desse grupo, que precisam ser abarcadas por políticas públicas.
A pesquisadora sabe bem do que está falando. A irmã dela, Cidnéia Aparecida Mariano da Costa, 35 anos, foi uma sobrevivente. Ela ficou tetraplégica após ser agredida por um ex-companheiro em 2019. Há três anos, faleceu.
Cidnéia precisou de cuidados após o crime. Itens como fralda geriátrica, necessários na rotina, foram obtidos por via judicial. Para a irmã, o Estado e a sociedade têm de prover condições para reabilitar e dar bem-estar à vida da mulher sobrevivente. ”O enfrentamento ao feminicídio envolve também a reparação de danos”, diz.
Subnotificação
O monitoramento dos feminicídios é feito pelo LESFEM desde janeiro de 2023. O Laboratório é uma parceria entre Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade Federal de Catalão (UFCAT), além da cooperação com diversas outras instituições.
Os dados são levantados a partir de notícias veiculadas na internet. O trabalho conta com auxílio de Inteligência Artificial, que varre os sites em busca de termos que detectem possíveis casos e exclui casos repetidos dos materiais computados.
A pesquisa monitora e computa casos com indícios de feminicídio, conforme definição de postulações como as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres (feminicídios). O documento fala em um núcleo comum a esse tipo de crime: a desigualdade de gênero como causa da violência que as mulheres sofrem.
A expectativa era de que os dados do relatório dessem conta de um número menor de casos do que os computados pelo governo federal. Mas não foi o que aconteceu. Os dados divulgados pelo Sistema Nacional de Segurança Pública (Sinesp), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em comparativo feito até abril deste ano, mostram subnotificação de registros.
A coordenadora do LESFEM explica que a subnotificação tem como raiz uma falta de protocolos unificados. Silvana lembra que o feminicídio é uma qualificadora do crime de homicídio. Em muitos estados, diz, a polícia registra feminicídios como homicídios, sem a qualificadora. Assim, os dados das mortes de mulheres acabam encobertos. Isso ajuda a entender a diferença nos dados coletados pelo laboratório em relação aos dados do Ministério da Justiça.
Os dados subdimensionados derivam muitas vezes da falta de perspectiva de gênero das autoridades policiais, defende a pesquisadora.
Para Silvana, a sociedade ainda engatinha nas discussões sobre o feminicídio. Mesmo com a ampliação de consciência em muitos grupos sociais, ainda sobrevive o entendimento que culpabiliza a vítima.
Ela cita como exemplo tribunais de júri para casos de feminicídio. O roteiro mais comum é o de colocar a vítima como motivadora da circunstância e converter o agressor em vítima. “Isso é inaceitável. É fruto dessa sociedade patriarcal em que vivemos e que precisa ser desconstruída”, diz.
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