Por Luana Lisboa
(Folhapress) — Cerca de 36% dos pacientes encaminhados para comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos pelo Hub de Cuidados em Álcool e Outras Drogas — principal serviço do governo do Estado de São Paulo para tratar dependentes químicos — passam por internação mais de uma vez.
A informação consta em documento assinado pelo diretor técnico da unidade e enviado à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em resposta a questionamentos feitos pelo órgão.
Ex-funcionários ouvidos pela reportagem afirmam que a lógica que tem vigorado no equipamento da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) é a de um esquema de “porta giratória”, com a internação indiscriminada de pessoas, sem que seja pensado um projeto terapêutico e uma política social que beneficie os usuários.
O documento ainda aponta que há uma média de 285 encaminhamentos a comunidades terapêuticas ao mês, o que configura cerca de dez encaminhamentos por dia. A média de internações em hospitais especializados é de 585 ao mês, ou 20 por dia. A maioria dos internados são pessoas em situação de rua que vivem no centro de São Paulo, inclusive na cracolândia.
Internados de forma involuntária
Há ainda cerca de 28 internações involuntárias ao mês. Diferente das internações voluntárias, nas quais o usuário é capaz de assinar sua admissão, as involuntárias ocorrem quando é atestada a incapacidade do paciente de decidir sobre o processo terapêutico. Nesse caso, o pedido de internação é feito por escrito por um parente dos internados ou por um agente de saúde.
Através de nota, a Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo disse que a unidade faz um trabalho multidisciplinar, especializado e humanizado, “proporcionando ao paciente um tratamento individualizado e uma porta de saída para a dependência química”. Afirma ainda que as internações involuntárias representam menos de 5% do total e que são notificadas ao Ministério Público dentro de 72 horas, conforme previsto em lei que trata dessas internações.
O Hub funciona onde antes era o Cratod (Centro de Referência de Atendimento a Tabaco, Álcool e Outras Drogas) e agora é administrado pela SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina). Com a mudança, assumiu o centro Quirino Cordeiro Júnior, atual diretor técnico, ex-titular da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas na gestão Bolsonaro e defensor do uso de comunidades terapêuticas no tratamento de usuários.
Segundo o psicólogo Diego Rennó, que trabalhou no local até março, com a mudança na administração, todos os pacientes passaram a ser encaminhados para as comunidades ou hospitais. Os profissionais também não podiam mais negar internação para nenhum usuário que chegasse ao serviço.
“No início, os envios eram intensos, a qualquer momento. Com o tempo, o serviço percebeu que os internados iam e em um dia, dois, uma semana retornavam”, afirma.
“A grande maioria dos usuários de substância que estão na rua procuram o tratamento em busca de moradia, um lugar para tomar banho, para descansar. Na maioria das vezes, ficam uma semana, se recuperam do uso excessivo. O usuário voltava e encontrava a mesma situação, sem emprego, na rua, sem família. É um programa falho, simplesmente para ‘limpar’ as ruas”, avalia Diego Rennó.
A política de internação é apoiada ainda pela gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB), que indica usuários ao Hub. O centro tem uma oferta de vagas diárias destinadas exclusivamente às equipes do SCP (Serviço de Cuidados Prolongados) Externo, que fazem abordagens na cracolândia.
Um relatório do Comuda-SP (Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool) aponta que o SCP também encaminha os usuários para internação no Hospital Cantareira, Instituto Perdizes e Hospital Psiquiátrico Lacan, em São Bernardo do Campo, onde são direcionadas mulheres gestantes e pacientes trans.
O documento traz relatos de trabalhadores que mencionam encaminhamentos a internações involuntárias de gestantes pelo Caps AD IV Redenção (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas). O relatório aponta também uma ineficácia das internações.
“Existem diversas portas de entrada para as políticas de internação e pouquíssimas portas de saída, onde os usuários muitas vezes se encontram em uma porta giratória, sendo internados e retornando ao fluxo da cracolândia por diversas vezes”, diz o documento.
A Secretaria Municipal da Saúde diz que a parceria com o Hub se dá por meio do encaminhamento de pacientes para múltiplos atendimentos e que a distribuição de vagas, bem como toda a operação do equipamento, é de responsabilidade do governo estadual.
Afirma também que não recebeu denúncia em seus canais oficiais sobre as internações involuntárias e que a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social conta com o Núcleo de Atendimento ao Cidadão, Ouvidoria e Controle Interno (NACI), que oferece atendimento para denúncias de pessoas vulneráveis.
Segundo a defensora pública do estado de SP, Cecília Ferreira, do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH), em diálogo com o Hub, o órgão ouviu que a fiscalização desses espaços não é feita pelo estado, mas pela OSC (Organização da Sociedade Civil) Samaritano São Francisco de Assis, que gerencia as vagas.A maior parte das comunidades (41) fica no interior do estado, sendo apenas duas na capital.
“Eles não sabiam a natureza das comunidades terapêuticas que estavam encaminhando essas pessoas, não sabem se têm práticas religiosas, se adotam todas a mesma abordagem. Deveria ter um acompanhamento entre o Hub que encaminha e as comunidades que recebem, uma adequação do serviço que foi ofertado”, diz a defensora pública Cecília Ferreira.
A OSC Samaritano foi procurada desde o último dia 9 pela reportagem, e não respondeu aos questionamentos até a publicação da matéria.
Segundo Michel Marques, coordenador do centro de convivência É de Lei, que atua na promoção da redução de danos associados ao uso de drogas, a atuação ideal seria o melhor aproveitamento de espaços como os Caps Álcool e Drogas do centro da cidade, com uma equipe multiprofissional que consiga fazer um atendimento individualizado.
“O cuidado precisa ser feito dentro do território, para que a gente precisa construir na pessoa recursos internos para ela saber lidar com essas questões”.
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