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Lindener Pareto

Professor e Historiador. Mestre e Doutor pela USP. Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). Apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação de História, Cultura e Arte nos canais do ICL.

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Vargas, meu avô e o legislado sobre o negociado

"Vargas estava morto. Mas seu gesto suicida foi uma jogada de mestre sem precedentes. Barrou a sanha golpista e colocou o povo na rua contra a UDN, contra os generais, contra Carlos Lacerda e contra os interesses americanos."
25/08/2024 | 05h00

Dizia o meu avô que no dia 24 de agosto de 1954 — quando Getúlio Vargas atirou contra o próprio coração no Palácio do Catete — estava de serviço num quartel do exército em algum canto da cidade do Rio de Janeiro. Meu avô, um jovem trabalhador da baixada fluminense, tinha então 21 anos e testemunhou uma das maiores comoções populares não só de sua vida, mas de toda História brasileira.

Nunca um suicídio foi tão doloroso, tão divulgado, estudado, retratado, quase mesmo cultuado na história de um país. Milhares de pessoas saíram às ruas virando carros de jornais anti-varguistas, quebrando vitrines de multinacionais americanas, dizendo palavras de ordem contra os golpistas que chantagearam o Presidente durante anos, numa campanha de pressão e difamação poucas vezes vista na história política desde o advento das democracias liberais contemporâneas.

Getúlio Vargas estava morto e o Brasil em prantos diante da saída triunfal e trágica do homem que preferiu tirar a vida a ter que se submeter aos golpistas da UDN e aos militares que pediam a sua renúncia. Vargas, que governou por assim dizer duas vezes, governou primeiro entre 1930 e 1945, durante quinze anos ininterruptos, a ponto de chamarmos tudo isso de “Era Vargas”. Foi nesse período que reinventou o Estado Brasileiro, desbancou os paulistas, cooptou os intelectuais, criou novos ministérios, como o da Educação e da Saúde, liderado por Gustavo Capanema, e o Ministério do Trabalho, chamando para o Estado a responsabilidade por uma certa proteção social, a consolidação dos direitos trabalhistas. Lembremos que para um país recém-saído da escravidão (1888) e profundamente dominado pelas elites quatrocentonas, a proteção social foi mesmo uma espécie de revolução.

É bem verdade também que Vargas foi ditador, mandou fechar o congresso em 1937, consolidando a clássica desculpa do “fantasma do comunismo.” Prendeu Luis Carlos Prestes em 1935 e deportou Olga Benário (alemã e judia) para a Alemanha de Hitler, por conseguinte, para as câmaras de gás dos campos de concentração. Vargas concentrava na figura de Filinto Müller — chefe da Polícia Política — seus desígnios mais perversos, a sevícia e a tortura.

Contudo, já estamos todos vacinados (ou não) nesse Brasil de tantas reviravoltas, não? Vargas, depois de alguns anos afastado da cena política maior, volta eleito democraticamente em 1950, numa campanha que pedia a volta do “retrato do velho” nos “braços do povo”. E, acreditem, numa campanha que contou com o apoio de nada mais nada menos que o comunista Luis Carlos Prestes, o mesmo que ficou preso por quase 10 anos sob a ditadura do “antigo” Vargas. Antigo porque o “novo” — supostamente — era não apenas um democrata exemplar, mas um presidente que com seu trabalhismo deu aumento de 100% no salário mínimo, criou a Petrobrás e se colocou contra os interesses das empresas multinacionais norte-americanas num período em que a “Guerra Fria” caminhava para o auge.

Não demorou muito para que jornais e rádios de seus adversários políticos começassem uma guerra sem trégua contra Vargas, sua família e seus aliados. Carlos Lacerda e a UDN (União Democrática Nacional) foram implacáveis. Apoiado pelos interesses norte-americanos e por setores golpistas (sempre eles) das Forças Armadas, Lacerda se torna a voz da oposição e o pivô da crise que levou o governo à lona. No dia  5 de agosto de 1954, Lacerda sofreu um atentado. Conseguiu se salvar, mas o Major Rubem Vaz, da Aeronáutica, levou um tiro no peito e morreu a caminho do hospital. Na esteira do atentado contra o grande adversário de Vargas, a gota d’água para muitos generais pedirem a renúncia do presidente foi a investigação do crime, cujas pistas apontavam para a figura de Gregório Fortunato, chefe da Guarda Presidencial e homem de confiança de Getúlio. Fortunato foi acusado de ser o mandante, tendo sua vida devassada, o que revelou diversos negócios escusos e, no mínimo, suspeitos.

O fato é que Getúlio Vargas estava “cercado” e o Catete era a sua derradeira trincheira. Na madrugada do dia 24 de agosto, após o conselho de diversos ministros, concordou em se licenciar do cargo, desde que fosse garantida a ordem pública. Tancredo Neves, então Ministro da Justiça, tentou articular uma certa resistência, mas foi voto vencido. Os generais queriam a cabeça do presidente e assim o fizeram, exigindo nada menos que a renúncia. Restou a Getúlio entregar seu coração. Pouco antes, Vargas alertara seus ministros, “se me quiserem depor, só encontrarão o meu cadáver.”

Por volta das 8h da manhã, um estampido seco e trágico foi ouvido pelos moradores e trabalhadores do palácio presidencial. A filha de Vargas, Alzira, Tancredo Neves, Lutero Vargas, seu filho, e Dona Darci, sua esposa, correm até o quarto e encontram Getúlio caído, com meio corpo fora da cama, pijama listrado, com um revólver Colt calibre 32 perto da mão direita. Na altura do peito, um buraco de bala e um coração sangrando aos borbotões, pelo povo.  Agonizando, Vargas fixa seus olhos moribundos em Alzira, sua filha querida, e se despede da vida para entrar na História.

Na cabeceira da cama, uma carta, a famigerada carta-testamento, que de imediato se torna uma manifesto político transmitido via rádio para todo Brasil e lida pelos ministros e amigos mais próximos no enterro em São Borja, no Rio Grande do Sul. Vargas escreveu de próprio punho uma primeira versão e há uma segunda — a mais conhecida — que foi datilografada e eternizada em todos os livros de história que desde então percorrem todas as escolas, repartições, casas e famílias do Brasil.

“Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”

Vargas estava morto. Mas seu gesto suicida foi uma jogada de mestre sem precedentes. Barrou a sanha golpista e colocou o povo na rua contra a UDN, contra os generais, contra Carlos Lacerda e contra os interesses americanos. De muitas maneiras, deu um sopro de vida para a democracia brasileira, adiando o golpe, que viria em 1964 contra seu herdeiro político, João Goulart.

Com efeito, o suicídio de Vargas é sempre um alerta. Alerta porque sua política nacionalista e trabalhista — alicerçada pela luta da classe trabalhadora — aponta para um Estado indutor do desenvolvimento econômico e social, fundamental para uma sociedade mais justa. Toda a história política do Brasil pós-Vargas é na verdade sobre o Brasil de Vargas. Sobre as estatais, sobre a distribuição de renda, sobre a legislação trabalhista, sobre trabalho, renda, emprego, cuidado, cultura, educação. Fernando Henrique Cardoso tentou destruir esse legado, não conseguiu. Temer e Bolsonaro atacaram como nunca esse legado, conseguiram parcialmente. O legado está em disputa neste exato instante. Neoliberalismo ou “Social-Desenvolvimentismo”? Eis a questão.

Voltando ao meu avô, por volta do ano de 2006, décadas depois de ter testemunhado a comoção do povo diante do suicídio de Getúlio, tomando uma cerveja comigo em algum botequim de Santo André, ele dispara:

— Junior, o que tu acha de Getúlio?

Estudante de História desavisado, respondi:

— Porra, vô, Vargas foi um ditador! Implantou a Ditadura do Estado Novo em 1937, fechando o Congresso, perseguindo, torturando e exilando!

No que meu avô, um trabalhador da baixada fluminense e depois marceneiro e operário no ABC-Paulista, responde à sua clássica maneira:

— Pombas, garoto! Vá à merrrda! Estudou 5 anos de História na USP pra isso?!

Tomei mais um gole de cerveja e não ousei responder nada. Que saudades do meu avô, da proteção social e do legislado sobre o negociado.

JK no velório de Getúlio Vargas, 1954. (Fonte: ALESP)

Multidão enfurecida com o suicídio de Vargas tomba e destrói carro do jornal ‘O Globo’. 1954. (Fonte: CPDOC-FGV)

Ao centro, João Goulart, Oswaldo Aranha e Tancredo Neves discursam no enterro de Getúlio Vargas. São Borja, RS. 1954. (Fonte: Brasiliana-USP)

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