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Por Matheus Pichonelli*

Quando o roteiro de “Motel Destino” começou a ser escrito, em 2016, o diretor Karim Aïnouz tinha outros planos para Heraldo, o protagonista de 21 anos do longa que foi aplaudido por 12 minutos ao fim da exibição, em maio, em Cannes. O filme estreou nesta quinta-feira (22) nos cinemas brasileiros.

“Era outra história”, conta ele em uma entrevista por videochamada ao ICL Notícias.

O texto, segundo ele, não era muito diferente da versão final. Estava (quase) tudo lá. O que mudou foi o contexto.

A ideia original era falar de uma geração atravessada por políticas sociais dos anos 2000, como o Bolsa Família, mas que na década seguinte começou a penar para adentrar no mundo econômico e ascender socialmente.

“Eu queria falar de uma geração que não derrapa, mas que é impelida o tempo todo ao ilegal, como na época da abolição, em que as pessoas eram livres, mas não podiam trabalhar. E se você estivesse na rua sem fazer nada era preso pela Lei de Vadiagem.”

Este universo é retratado por Aïnouz em Madame Satã, de 2002. Nele o personagem homônimo interpretado por Lázaro Ramos precisa se contorcer na ilegalidade para sobreviver.

Karim Aïnouz. (Foto: Maria Lobo)

“Em ‘Motel Destino’ fizemos um processo um pouco paralelo. Eu entrevistei cerca de 20 garotos do Ceará que estavam inseridos em centros socioeducativos. E uma coisa que me assombrava muito quando o roteiro foi escrito é a questão do desamparo. Esse é o grande combustível das igrejas evangélicas.”

Oito anos e uma pandemia depois, o filme que entra em cartaz agora não pisa neste território específico das religiões e das promessas de acolhimento.

Mas a temática segue intacta.

O longa — que Aïnouz classifica como um “noir equatorial” — fala de um personagem em absoluto desamparo. “Ele está despido de tudo. Não tem pai, não tem mãe, não tem lugar para morar. Tem que roubar, se não ele morre. Ele quer ir embora para São Paulo e não pode porque tem uma dívida contraída pelo irmão.”

A história se passa no motel de uma cidade do interior do Ceará, onde o protagonista, ameaçado de morte, busca abrigo após uma fracassada tentativa de assalto. As cenas externas são raras.

Naquele lugar de cores vibrantes e sexo por todos os cômodos, ele passa a oferecer serviços gerais para os donos do motel em troca de proteção. O perigo está lá fora.

Sim, você já ouviu isso durante a pandemia.

E, sim: assim como muitos lares do país, os ambientes de confinamento, e supostamente protegidos entre quatro paredes, não estavam imunes à explosão de outras epidemias, como a violência e o terror das hierarquias impostas de cima a baixo. No longa de Aïnouz esse papel é assumida por Elias, o patrão meio empreendedor/meio miliciano interpretado por Fábio Assunção.

“O DNA do personagem do Heraldo mudou muito depois da pandemia e do governo fascista (de Jair Bolsonaro). E passou a ser o DNA da urgência. Uma urgência de viver porque tudo foi tirado dele. Por isso o filme é superlativo até o fim”, resume o diretor.

“Motel Destino” chega aos cinemas quase duas décadas depois de outra incursão do diretor cearense em sua terra natal com “O Céu de Suely” (2006).

E o contraste entre os dois países que ele encontra em dois momentos históricos tão distintos é visível.

Aïnuz resume o longa de 2006 como o retrato da volta do nordestino para o Nordeste. “Ele fala que o Nordeste é um lugar possível de se viver novamente. Era toda uma geração que foi embora para São Paulo e retorna.”

No filme, a protagonista vivida por Hermila Guedes se muda para Iguatu (CE) com o filho recém-nascido e à espera do marido – que some e nunca mais dá notícia. Lá, ela reencontra as raízes fincadas em casa, nos relacionamentos familiares e nos campos afetivos. “É a história de um porvir”, resume.

Esse giro por um Nordeste novamente possível é retomado anos depois na parceria de Aïnouz com Marcelo Gomes em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009), que retrata um processo de neocolonialismo chinês do Ceará através das feiras comerciais povoadas por produtos fabricados no gigante asiático.

Ambos os filmes falam da liberdade de ir e vir de personagens atravessados por motos, caminhões, estradas e planos abertos. Tudo o que é simplesmente suprimido pela claustrofobia de um quarto de motel onde tudo explode — da tensão sexual entre o jovem e a atendente Dayana (Nataly Rocha), mulher do proprietário, à violência do homem caquético atraído e assombrado pela pulsão e testosterona que sobram no visitante — e que precisa ser compensada com álcool, controle, fetiches e brinquedos sexuais.

O poder é o sexo dos velhos, diria Leminsky.

Karïm compara o tesão latente do filme à experiência de voltar a trabalhar no país ao fim da pandemia. “O filme acaba trazendo esses dois elementos. O Heraldo é parte de uma geração que foi sequestrada e proibida de adentrar ao futuro. E durante esse processo o próprio Brasil foi sequestrado. Nós fomos quase mortos. Eu nunca tinha pensado no filme como um espaço metafórico do que a gente viveu na pandemia. Porque não foi escrito para isso”, resume. “Mas é completamente legítima essa leitura. Ele fala de seu tempo de maneira impressionante.”

Inconscientemente, completa o diretor, “Motel Destino” tem algo muito redentor. Novos tempos?

 

*Matheus Pichonelli é jornalista, roteirista do ICL Notícias, e autor da newsletter https://matheuspichonelli.substack.com/ 

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