Por Joana de Vilhena Novaes*
Nas últimas semanas observamos reacender, nas redes sociais, o polêmico debate sobre o Projeto de Lei 1.459/2022, também conhecido como “PL do Veneno”. Aprovado pelo Senado em novembro de 2023, seguiu para sanção do presidente Lula.
Originalmente tratado como assunto relativo à saúde pública, agora ressurge como “pauta de costumes”, em função do aspecto moral que a dietética assumiu na cultura neoliberal.
Para aqueles que não estão familiarizados, o projeto flexibiliza as regras de aprovação, registro e comercialização de agrotóxicos, reduzindo a regulação e interferência dos órgãos fiscalizadores, de modo a permitir o registro de produtos mutagênicos, cancerígenos, teratogênicos e tóxicos para o sistema reprodutivo. Como se não bastasse, em 2022, pesquisadores da Fiocruz publicaram um documento denunciando os 12 retrocessos e falácias propagados pelo Projeto de Lei 6.299 — numeração original do PL quando o mesmo fora originalmente proposto pelo então senador Blairo Maggi (ex-ministro da agricultura).
Muito embora a nova composição da cesta básica priorize alimentos in natura (leguminosas, frutas, cereais, oleaginosas, leite, ovos, etc) ou minimamente processados, a pauta central parece girar em torno da reforma tributária. Ou seja, de que a taxação dos ultraprocessados siga o modelo das bebidas alcoólicas e do cigarro.
A alimentação é uma necessidade básica permeada por processos históricos referentes ao desenvolvimento econômico, cultural e demográfico de cada nação. Assim, o ato de comer não representa apenas o fato de reunir elementos nutritivos importantes para o organismo; antes de tudo, é um ato social que expressa o mundo da necessidade, da liberdade, da dominação e do desejo.
O avanço da economia no Brasil é um marco importante na história da alimentação no país, pois o primeiro salário mínimo, instituído em 1940, por Getúlio Vargas, teve como base de cálculo o que se convencionou chamar de cesta básica. Na economia brasileira, o processo de industrialização teve seu crescimento a partir da década de 70. Acrescenta-se ao contexto econômico atual e do final do século 20 o Plano Real, que deu início à fortes mudanças na economia e propiciou um aumento real do poder de compras.
O sistema capitalista de produção, a economia de mercado e a urbanização induziram uma mudança nos padrões de vida e comportamentos alimentares das populações, principalmente devido à rapidez e à facilidade com que o brasileiro absorve itens das culturas americana e europeia, por serem considerados modos de vida “superiores”. Adicionalmente, não é possível ignorar que o consumo de guloseimas e supérfluos, nas classes populares, simbolicamente também está associado ao prestígio de quem superou um passado de miséria e fome, mesmo que referido à geração anterior.
No Brasil, com base nas Pesquisas de Orçamento Familiar (2004), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizadas em 1960, 1980 e 2004, verificou-se que as mudanças no padrão alimentar do brasileiro, nos últimos 30 anos, abrangeram toda a população urbana do país. A taxa de obesidade e sobrepeso da população brasileira atingia 40,6% da população adulta em 2004, sendo 11% (10,5 milhões) de obesos.
Os dados do Ministério da Saúde indicam que a obesidade no país aumentou 60% entre 2006 e 2016. A prevalência da doença passou de 11,8%, em 2006, para 18,9%, em 2016. O crescimento da obesidade pode, inclusive, ter colaborado para o aumento da prevalência de diabetes e hipertensão. A incidência de indivíduos com sobrepeso ou obesos é maior em pessoas com menor ou nenhuma escolaridade. Isso se explica porque, nos países em desenvolvimento, o tipo de alimento consumido na zona rural é diferente daquele consumido na zona urbana, numa relação diretamente proporcional ao poder aquisitivo ou ao nível socioeconômico.
Conforme mencionado anteriormente, a população urbana, de baixa renda, apresenta uma ingestão calórica inferior quando comparada à população rural. Ela acaba consumindo maior quantidade de alimentos processados, como é o caso da salsicha e da linguiça, ou seja, elege os alimentos que conferem uma sensação máxima de saciedade, sendo palatáveis e de menor custo. Deve-se também considerar os avanços na tecnologia de conservação, armazenamento e transportes de alimentos que, superando as fronteiras, distribui pelo mundo enlatados, conservas, refrigerantes, sucos de caixinha, ketchup, hambúrgueres, pizzas, bolos e biscoitos recheados.
A empresa de pesquisa de mercado Datamark Ltda – Market Intelligence, a qual se utiliza de embalagens para fazer suas estimativas, diz que houve um incremento importante na produção dos embutidos, principalmente a salsicha e a linguiça, que, durante a década de 80, tiveram sua produção duplicada. Até 1996 foi multiplicada por 2,8 e 2,3, totalizando uma produção anual de 221.588 toneladas de salsichas e 238.866 toneladas de linguiça. Os alimentos congelados cresceram 126% no período de 1990 a 1996 (totalizando, em 1996, uma produção de 46.141 toneladas).
Em 1980, eram produzidas 20.095 toneladas de salgadinhos industrializados; em 1996 essa produção foi 6,2 vezes maior. A produção de refrigerante cresceu nos últimos dez anos 90%; e de 1990 a 1996 a produção de biscoitos aumentou 108%. É nesse contexto que o aumento da prevalência da obesidade no Brasil torna-se ainda mais preocupante, ao se verificar que esse acréscimo, apesar de distribuído em todas as regiões do país e nos diferentes estratos socioeconômicos da população, é proporcionalmente mais elevado entre as famílias de baixa renda.
Não é difícil imaginar, dado o baixo custo comparativo destes alimentos, a dificuldade dos pais em negarem a seus filhos as guloseimas, ainda que supérfluas e altamente calóricas. A aposta, além de econômica, é indicativa da necessidade, bem como da rara satisfação de possíveis desejos.
A observação do corpo nas classes populares vem em par com a compreensão de que o mesmo é sempre um capital e que os ditames estéticos são indicativos de uma cartografia que precisa ser decodificada. Tal cartografia aponta para um imaginário com valoração moral bastante distinta. Dentro desse contexto, acreditamos ser de fundamental importância a inclusão do racismo como determinante social da saúde.
Neste sentido, saúde e adoecimento estão relacionados a uma série de fatores socioeconômicos e culturais que afetam a integridade física e psicológica, individual e coletiva do sujeito. As condições históricas de inserção social, somadas às condições de moradia, renda, saúde e localização geográfica são elementos determinantes no acesso aos bens e serviços de saúde. Aqui, a definição do conceito filosófico de Necropolítica parece ratificar a tríade: obesidade com seus fatores de comorbidades associados,consumo de ultraprocessados e desigualdade social.
O termo refere-se ao uso do poder político e social, especialmente por parte do Estado. De forma a determinar como algumas pessoas podem viver e como outras devem morrer, por meio de ações ou omissões, gerando condições de risco para alguns grupos ou setores da sociedade, em contextos de desigualdade, em zonas de exclusão social e violência, bem como condições de vida precárias.
Isto posto, acreditamos que uma discussão sobre obesidade, enquanto um problema de saúde pública no Brasil, não possa vir desvinculada da menção aos séculos de escravização da população negra. O que, inequivocamente, contribui para um desigual e desfavorável acesso aos direitos e oportunidades, inclusive de saúde. Essas características se refletem no quadro epidemiológico que evidencia iniquidades e vulnerabilidades no acesso às condições promotoras de saúde.
Ou seja, não à toa, é justamente a população negra e menos favorecida quem sofre o que entendemos ser o nutricídio — resultante de uma alimentação de pior qualidade e que, portanto, estaria associado aos fatores geradores das comorbidades ligadas à obesidade.
Finalmente, acredita-se que o acesso a uma educação nutricional de boa qualidade, através de material escolar coerente com a proposta pedagógica do ensino, leve a comunidade estudantil a se sentir motivada a refletir sobre o significado da saúde, discutindo sobre prevenções, causas e possíveis soluções para uma vida de qualidade. Outro fator importante — que faz parte desse panorama alimentar — a que a família se encontra exposta são as contradições sociais presentes na cultura.
Enquanto se estabelecem programas incentivando estilo de vida e hábitos alimentares saudáveis, não se deixa de comemorar os finais de semana com a feijoada do sábado e o churrasco do domingo, sem contar que todo o prazer e desprazer de um acontecimento na vida das pessoas pode ser compensado com uma bebida, um doce ou um chocolate. Esse fator salienta a ambiguidade das questões culturais presentes no cotidiano da população, bem como um imaginário popular no qual a fartura e a ostentação ainda estão associadas a um ideal de saúde.
*Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza PUC-Rio. Profa. Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA. Autora e organizadora de vários livros e coletâneas, dentre eles: Com que corpo eu vou? Sociabilidade e usos do corpo nas mulheres das camadas altas e populares. Ed. Pallas.
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