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Jogo do Tigrinho e maconha: comparando laranja com banana

Sua sorte e fé pouco importam diante dos algoritmos programados para perder
12/09/2024 | 18h11

Luna Vargas *

Quando pensamos em jogos de azar, logo vêm à mente loteria, rifa, bingo, jogo do bicho, os cassinos dos filmes, apostas em cavalos, futebol e até o bolão da Copa do Mundo. Saindo desse cenário bucólico, corriqueiro e normalizado, a tecnologia trouxe um novo mundo para esse universo: uma infinidade de possibilidades na palma da mão, sem regras claras e materialidade, na qual sua sorte e fé pouco importam diante dos algoritmos programados para perder.

Com lucros bilionários, lavagem de dinheiro, redes de influenciadores promovendo as apostas e muitos danos para os jogadores, o escândalo das bets estourou. Isso desencadeou, nas últimas semanas, uma série de discussões, prisões e movimentações políticas.

Passando para o universo das drogas, ao contrário dos jogos de azar, são substâncias que vêm sendo utilizadas há mais de 10 mil anos, como é o caso da maconha. Vale lembrar que a cannabis medicinal é regulamentada pela Anvisa e está disponível no SUS em mais de 20 cidades do Brasil hoje. Outras substâncias, como a cocaína, têm uso tradicional e médico milenar, e eram vendidas junto com a maconha nas farmácias antes da proibição no início do século 20.

Drogas mais atuais, como as estimulantes da classe das anfetaminas, são amplamente utilizadas e testadas há mais de 50 anos pelo exército americano e vendidas em farmácias em várias formulações no Brasil, como o Venvanse e a Ritalina. O MDMA, com seus efeitos empatogênicos, assim como o clássico LSD, é usado em terapias para estresse pós-traumático. Já os dissociativos, como a cetamina, são prescritos legalmente no Brasil, e há clínicas especializadas em seu uso, principalmente no tratamento da depressão refratária e pensamentos suicidas.

Essas substâncias têm uma relevância medicinal incontestável pela ciência, e seu uso tradicional é inegável. A proibição tem como base as políticas racistas e mercadológicas do século passado, que ainda perduram. Isso gerou um estigma social sem precedentes, desde a implacável máquina de propaganda do governo Nixon e suas medidas imperialistas até o sensacionalismo da grande mídia atual.

Mas e o vício que tanto os jogos quanto as drogas podem gerar nas pessoas e que, em muitos casos, destroem famílias? Tanto os jogos de azar quanto várias substâncias liberam dopamina no organismo, ligada ao sistema de recompensa. É algo que buscamos para aliviar a dor, seja ela física ou psicológica. Segundo Gabor Maté, um dos pesquisadores mais renomados em adição, o vício está relacionado não às substâncias em si, mas aos traumas. E os “vícios” vão muito além de substâncias e jogos, incluindo compras, sexo, entre outros. A experiência dos traumas seria, então, a principal causa que distingue uma pessoa viciada de outra que pratica a mesma atividade e não desenvolve adição.

O renomado neurocientista e professor da Universidade de Columbia, Carl Hart, sintetiza em seu livro “Drogas para Adultos” uma jornada científica de 30 anos em busca das causas cerebrais para o vício em drogas, realizada nos laboratórios da prestigiada Universidade de Nova Iorque. Ao final, ele conclui que os fatores sociais são muito mais relevantes para a adição do que a própria substância. Conclui que o problema atual das “cracolândias” está mais relacionado a questões de moradia, especulação imobiliária e falta de emprego, descaso do Estado, do que ao próprio efeito da droga no cérebro.

Drogas e jogos têm em comum a necessidade de serem legislados e regulamentados para que o governo e as pessoas tenham segurança e controle, diminuindo o impacto pessoal e social em nossa sociedade (o que não significa que a legalização permita acesso amplo e irrestrito, muito pelo contrário). No entanto, não faz sentido comparar as apostas esportivas ao uso de drogas, pois, em nenhum momento histórico, os jogos de azar tiveram a relevância medicinal indispensável que substâncias psicodélicas, a cannabis, o ópio e tantas outras possuem.

Levando ao extremo, se todo e qualquer jogo deixasse de existir na humanidade, nada mudaria. No caso das drogas, é impossível extinguir tantas plantas medicinais e tantos medicamentos derivados delas. O prejuízo social, científico e medicinal da proibição das drogas nos últimos 90 anos é imensurável para a humanidade, e aos poucos esse cenário vem mudando, como por exemplo a onda de legalização e descriminalização da maconha em mais de 60 países.

Apesar de a proibição das drogas ter sido apoiada por propaganda estatal e encarceramento em massa, essas medidas nunca impediram ninguém de usar nenhuma substância. Pelo contrário, fizeram surgir muitas outras, fruto do proibicionismo, como as “Drogas K” (tema que merece outro artigo).

Portanto, apesar de serem temas de discussão social e de necessidade de regulamentação pelo legislativo, historicamente, cientificamente e socialmente, comparar jogos de azar com drogas é como comparar laranjas com bananas.

No cerne da questão, caímos, como sempre, em um sistema que não oferece esperança nem para o usuário de drogas, lícitas ou ilícitas, nem para o clássico pai de família que gasta tudo o que tem em jogos e que, muitas vezes, literalmente, destrói sua vida e a de seus familiares. Com os jogos digitais, como o famoso “jogo do tigrinho”, esse perfil vem mudando e se tornando popular entre crianças e jovens, o que é ainda mais grave.

A busca incessante pela dopamina vem da desilusão de não ter uma vida melhor, de não poder adquirir seus objetos de consumo. Surge do desejo de acabar com a dor e de ter uma vida mais próspera de forma rápida e fácil. Algo impossível em uma sociedade onde os de cima se enriquecem às custas da saúde e esperança dos de baixo. O desespero da alma de quem não consegue visualizar um futuro melhor em uma sociedade organizada em função do privilégio e do capital de poucos.

 

*Educadora, antropóloga, palestrante e fundadora da Inflore, primeira empresa de formação e treinamento para o mercado canábico.

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