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O conceito de vitimismo é amplo, complexo e, infelizmente, passou por muitas distorções nos últimos anos. Segundo o principal conceito, vitimismo é uma pessoa que se passa por vítima mesmo sem exatamente ser assim. Em um exemplo prático, seria uma pessoa que se aproveita de estar em uma situação menos privilegiada para conseguir benefícios.

Atualmente, o termo “vitimismo” é frequentemente utilizado para desqualificar as reivindicações de grupos marginalizados ou minoritários e deslegitimar suas lutas por direitos, justiça social e igualdade. No entanto, levando em conta a complexidade da ideia, sua utilização descontextualizada pode servir como uma arma para silenciar vozes críticas e perpetuar as desigualdades existentes.

Confira o debate em torno do significado de vitimismo e como esse termo tem sido usado pela extrema-direita para abafar debates e tentar cimentar reivindicações de pessoas que foram vítimas reais de opressão e preconceito e agora só querem respeito, empatia e seus direitos.

O que é vitimismo?

Vitimismo, em sua essência, é o comportamento de se apresentar como vítima, de forma exagerada ou inapropriada, para conquistar compaixão e atenção dos outros, sem assumir responsabilidade pelas próprias ações e escolhas. Segundo a psicologia, o vitimismo é um mecanismo de defesa que pode ser usado para evitar encarar uma situação e enfrentar a culpa, a vergonha ou a responsabilidade por seus próprios erros.

Um homem de criação extremamente machista pode, por exemplo, culpar sua família pela educação extremamente conservadora e se isentar da responsabilidade de aprender a ser diferente. Além disso, esse mesmo homem pode repetidamente se “esconder” atrás dessa falta de terceiros (sua família, nesse caso) para se colocar como alguém que não reconhece suas próprias posturas e falas preconceituosas e “precisa” ser constantemente ensinado a fazer diferente.

No entanto, uma mulher que luta para que seu parceiro (ou ex-parceiro) não a ameace mais com uma denúncia formal do caso à polícia, está apenas protegendo seus direitos, incluindo o de segurança e de proteger a própria vida.

Parte da iniciativa de descredibilizar o movimento feminismo vem de espalhar desinformação sobre suas reivindicações ou minimizá-las. Crédito: Revista de Jornalismo ESPM/ Creative Commons

Existe diferença entre o vitimismo e o respeito aos direitos?

A confusão entre vitimismo e a luta por direitos é uma prática comum da extrema-direita para invalidar qualquer reivindicação progressista – e, claro, um dos maiores problemas na utilização desse conceito. É essencial compreender que existe uma diferença entre o comportamento de se apresentar como vítima de forma exagerada e a reivindicação, extremamente legítima, por representatividade e direitos que foram historicamente negados ou violados.

O vitimismo, como comportamento individual, pode ser manifestado por qualquer pessoa, independentemente de sua origem social, gênero, raça ou etnia. É uma forma de se desresponsabilizar pelas próprias ações e escolhas, numa busca pela compaixão e atenção dos outros de forma que a “vítima” possa se sentir melhor ou para obter algum benefício próprio ao apelar para o lado emocional das demais pessoas.

Os povos originários do Brasil são frequentemente classificados de vitimistas por grupos que querem se beneficiar de mudanças nas legislações relacionadas a eles. O agro, por exemplo, tem trabalhado para estabelecer a tese do Marco Temporal e reivindicar mais terras protegidas para usar como pasto. Crédito: Agência Senado.

Os povos originários do Brasil são frequentemente classificados de vitimistas por grupos que querem se beneficiar de mudanças nas legislações relacionadas a eles. O agro, por exemplo, tem trabalhado para estabelecer a tese do Marco Temporal e reivindicar mais terras protegidas para usar como pasto. Crédito: Agência Senado.

É importante destacar que o vitimismo, como mecanismo de defesa, é mais vantajoso quanto menor for o tamanho do grupo que o pratica. Portanto, se for uma situação em que a conduta é coletiva, talvez esse conceito esteja sendo distorcido para mascarar a luta por direitos e justiça social.

Há quem defenda que a defesa dos direitos das mulheres, principalmente o combate à violência de gênero, seja vitimismo exagerado. Essas pessoas ignoram, por exemplo, as estatísticas de agressões e mortes de mulheres – e em sua imensa maioria, causada por parceiros ou ex-parceiros. Se a Lei Maria da Penha existe, é porque muitas mulheres já morreram vítimas dessa violência.

É mimimi ou meu direito?

A luta por direitos é uma questão social que envolve a reivindicação de direitos fundamentais que foram historicamente negados a determinados grupos sociais, principalmente os que sempre foram marginalizados pela sociedade. É a busca por igualdade, justiça social e dignidade para todos, independentemente de sua origem, gênero, raça, orientação sexual ou etnia.

Por isso, nesse caso, não é uma questão de destacar as limitações impostas pelas injustiças, mas dizer que, exatamente em virtude das desigualdades existentes até hoje, não é possível falar em ser vitimista para benefício individual.

Uma situação que ilustra esse caso é a da população negra: existem pessoas bem-sucedidas na sociedade que tenham a pele escura e se identifiquem como negros? Sim, porém essas pessoas são estatisticamente incomuns, em comparação com a predominância de pessoas bem-sucedidas que tenham a pele branca.

Infelizmente a extrema-direita quer fazer de uma exceção a regra, dizendo que só é preciso força de vontade para superar os obstáculos das desigualdades em moradia, educação, saúde e segurança. E, ao insistir na lenda da meritocracia, dizendo que tudo o que pessoas marginalizadas precisam é ter força de vontade, esvaziam as reivindicações por direito, transformando-as em “mimimi”, vitimismo.

A evolução dos direitos universais

O debate sobre vitimismo é frequentemente alimentado pela percepção distorcida de que certos grupos sociais estariam “exagerando” em suas reivindicações ou “se fazendo de vítimas” para obter benefícios especiais. O problema é que essa visão desconsidera a história da luta por direitos e os avanços significativos que foram conquistados por movimentos sociais ao longo dos anos.

É o caso, por exemplo, de pessoas LGBTQIA+ exigindo respeito, direitos iguais no que diz respeito a situações legais como o casamento e adoção de crianças, e até mesmo não serem discriminados em situações com as quais casais heterossexuais não sofreram.

O movimento LGBTQIA+ não planeja instaurar uma ditadura homossexual no país, apenas querem que as pessoas não-heterossexuais sejam respeitadas da mesma maneira, em todas as esferas possíveis. Crédito: Sebastian Dooris/ Creative Commons

O movimento LGBTQIA+ não planeja instaurar uma ditadura homossexual no país, apenas querem que as pessoas não-heterossexuais sejam respeitadas da mesma maneira, em todas as esferas possíveis. Crédito: Sebastian Dooris/ Creative Commons

Antes, homens gays eram presos e obrigados a passar pela castração química (algo que cientificamente não tem nenhuma comprovação) – e até hoje, é ilegal se assumir homossexual em diversos países do mundo. Considerar que eles querem “apenas” ser tratados como pessoas normais, que têm suas vidas e suas famílias, pagam seus impostos e votam não é nada além de justiça social.

A mudança da sociedade por mais inclusão

Ao longo da história, grupos marginalizados lutaram por reconhecimento e igualdade, e conquistaram direitos que antes eram inimagináveis. O direito ao voto para as mulheres, o fim da segregação racial, a legalização do aborto em determinados países, a luta contra a homofobia e a transfobia são exemplos de conquistas históricas que foram obtidas através de movimentos sociais e de lutas por justiça social.

A mudança de percepção em relação a esses direitos é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. O que era considerado “natural” ou “normal” há algumas décadas hoje é reconhecido como uma violação de direitos fundamentais.

Taxar como vitimismo as reivindicações por direitos é um mecanismo de silenciamento e de deslegitimação de lutas justas. É uma forma de negar a história de opressão e de injustiça que marcou determinados grupos sociais e de impedir que eles conquistem a igualdade e a dignidade que merecem.

O vitimismo como problema psicológico

O vitimismo também pode ser compreendido como um problema psicológico, caracterizado por um padrão de comportamento em que o indivíduo se vê constantemente como vítima das circunstâncias e dos outros, sem assumir responsabilidade pelas próprias ações e escolhas.

A pessoa vitimista tem dificuldade de assumir a responsabilidade por seus próprios erros e fracassos, procurando culpados externos para justificar suas situações. Pessoas vitimistas buscam constantemente compaixão e atenção dos outros, tentando se apresentar como incapazes de superar seus próprios desafios.

Além disso, o vitimista tende a negar sua própria agência e capacidade de agir sobre sua própria vida. Ele se vê como um brinquedo do destino, sem controle sobre as circunstâncias que o cercam.

O vitimismo como problema social

O vitimismo também é um problema social que pode afetar as relações interpessoais, o ambiente de trabalho e o debate público. Pessoas vitimistas podem dificultar a construção de relações saudáveis, pois têm dificuldade de assumir a responsabilidade por suas próprias ações e de se conectar com os outros em um nível de igualdade e reciprocidade.

O vitimismo pode polarizar o debate público, impedindo o diálogo e a busca por soluções conjuntas para os problemas da sociedade. A desqualificação de argumentos e de posições como “vitimistas” contribui para a intolerância e para a falta de respeito às diferenças.

O vitimismo e a luta por direitos

O grande perigo da utilização do conceito de vitimismo é que ele pode ser usado para silenciar vozes críticas e deslegitimar lutas justas por direitos e igualdade. É essencial que a sociedade seja capaz de distinguir entre o comportamento vitimista e a legítima reivindicação por direitos que foram historicamente negados ou violados.

É fundamental que a sociedade desenvolva a capacidade de escuta e de entendimento das experiências de grupos marginalizados, reconhecendo as desigualdades existentes e as lutas históricas por inclusão e justiça social. O combate à opressão exige uma mudança cultural profunda, que inclui dar visibilidade a todos os grupos, a desconstrução de estereótipos e a construção de uma sociedade em que todos tenham oportunidades iguais de desenvolvimento pessoal e social.

A empatia e o respeito mútuo são essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É preciso compreender as dificuldades e os desafios enfrentados por grupos marginalizados e se colocar no lugar do outro para construir um mundo mais solidário e justo.

O vitimismo não pode ser usado como desculpa!

O debate sobre o vitimismo é complexo e de grande importância para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É essencial compreender as diferenças entre o comportamento vitimista e a legítima reivindicação por direitos que foram historicamente negados ou violados. A utilização do conceito de vitimismo de forma descontextualizada e instrumentalizada pode servir como uma arma para silenciar vozes críticas e perpetuar as desigualdades existentes.

É fundamental que a sociedade seja capaz de distinguir entre situações reais de vítima e o comportamento vitimista, e compreender as implicações desse comportamento para o indivíduo e para a sociedade. O combate ao vitimismo exige uma reflexão crítica sobre os processos de marginalização e de opressão na sociedade, e a construção de uma cultura de empatia, respeito e solidariedade.

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