No Brasil, temos a ideia de que todo serviço público é ineficiente, cheio de burocracias e com altos custos, enquanto a iniciativa privada tem um modelo enxuto, mais econômico e eficiente de gestão.
Essa narrativa da superioridade intrínseca da iniciativa privada sobre a gestão pública tem sido um mantra repetido à exaustão nas últimas décadas. A promessa de eficiência, modernização e redução de custos ecoa em discursos políticos e econômicos, principalmente desde a década de 1990, quando foi criado o Programa Nacional de Desestatização (PND).
O problema é que antagonizar modelos públicos e privados de gestão frequentemente simplifica uma realidade complexa e multifacetada. A experiência brasileira com privatizações e concessões desde então revela uma história repleta de nuances, contradições e, em muitos casos, resultados decepcionantes.
A privatização seria a solução de quais problemas de gestão?
Na história do Brasil, tivemos períodos de grandes investimentos em obras de infraestrutura, para impulsionar o desenvolvimento do país, mas que também ampliaram a participação do Estado na economia.
Da Era Vargas, que criou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Petrobras e a Companhia Vale do Rio Doce (que hoje conhecemos apenas como Vale), ao período da ditadura cívico-militar, que investiu milhões de empréstimos estrangeiros, temos muitos exemplos de como o Estado impulsionou as obras de infraestrutura e criou empresas estatais. como a Telebrás – que posteriormente seria privatizada e abriria espaço para todas as empresas de telefonia que temos atualmente.
Com a recessão resultante do “milagre econômico”, o debate sobre reduzir gastos públicos e, por consequência, diminuir o tamanho da máquina estatal ganha força. A partir daí, a combinação de crises internas e externas, incluindo a redemocratização e a hiperinflação da época, começam as conversas que levariam à elaboração do Programa Nacional de Desestatização (PND), criado na década de 1980.
Privatizar ou não: eis a questão
A crença de que a privatização é a “bala de prata” para os males da gestão pública ignora diversas questões. Uma delas é a importância de um Estado forte e estratégico, capaz de regular e fiscalizar a atuação das empresas privadas. Outra é que, enquanto as empresas privadas buscam o lucro acima de tudo, o foco principal do Estado é atender à população, garantindo que seus direitos sejam respeitados.
Além disso, tratar a iniciativa privada como modelo perfeito de eficiência e de gestão de recursos também desconsidera a necessidade de fiscalização, de que escândalos de corrupção também afetam empresas privadas, e que os interesses dos dois modelos possuem objetivos diferentes.
Afinal, serviços essenciais como energia, água, saneamento e comunicação não são meras mercadorias, mas direitos fundamentais da população. Privatizá-los pode ser uma preferência pelo lucro (que alimenta o sistema capitalista) em detrimento da manutenção dos direitos humanos.
Desestatização, concessão e privatização: entenda as diferenças
A desestatização é qualquer situação em que o governo transfere a gestão de um serviço ou uma empresa para a iniciativa privada. Privatização e concessão são termos que, embora relacionados à gestão de serviços públicos, possuem diferenças importantes, principalmente no que diz respeito à finitude dessa transferência.
Os mecanismos de uma privatização
Privatização é o modelo de transferência de propriedade, total ou parcial, e envolve a venda de um bem ou serviço público para a iniciativa privada. Nesse padrão, o governo pode transferir a posse completa para uma empresa privada que, geralmente, vence um leilão para assumir o total controle sobre esse ativo. Ou pode, simplesmente, vender ações da companhia sem deixar de fazer parte do Conselho Administrativo, por exemplo.
- Ao vender apenas parte das ações de uma empresa estatal, o governo consegue arrecadar dinheiro para investir em outras áreas e políticas públicas enquanto ainda controla a tomada de decisões dentro dessa mesma empresa. A Petrobras atualmente funciona exatamente dessa forma, com o governo federal tendo cadeiras no Conselho e opinando nas decisões.
- Com a privatização total, o Estado se retira da gestão dessa empresa – e por consequência, não interfere em nada relacionado ao serviço prestado à população. A Embraer é uma das companhias estatais que foram vendidas à iniciativa privada e hoje é uma das principais fabricantes de jatos comerciais, aviões executivos, agrícolas e até militares do mundo.
As privatizações representam o fim do monopólio estatal em um determinado setor da economia, o que para pessoas que pensam que a lógica do mercado pode regular tudo, pode ser benéfico.
Como funciona uma concessão
No modelo de concessão, o governo não transfere totalmente a propriedade do bem ou serviço público, mas delega a sua gestão para a iniciativa privada, mediante um valor a ser recebido e um acordo entre as duas partes sobre como isso será feito. A empresa privada assume a responsabilidade de prestar o serviço por um determinado período em troca de uma contrapartida financeira do Estado.
Dessa forma, o governo mantém o controle sobre o serviço concedido, fazendo uso de um contrato de concessão que define as condições de prestação do serviço, os padrões de qualidade e os mecanismos de fiscalização. O objetivo da concessão é atrair investimentos privados para a modernização e a expansão de serviços públicos, como estradas, aeroportos, portos e o setor de energia.
Isso faz com que o Estado tenha o dever de fiscalizar a empresa concessionária para garantir que o serviço seja prestado com qualidade e eficiência, enquanto a empresa investe parte dos lucros no setor e na operação.
As nuances da desestatização
Cada modelo tem seus próprios prós e contras. A escolha entre privatização e concessão deve ser analisada com cuidado, considerando o tipo de serviço em questão, os objetivos do governo e os impactos sociais e econômicos de cada modelo.
O que diversos críticos apontam é que, no caso do Brasil, as concessões não foram feitas de forma a garantir, nos termos do contrato, os requisitos mínimos para a empresa vencedora. E, se as regras não estão claras, as chances de que a população saia perdendo na qualidade do serviço prestado são muito maiores.
Entendendo a lei das concessões e a privatização no Brasil
A Lei nº 8.987/95, também conhecida como Lei das Concessões, é a delegação da prestação de um serviço público à iniciativa privada por tempo determinado, mediante um contrato. Nesse modelo, o Estado mantém a propriedade do ativo, mas a empresa privada se responsabiliza pela operação e gestão do serviço, seguindo as regras estabelecidas no contrato de concessão.
Concessões públicas, portanto, são um instrumento de parceria entre o público e o privado, mas que exigem rigorosa fiscalização para garantir o cumprimento das obrigações e o atendimento ao interesse público.
Os apagões em São Paulo e o debate sobre privatizações
A crise energética em São Paulo expõe as fragilidades deste modelo, já que as empresas privadas buscam sempre o lucro máximo, uma prática se sobrepõe ao compromisso com a qualidade do serviço – como os paulistanos puderam acompanhar ao menos duas vezes em menos de um ano, com os apagões parciais de novembro de 2023 e outubro de 2024.
A Enel, concessionária responsável pelo fornecimento de energia em parte do estado, enfrentou uma série de questionamentos sobre sua capacidade de investimento e manutenção da infraestrutura, culminando em apagões que afetaram milhões de pessoas.
Além disso, demorou muito mais do que o divulgado para restabelecer a energia em diversos bairros e não forneceu atendimento adequado. Os clientes que solicitaram na justiça uma indenização pelo prejuízo com o apagão de 2023 ainda não tiveram retorno.
Esse caso levanta questões cruciais sobre a eficácia da regulação e fiscalização exercida pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), bem como de todas as agências responsáveis por fiscalizar esses serviços, e a necessidade de mecanismos mais robustos para garantir a prestação de um serviço essencial à população.
Como funciona a fiscalização das concessões?
Tanto as privatizações quanto as concessões precisam seguir um protocolo para serem elaboradas.
- Primeiro, precisam ser qualificadas no Programa de Parcerias e Investimentos do Governo Federal.
- Depois, são incluídas no Programa Nacional de Desestatização (PND), para que sejam feitos estudos de modelagem e viabilidade econômica – afinal, os acordos precisam ser financeiramente interessantes para os dois lados.
- Uma vez concluídos os estudos, a população é ouvida a respeito do assunto por meio das Consultas Públicas.
- Em seguida, o Tribunal de Contas da União (TCU) analisa as possibilidades de privatização ou concessão
- Por fim, é publicado o edital.
- Alguns casos ainda precisam passar pela aprovação do Congresso.
As regras da concessão ou da privatização devem estabelecer pontos como: quanto tempo dura o contrato de concessão, como deve ser prestado o serviço, quais devem ser os investimentos da empresa no setor; quem vai fiscalizar a empresa e a execução do contrato, entre outras coisas.
Infelizmente, no Brasil, diversos contratos de concessão ou privatização acabam beneficiando as empresas, reduzindo ou até mesmo eliminando a obrigatoriedade de contratação de mais mão de obra ou de investimento na infraestrutura.
A polêmica da privatização dos Correios e da Petrobras
Outro exemplo emblemático dos riscos da privatização é a polêmica em torno dos Correios. A argumentação pró-privatização, baseada na suposta ineficiência da empresa pública, ignora o papel social fundamental desempenhado pelos Correios, especialmente no atendimento às populações de pequenas cidades e áreas remotas do país.
A privatização dos Correios acarretaria não apenas a perda de controle estatal sobre um serviço essencial, como também sérios problemas trabalhistas, com a potencial precarização das condições de trabalho e demissões em massa.
Além disso, a lógica do lucro poderia levar à descontinuidade do serviço em regiões menos lucrativas, ampliando as desigualdades regionais e o isolamento de comunidades, já que atualmente os Correios são a única empresa a fazer entregas em todas as localidades dentro do Brasil.
A privatização da Sabesp, empresa responsável pelo saneamento básico em São Paulo, também é motivo de preocupação. A água, recurso essencial à vida, não pode ser tratada como uma mercadoria qualquer. A privatização da Sabesp levanta o temor de aumento das tarifas e da dificuldade de acesso à água por parte das populações mais vulneráveis.
Privatizar é preciso, viver não é preciso?
A experiência com privatização e reestatização de empresas em outros países demonstra que a privatização de serviços essenciais nem sempre resulta em melhorias na qualidade do serviço e, em muitos casos, agrava as desigualdades sociais.
É fundamental questionar a premissa de que a iniciativa privada é sempre sinônimo de eficiência. A busca desenfreada pelo lucro, sem a devida regulação e fiscalização por parte do Estado, pode levar a cortes de custos que comprometem a qualidade dos serviços, a precarização das condições de trabalho e o descaso com o bem-estar da população.
O caso da Enel, os debates em torno da privatização dos Correios e da Sabesp, e inúmeros outros exemplos demonstram a necessidade de uma abordagem mais crítica e criteriosa em relação às privatizações e concessões.
É preciso fortalecer o papel do Estado como regulador e fiscalizador, garantindo que o interesse público seja a prioridade. Afinal, serviços essenciais como energia, água, comunicação e saneamento são direitos humanos, e não objeto de lucro.
Deixe um comentário