Algumas colunas atrás, ainda durante o período eleitoral, escrevi sobre a dança das cadeiras da direita entre Marçal, Nunes, Bolsonaro e companhia, e como essa crise entre direita e extrema direita é uma tendência mundial: ao mesmo tempo em que a direita começa a querer se afastar da imagem de extremismo e vê no centro uma oportunidade para ganhar votos, usa pautas da extrema direita como isca e com isso puxa a régua política ainda mais à direita, não só no Brasil mas também em outras partes do mundo.
Em outro momento, falei sobre como as promessas e parcerias entre esses atores são maleáveis conforme o momento e a conveniência — e como Silas Malafaia, pastor e influenciador político, está muito bravo com tudo isso por ver perigo de cisão das forças extremistas no Brasil.
Agora, com o processo eleitoral concluído, essa crise ou reconfiguração da direita e extrema direita se mostra ainda mais. O chamado Centrão — que, vale lembrar, não é uma massa amorfa e atualmente apoia mais os projetos da direita — levou a maioria das prefeituras na base do fisiologismo e de muito dinheiro de emendas. Porém, como mostra um levantamento feito pelo Intercept Brasil, a direita ganhou terreno em quatro das cinco regiões do país, fortalecendo os planos futuros de Tarcísio Freitas (Republicanos), Nikolas Ferreira (PL) e Gustavo Gayer (PL) — para citar alguns.
O Republicanos, partido da Igreja Universal, presidido pelo bispo Marco Pereira, sigla do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas e da senadora Damares Alves, teria sido o que mais cresceu no país: conquistou 223 novas prefeituras em 2024, uma alta de 102,8%.
No mesmo período, o PL de Bolsonaro e do Coronel Mello Araújo, vice do prefeito eleito de São Paulo Ricardo Nunes, avançou de 349 para 517 (+48,1%), enquanto o PP foi de 701 para 752 (+7,3%). Outro destaque, mostra o levantamento, foi o Novo, que saiu de uma para 19 prefeituras (+1.800%).
Esse crescimento estaria preparando os caminhos da extrema direita para 2026, como o próprio deputado Gustavo Gayer admitiu em um post para suas redes sociais, em que dizia que era preciso eleger o maior número de prefeitos porque serão eles que usarão a máquina e estrutura em 2026 para eleger senadores. No mesmo post, ele dizia que era preciso aumentar o número de prefeitos de direita que tenham posicionamento em comum em “pautas específicas” para apoiar campanhas.
As “pautas específicas” ideológicas da nova extrema direita e da direita brasileiras são conhecidas e basicamente as mesmas: Estado mínimo, isenções, anistias e benefícios para igrejas cristãs (sobretudo evangélicas), a pauta pró armas, anti “woke”, contra o aborto mesmo nos casos garantidos pela legislação brasileira, a defesa de um tipo específico de família — a heteronormativa — a ideia de que há uma “guerra cultural” em curso, o discurso anti feminista, anti comunista, anti LGBTQIA+, o negacionismo climático, a defesa de um nacionalismo exacerbado que toca o neofascismo, o uso indiscriminado e compulsório de fake news etc.
Em entrevista à coluna, a doutora em Antropologia e coordenadora do Observatório da Extrema Direita, Isabela Kalil, diz que acredita mais em uma reconfiguração do que em uma crise da extrema-direita.
“Acho que isso tem a ver inclusive com a inelegibilidade do Bolsonaro. Quer dizer, se Bolsonaro fosse um nome viável para 2026, eu acho que a gente não teria essas possibilidades de alguém assumir a liderança da extrema direita”, diz ela. “Acho que Bolsonaro sai relativamente enfraquecido [desse processo eleitoral], mas o bolsonarismo não — inclusive quando a gente olha para o número de prefeituras que a direita fez e o número de prefeituras que o PL fez principalmente, se a gente for comparar o PL com o PT, o bolsonarismo nesse caso sai fortalecido. O Valdemar da Costa Neto [presidente do PL] tinha feito uma projeção e a meta era ter 1.500 prefeituras e eles tiveram um pouco mais de 500, mas ainda assim é um número maior do que o PT, que tem pouco mais de 200. O resultado é menor do que a expectativa que o bolsonarismo e o PL tinham, no entanto ainda é considerável”.
Para Isabela, a figura mais importante no entanto é a do Nikolas Ferreira: “Ainda que ele não seja uma figura pra 2026, eu acho é a principal figura, com 6 milhões de seguidores no TikTok, mais de 200 vídeos apoiando candidatos. Ele tem sido visto como alguém que saiu enfraquecido como cabo eleitoral, principalmente por não ter emplacado o seu candidato em Belo Horizonte. Mas eu não vejo dessa forma, eu acho que só o fato dele ter se colocado nas eleições mostra a força dele, independentemente do resultado que tenha vindo das urnas”.
Sobre as novas desavenças entre direita e extrema direita, Isabela usa seu conceito do extremismo estratégico, que seria “essa tendência da direita pegar algumas pautas da extrema direita. A direita que a gente não pode taxar como extrema de maneira tão confortável, como por exemplo o Tarcísio de Freitas governador de São Paulo, quando faz uma declaração sobre o suposto salve do PCC para apoiar Guilherme Boulos durante o horário da votação está utilizando de pânico, porque a ideia do salve remete a ideia do salve geral que aconteceu no início da década de 2000 em São Paulo, quando a cidade parou. Isso é uma tática da extrema direita, mobilização de pânico moral ou não e desinformação. E depois ele recua, dizendo que viu isso na imprensa. Mas acho que esse é um bom exemplo de como a direita tenta se posicionar como menos extrema, mas também usa os recursos da extrema direita estrategicamente”.
Vale lembrar ainda do candidato coach Pablo Marçal, que se apresentou como um “outsider” (alguém que vem de fora da política) e em sua primeira candidatura à prefeitura de uma cidade do tamanho de São Paulo, quase chegou ao segundo turno à base de latidos, ofensas e ataques aos candidatos rivais. Mais do que isso, Marçal estremeceu a extrema direita, bagunçou a base bolsonarista, dividiu os votos evangélicos, deixou o “mito” indeciso sobre quem apoiar e foi em grande parte responsável pelo estremecimento da parceria entre Bolsonaro e o novo prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes.
A orquestra cresceu mas, sem maestro, cada um está tocando a própria música. Seria essa uma oportunidade para o campo progressista retomar suas bases?
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