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Lindener Pareto

Professor e Historiador. Mestre e Doutor pela USP. Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). Apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação de História, Cultura e Arte nos canais do ICL.

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O Almirante Negro

"Não queremos o retorno da chibata. Isto é o que pedimos ao Presidente da República e ao Ministro da Marinha.”
24/11/2023 | 05h00

Às 10h da noite de 22 de novembro de 1910, há 113 anos atrás, milhares de marinheiros amotinados na Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, apontaram os canhões dos navios de guerra para o Palácio Presidencial do Catete e dispararam! Começava uma das rebeliões mais emblemáticas da história brasileira: A Revolta da Chibata!

O “Almirante Negro” – João Cândido – lendo o manifesto contra os castigos da Marinha, 1910.

Mas por que parte da Marinha do Brasil cometia o grave crime de ruptura de hierarquia militar e colocava no fio da navalha (ou na linha de tiro dos canhões) o então Presidente Hermes da Fonseca? A resposta é simples! Os marinheiros eram sistematicamente torturados por seus oficiais. Com péssimas condições de trabalho, comida estragada e todos os tipos de maus tratos, os marujos recebiam chibatadas como punição por qualquer tipo de delito que eventualmente cometessem.

Contudo, só é possível compreender a revolta se observarmos – mais uma vez – a estrutura e a instituição de maior duração na história do Brasil: a escravidão! Ora, mesmo com a lei áurea de 1888, parte significativa dos marinheiros era oriunda das fileiras da escravidão, eram homens pretos e pardos cujos pais, ou eles próprios, haviam sido escravizados. No imediato pós-abolição e na construção da República brasileira (1889), um apartheid perverso e silencioso continuava – mesmo que ilegalmente – a escravizar parte significativa dos afro-brasileiros.

Tal era também a condição na Marinha do Brasil. Os oficiais, em geral brancos e de elite, numa permanência implacável do passado escravista no presente, usavam a chibata e as chibatadas para punir e torturar corpos negros. Diante do racismo brutal e estrutural levado a cabo e normalizado pelas estruturas do Estado, os marinheiros se rebelaram, demonstrando que na História do Brasil sempre houve resistência.

O estopim da revolta veio diante da punição ao marinheiro Marcelino Meneses, que por ter levado cachaça a bordo do navio e ter se envolvido numa briga com outro soldado, foi punido com mais de 250 chibatadas. Mesmo desmaiado, continuou a levar as pancadas da história inteira do Brasil escravocrata. Diante disso, a marujada não hesitou. Os marinheiros em revolta tomaram o encouraçado “Minas Gerais” e liderados pelo experiente João Cândido – conhecido como o “Amirante Negro” – ameaçaram bombardear o Distrito Federal se o presidente Hermes da Fonseca não acabasse de vez com os castigos físicos na Marinha do Brasil.

 

No dia 26 de novembro, Hermes da Fonseca, diante do impasse e incapaz de derrotar os revoltosos, anuncia o fim dos castigos e finge anistiar os marinheiros. Porém, poucos dias depois, traídos pelo infame presidente, centenas deles são brutalmente assassinados pelo Governo. João Cândido, líder da revolta, e mais 17 marinheiros são jogados numa cela escavada em rocha viva, amontoados e sufocados com cal virgem, apenas João Cândido e mais um sobrevivem. Outros tantos são fuzilados e dezenas degredados na região Amazônica. Estava consolidada a República brasileira, em mais um banho de sangue contra o povo negro.

João Cândido, expulso da Marinha, foi detido e internado como “louco” no Hospital Psiquiátrico. Marginalizado, foi perseguido e viveu em dificuldade extrema pelo resto de sua vida. Morreu com 89 anos, no auge da Ditadura Militar (1964-1985), em 1969. Sua memória até hoje não foi reabilitada pela Marinha do Brasil. Ao mesmo tempo, sua coragem e luta o colocam como um dos grandes nomes da rebeldia brasileira e da luta pela liberdade e cidadania do povo afro-brasileiro.

Em 1974, desafiando a força bruta dos ditadores, os compositores Aldir Blanc e João Bosco lançam a canção “O Mestre Sala dos Mares”. Mesmo diante da censura, imortalizam na canção–poema – e na voz avassaladora de Elis Regina – a vida, a luta e o legado de João Cândido Felisberto, o nosso eterno “Almirante Negro.”

Contemos com o Almirante do Povo e cantemos assim com Elis:

 

“Rubras cascatas

Jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas

Inundando o coração do pessoal do porão

Que, a exemplo dos feiticeiros, gritava, então

Glória aos piratas

Às mulatas, às sereias

Glória à farofa

À cachaça, às baleias

Glória a todas as lutas inglórias

Que através da nossa história, não esquecemos jamais

Salve o Navegante Negro

Que tem por monumento as pedras pisadas do cais

Mas salve

Salve o Navegante Negro

Que tem por monumento as pedras pisadas do cais.”

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