Nesta seção, o portal ICL Notícias vai resgatar textos, imagens e sons que façam o leitor dar uma pausa na marcha imediata e angustiante dos fatos, para refletir com autores geniais, tanto do Brasil quanto de outros países.
Hoje, publicamos uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, que faz parte do livro Cadeira de Balanço.(Record. Rio de Janeiro, 1992)
Perde o gato
Um jornal é lido por muita gente, em muitos lugares; o que ele diz precisa interessar, senão a todos, pelo menos a um certo número de pessoas. Mas o que me brota espontaneamente da máquina, hoje, não interessa a ninguém, salvo a mim mesmo. O leitor, portanto, faça o obséquio de mudar de coluna. Trata-se de um gato.
Não é a primeira vez que o tomo para objeto de escrita. Há tempos, contei de Inácio e de sua convivência. Inácio estava na graça do crescimento, e suas atitudes faziam descobrir um encanto novo no encanto imemorial dos gatos. Mas Inácio desapareceu — e sua falta é mais importante para mim, do que as reformas do ministério.
Gatos somem no Rio de Janeiro. Dizia-se que o fenômeno se relacionava com a indústria doméstica das cuícas, localizada nos morros. Agora ouço dizer que se relaciona com a vida cara e a escassez de alimentos. À falta de uma fatia de vitela, há indivíduos que se consolam comendo carne de gato, caça tão esquiva quanto a outra.
O fato sociológico ou econômico me escapa. Não é a sorte geral dos gatos que me preocupa. Concentro-me em Inácio, em seu destino não sabido. Eram duas da madrugada quando o pintor Reis Júnior, que passeia a essa hora com o seu cachimbo e o seu cão, me bateu à porta, noticioso. Em suas andanças, vira um gato cor de ouro como Inácio — cor incomum em gatos comuns — e se dispunha a ajudar-me na captura. Lá fomos sob o vento da praia, em seu encalço. E no lugar indicado, pequeno jardim fronteiro a um edifício, estava o gato. A luz não dava para identificá-lo, e ele se recusou à intimidade. Chamados afetuosos não o comoveram; tentativas de aproximação se frustaram. Ele fugia sempre, para voltar se nos via distantes. Amava. Seria iníquo apartá-lo do alvo de sua obstinada contemplação, a poucos metros. Desistimos. Se for Inácio — pensei — dentro de um ou dois dias estará de volta. Não voltou.
Um gato vive um pouco nas poltronas, no cimento ao sol, no telhado sob a lua. Vive também sobre a mesa do escritório, e o salto preciso que ele dá para atingi-la é mais do que impulso para a cultura. É o movimento civilizado de um organismo plenamente ajustado às leis físicas, e que não carece de suplemento de informação. Livros e papéis, beneficiam-se com a sua presteza austera. Mais do que a coruja, o gato é símbolo e guardião da vida intelectual.
Depois que sumiu Inácio, esses pedaços da casa se desvalorizaram. Falta-lhes a nota grave e macia de Inácio. É extraordinário como o gato “funciona” em uma casa: em silêncio, indiferente, mas adesivo e cheio de personalidade. Se se agravar a mediocridade destas crônicas, os senhores estão avisados: é falta de Inácio. Se tinham alguma coisa aproveitável era a presença de Inácio a meu lado, sua crítica muda, através dos olhos de topázio que longamente me fitavam, aprovando algum trecho feliz, ou através do sono profundo, que antecipava a reação provável dos leitores.
Poderia botar anúncio no jornal. Para quê? Ninguém está pensando em achar gatos. Se Inácio estiver vivo e não sequestrado, voltará sem explicações. É próprio do gato sair sem pedir licença, voltar sem dar satisfação. Se o roubaram, é homenagem a seu charme pessoal, misto de circunspeção e leveza; tratem-no bem, nesse caso, para justificar o roubo, e ainda porque maltratar animais é uma forma de desonestidade. Finalmente, se tiver de voltar, gostaria que o fizesse por conta própria, com suas patas; com a altivez, a serenidade e a elegância dos gatos.
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Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902. Em 1919, estudante interno do colégio Anchieta, em Nova Friburgo, foi expulso por “insubordinação mental”. Publicou seu primeiro livro — Alguma poesia — em 1930. Trabalhou no gabinete do ministro da Educação e Saúde Pública Gustavo Capanema e aposentou-se como chefe de seção da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), em 1962.
Autor pertencente à segunda fase do modernismo brasileiro, Drummond apresenta uma poesia com liberdade formal e temática sociopolítica. No entanto, seus textos são marcados, principalmente, por temas do cotidiano, que, mesmo culturalmente localizados, assumem um caráter universal. O poeta, ganhador do Prêmio Jabuti, no Brasil, e do Prêmio Morgado de Mateus, em Portugal, morreu em 17 de agosto de 1987, no Rio de Janeiro.
(Fonte: Brasil Escola)
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