ouça este conteúdo
|
readme
|
Novo desvio de rota?
A análise do encontro entre Wilson Simonal e Sarah Vaughan terá de ser adiada novamente. Mas será a última vez — prometo. Contudo, a urgência, típica da crônica, não me deixa opção.
Vamos lá?
A normalização do absurdo
Dois fatos desconexos revelam, pelo contrário, a unidade da atmosfera que ameaça asfixiar o futuro no século 21.
(Futuro que assoma cada vez mais plúmbeo para quem acompanha os resultados das recentes eleições nos Estados Unidos e na Alemanha.)
Nos tristes trópicos, a extrema direita esforça-se para ultrapassar todo e qualquer limite do aceitável. Sua última façanha alvejou ninguém menos do que o Papa Francisco, que se encontra em situação muito delicada de saúde e talvez não sobreviva. Autoproclamados cristãos, mas sem capacidade alguma de amar o próximo, alguns bolsonaristas se entregaram à perversão chocante de celebrar a doença do Papa como se fosse, acreditem!, uma punição “divina”, em virtude do “comunismo” professado pelo Sumo Pontífice.
(Entenda-se: o Summus Pontifex é o máximo construtor de pontes; no caso, entre o Sagrado e o profano; Deus e a humanidade. A extrema direita apenas tem olhos para muros e trincheiras.)
O artifício retórico é tão básico quanto o argumento é primário.
Vejamos.
Basta mencionar o Inimigo Maior, o Mal Absoluto, a Terra Devastada, em suma, o próprio Anticristo. Claro, não pode senão ser o Comunismo, em letra maiúscula, à altura do terror que representa. Algum homem de bem duvidaria?
Na interpretação lisérgica de Olavo de Carvalho, popularizada pelos filmes da produtora Brasil Paralelo, mesclada com a hipótese gelatinosa do marxismo cultural, isso sem esquecer de pitadas do projeto secreto do general Leônidas Pires Gonçalves, o Orvil, dizia, na hermenêutica carnavalesca do sistema de crenças Olavo de Carvalho, a dissolução da União Soviética em dezembro de 1991 foi parte de um plano maquiavélico para a expansão planetária do comunismo, agora travestido de globalismo.
Calma, um minuto: como assim?
Pois é: abra os olhos bem fechados, vociferava Olavo, e aceite o perdido: o globalismo é a etapa superior do comunismo.
(Que fazer?)
Nesse registro mental, basta mencionar a palavra-granada “comunismo”; se alguém for acusado de ser comunista, ou globalista, autoriza-se toda sorte de violência contra o ímpio, reduzido ao papel de alvo.
Da palavra ao ato
O alvo — palavra exata. Na concepção radicalizada da extrema direita, o outro não tem direito de cidadania; sua diferença desqualifica seu pertencimento à ágora. Identificado o inimigo interno, é imperioso passar à ação definitiva: sua eliminação.
Sem mais.
Nenhuma hesitação.
(E com qualquer objeto que esteja à mão.)
Venho ao segundo episódio: a abjeta agressão sofrida pelo escritor Marcelo Rubens Paiva, que se encontrava num bloco de carnaval, celebrando o êxito do filme “Ainda estou aqui”, baseado no seu romance homônimo.
O sentido subjacente à agressão remete à raiz mesma do bolsonarismo. Em outras palavras, a memória mal resolvida da ditadura militar. A interdição coletiva da reflexão crítica sobre o período foi arquitetada pela Lei da Anistia de agosto de 1979; na verdade, autêntica blindagem em relação aos inúmeros crimes cometidos pelos militares no longo período de exceção de 21 anos (1964–1985).
Ora, o grande sucesso do filme, inclusive internacional, trouxe à ordem do dia o tema que a extrema direita gostaria de enterrar numa “longa viagem ao fim da noite”.
(Et pour cause.)
“Ainda estou aqui” produziu dois resultados inesperados que ajudam a entender o incômodo dos extremistas com seu inegável êxito.
De um lado, as gerações mais jovens, precisamente a demografia que no mundo todo se mostra inclinada a aceitar os revisionismos históricos delirantes da extrema direita, aprenderam a verdade sobre os horrores da ditadura sem as mentiras bolsonaristas. O drama da família Paiva, profundamente humano, comoveu milhões de espectadores, tornando o pesadelo de todo regime autoritário um fato palpável, doloroso, próximo, demasiadamente próximo. O triunfo internacional apenas agravou a percepção negativa, histérica até, dos bolsonaristas sobre o filme.
(Efeito similar foi gerado pelo livro-denúncia” Brasil: Nunca mais”, publicado em 1985.)
De outro lado, e esse o verdadeiro terror dos defensores da ditadura, a repercussão do filme estimulou o ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, a propor a revisão da Lei da Anistia, de modo a excluir o crime de ocultação de cadáveres do escopo da lei — justamente o que ocorreu com o deputado Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi devolvido à família. A ministra e futura presidente do Superior Tribunal Militar, Maria Elizabeth Rocha, com enorme coragem cívica, chegou a propor a revogação integral da Lei da Anistia, uma vez que, pelo direito internacional em acordos assinados pelo estado brasileiro, o crime de tortura é imprescritível, portanto, não é anistiável.
Coda
Eis o grande desafio contemporâneo: interromper o ciclo que conduz da naturalização do absurdo à explosão da violência simbólica, culminando na agressão física — e até a eliminação do outro.
(Estaremos à altura da complexidade das nossas circunstâncias?)
Relacionados
‘Demora do STF sobre Lei da Anistia me envergonha’, diz Marcelo Rubens Paiva a Cármen Lúcia
Marcelo Rubens Paiva se manisfesta contra movimentos bolsonaristas por anistia do 8/1
Nove em cada dez agressões contra mulher foram presenciadas por alguém
21,4 milhões de brasileiras sofreram violência no último ano
Mulher é agredida por PM enquanto trabalhava no 8 de março em MG
A oficial de justiça cumpria uma dilgência no Dia Internacional da Mulher quando levou uma cabeçada e soco no rosto