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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

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A normalização do absurdo: desafio contemporâneo

Se alguém for acusado de ser comunista, ou globalista, autoriza-se toda sorte de violência contra o ímpio
25/02/2025 | 07h11
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Novo desvio de rota?

A análise do encontro entre Wilson Simonal e Sarah Vaughan terá de ser adiada novamente. Mas será a última vez — prometo. Contudo, a urgência, típica da crônica, não me deixa opção.

Vamos lá?

A normalização do absurdo

Dois fatos desconexos revelam, pelo contrário, a unidade da atmosfera que ameaça asfixiar o futuro no século 21.

(Futuro que assoma cada vez mais plúmbeo para quem acompanha os resultados das recentes eleições nos Estados Unidos e na Alemanha.)

Nos tristes trópicos, a extrema direita esforça-se para ultrapassar todo e qualquer limite do aceitável. Sua última façanha alvejou ninguém menos do que o Papa Francisco, que se encontra em situação muito delicada de saúde e talvez não sobreviva. Autoproclamados cristãos, mas sem capacidade alguma de amar o próximo, alguns bolsonaristas se entregaram à perversão chocante de celebrar a doença do Papa como se fosse, acreditem!, uma punição “divina”, em virtude do “comunismo” professado pelo Sumo Pontífice.

(Entenda-se: o Summus Pontifex é o máximo construtor de pontes; no caso, entre o Sagrado e o profano; Deus e a humanidade. A extrema direita apenas tem olhos para muros e trincheiras.)

 

O artifício retórico é tão básico quanto o argumento é primário.

Vejamos.

Basta mencionar o Inimigo Maior, o Mal Absoluto, a Terra Devastada, em suma, o próprio Anticristo. Claro, não pode senão ser o Comunismo, em letra maiúscula, à altura do terror que representa. Algum homem de bem duvidaria?

Na interpretação lisérgica de Olavo de Carvalho, popularizada pelos filmes da produtora Brasil Paralelo, mesclada com a hipótese gelatinosa do marxismo cultural, isso sem esquecer de pitadas do projeto secreto do general Leônidas Pires Gonçalves, o Orvil, dizia, na hermenêutica carnavalesca do sistema de crenças Olavo de Carvalho, a dissolução da União Soviética em dezembro de 1991 foi parte de um plano maquiavélico para a expansão planetária do comunismo, agora travestido de globalismo.

Calma, um minuto: como assim?

Pois é: abra os olhos bem fechados, vociferava Olavo, e aceite o perdido: o globalismo é a etapa superior do comunismo.

(Que fazer?)

Nesse registro mental, basta mencionar a palavra-granada “comunismo”; se alguém for acusado de ser comunista, ou globalista, autoriza-se toda sorte de violência contra o ímpio, reduzido ao papel de alvo.

Da palavra ao ato

O alvo — palavra exata. Na concepção radicalizada da extrema direita, o outro não tem direito de cidadania; sua diferença desqualifica seu pertencimento à ágora. Identificado o inimigo interno, é imperioso passar à ação definitiva: sua eliminação.

Sem mais.

Nenhuma hesitação.

(E com qualquer objeto que esteja à mão.)

Venho ao segundo episódio: a abjeta agressão sofrida pelo escritor Marcelo Rubens Paiva, que se encontrava num bloco de carnaval, celebrando o êxito do filme “Ainda estou aqui”, baseado no seu romance homônimo.

O sentido subjacente à agressão remete à raiz mesma do bolsonarismo. Em outras palavras, a memória mal resolvida da ditadura militar. A interdição coletiva da reflexão crítica sobre o período foi arquitetada pela Lei da Anistia de agosto de 1979; na verdade, autêntica blindagem em relação aos inúmeros crimes cometidos pelos militares no longo período de exceção de 21 anos (1964–1985).

Ora, o grande sucesso do filme, inclusive internacional, trouxe à ordem do dia o tema que a extrema direita gostaria de enterrar numa “longa viagem ao fim da noite”.

(Et pour cause.)

“Ainda estou aqui” produziu dois resultados inesperados que ajudam a entender o incômodo dos extremistas com seu inegável êxito.

De um lado, as gerações mais jovens, precisamente a demografia que no mundo todo se mostra inclinada a aceitar os revisionismos históricos delirantes da extrema direita, aprenderam a verdade sobre os horrores da ditadura sem as mentiras bolsonaristas. O drama da família Paiva, profundamente humano, comoveu milhões de espectadores, tornando o pesadelo de todo regime autoritário um fato palpável, doloroso, próximo, demasiadamente próximo. O triunfo internacional apenas agravou a percepção negativa, histérica até, dos bolsonaristas sobre o filme.

(Efeito similar foi gerado pelo livro-denúncia” Brasil: Nunca mais”, publicado em 1985.)

De outro lado, e esse o verdadeiro terror dos defensores da ditadura, a repercussão do filme estimulou o ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, a propor a revisão da Lei da Anistia, de modo a excluir o crime de ocultação de cadáveres do escopo da lei — justamente o que ocorreu com o deputado Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi devolvido à família. A ministra e futura presidente do Superior Tribunal Militar, Maria Elizabeth Rocha, com enorme coragem cívica, chegou a propor a revogação integral da Lei da Anistia, uma vez que, pelo direito internacional em acordos assinados pelo estado brasileiro, o crime de tortura é imprescritível, portanto, não é anistiável.

Coda

Eis o grande desafio contemporâneo: interromper o ciclo que conduz da naturalização do absurdo à explosão da violência simbólica, culminando na agressão física — e até a eliminação do outro.

(Estaremos à altura da complexidade das nossas circunstâncias?)

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