Por Catarina Duarte — Ponte Jornalismo
“Estou só tentando sobreviver ao caos”, diz a auxiliar de cozinha Beatriz da Silva Rosa, de 29 anos. Ela é a mãe de Ryan da Silva Andrade Santos, 4, morto em novembro durante uma ação da PM no Morro São Bento, em Santos. Em janeiro deste ano, um laudo concluiu que o tiro que matou a criança partiu da polícia. Na mesma ação, o adolescente Gregory Ribeiro Vasconcelos, 17, também foi morto. O caso não é único. No ano passado, 77 crianças e adolescentes com idade entre 10 e 19 anos morreram em intervenções policiais no estado.
Considerando todas as mortes violentas (que incluem homicídios dolosos, latrocínios e lesão corporal seguida de morte) nesta faixa etária, 34% deles foram mortos por policiais em 2024. Isso significa dizer que em 1 a cada 3 mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes ocorreu em intervenções policiais.
Entre 2022 e 2024, São Paulo registrou um aumento de 120% no número de mortes de crianças e adolescentes em decorrência de intervenções policiais.
Os dados são da segunda edição do relatório As câmeras corporais na Polícia Militar do Estado de São Paulo: mudanças na política e impacto nas mortes de adolescentes. O documento lançado nesta quinta-feira (3/4) foi produzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
A pesquisa apresenta um panorama sobre a violência letal promovida pela Polícia Militar em São Paulo, destacando como o uso de câmeras corporais ajudou na redução da letalidade. Também é destaque a reflexão de que apenas o uso do equipamento não é suficiente para ter impacto nessa queda sozinho.

Manifestantes do grupo Mães da Leste em protesto em 23/3 pedindo justiça por dezenas de famílias enlutadas (Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo)
Com Tarcísio, PM mata mais
O estudo aponta que houve reversão nos resultados positivos do Programa Olho Vivo — que implementou, em 2020, as câmeras corporais nas fardas da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Sob a gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário da Segurança Pública Guilherme Derrite, capitão reformado das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), a unidade policial que mais mata no estado de São Paulo, a iniciativa foi incorporada ao Muralha Paulista. O projeto de Tarcísio e Derrite, no entanto, não tem como prioridade a supervisão da atividade policial. O objetivo do Muralha é restringir o que o governo chama de mobilidade criminal.
A primeira edição deste mesmo estudo compilou dados dos dois primeiros anos do uso de câmeras corporais pelos policiais militares. O que a pesquisa mostrou é que houve queda de 62,7% nas mortes cometidas por policiais em serviço em 2022, em comparação com 2019, ano anterior à adoção da política. Batalhões que usavam câmeras corporais tiveram queda de 76,2% na letalidade, enquanto, no mesmo período, os demais tiveram redução de 33,3%.
Após a implementação dos equipamentos na corporação, o número de mortes de crianças e adolescentes também caiu. Foram 66% menos vítimas comparando 2022 e 2019.
Agora o cenário é distinto. Com a ascensão da dupla bolsonarista ao poder, o que se vê é um aumento da letalidade policial. Segundo o estudo, além do aumento nas mortes de crianças, a PM foi responsável por 18% de todas as mortes violentas registradas em São Paulo.
Desde que Tarcísio assumiu em janeiro de 2023, a letalidade voltou a crescer de modo contínuo. Batalhões com e sem câmeras corporais registraram aumentos nos números de mortes. Os que aderiram ao equipamento tiveram aumento de 95% em 2024 em relação ao ano anterior. Nos demais, o crescimento foi de 71,8%.
Tecnologia sozinha não resolve
O cenário demonstra que a política pública não pode ser feita só com o uso de ferramentas tecnológicas. É o que diz Leonardo Carvalho, pesquisador sênior do FBSP. “É preciso o apoio político e o fortalecimento de toda uma política pública de controle do uso da força, onde a tecnologia é um dos componentes”, explica o pesquisador.
Tarcísio e Derrite defenderam publicamente a atuação policial em momentos de violência. Durante a Operação Verão, que deixou 56 mortos, o governador declarou publicamente que não ligava para as denúncias de violações. “Pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que não tô nem aí’, afirmou em entrevista coletiva.
Já Guilherme Derrite, em dezembro do ano passado, chegou a declarar que os policiais eram os “únicos e verdadeiros promotores de direitos humanos”. Outra fala de Derrite foi de que as 28 vítimas da Operação Escudo morreram “por escolha deles”.
Leonardo diz que a tropa age de acordo com a mensagem que é passada pelos líderes, neste caso, Tarcísio e Derrite. “Tudo que a liderança do campo político, institucional, fala é uma mensagem que é lida e interpretada pela sua equipe”, alerta.
Gravação ininterrupta
As 10 mil câmeras corporais em uso pela Polícia Militar ainda são as adquiridas sob o escopo do Olho Vivo. O modelo tem gravação ininterrupta e, quando há um acionamento feito pelo policial, a imagem fica mais nítida e o som passa a ser captado. O modelo é considerado o ideal pelos pesquisadores para garantir mais transparência nas atividades desses agentes públicos.
Tarcísio quer que a PM passe a usar um outro modelo de câmeras, este com gravação manual. Na prática, caberia ao policial iniciar a gravação. O edital para aquisição dos equipamentos é alvo de ação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo no Supremo Tribunal Federal (STF).
Em dezembro do ano passado, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, determinou a obrigatoriedade do uso de câmeras pela corporação e que a gravação fosse ininterrupta. A decisão foi atualizada dias depois, limitando o uso obrigatório a grandes operações como a Escudo e a Verão. O governo Tarcísio tenta reverter a decisão da gravação ininterrupta. “Nós entendemos isso como um retrocesso”, diz Leonardo.
“O modelo de câmeras vigente é fruto de um amadurecimento de um desenho que foi feito pelos próprios oficiais da polícia de São Paulo. Eles olharam para o que já existia, identificaram pontos de aperfeiçoamento e desenharam toda a arquitetura do programa que implementaram. Não à toa a gente considera essa implementação muito exitosa”, completa o pesquisador.
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