Por Mateus Coutinho — Brasil de Fato
Documentos sigilosos da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) obtidos com exclusividade pelo Brasil de Fato indicam que diferentes órgãos do poder Executivo, incluindo o Gabinete Pessoal da Presidência da República e a Ouvidoria do Ministério da Justiça no primeiro ano de governo Jair Bolsonaro (PL), podem ter sido utilizados para fazer uma devassa nos dados pessoais do então secretário da Receita Federal José Barroso Tostes Neto, antes e depois de sua posse, em 2019.
A agência realizou um extenso mapeamento nas bases de dados utilizadas pelo governo federal durante uma sindicância interna para apurar as suspeitas que vinham sendo divulgadas pela imprensa em 2020 de que a Abin teria sido utilizada para produzir relatórios de inteligência para orientar a defesa do senador e filho do então presidente, Flávio Bolsonaro (PL-RJ) no caso das “rachadinhas”.
A denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP–RJ) contra o filho “01” do ex-presidente sobre o suposto esquema foi rejeitada em maio de 2022 pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ–RJ). À época da divulgação dos relatórios, a defesa do senador confirmou a autenticidade dos documentos e sua procedência da Abin.
O levantamento realizado pelo Brasil de Fato identificou que, de 11 de julho de 2019, data que Alexandre Ramagem tomou posse como diretor-geral da Agência, até 31 de outubro de 2020 (data em que, segundo as matérias divulgadas, teriam sido enviados os relatórios), nove servidores acessaram os dados de Tostes Neto. Dois deles eram servidores da própria Abin, como parte dos procedimentos de checagem de antecedentes do governo federal, na véspera de sua nomeação, e que um terceiro servidor acessou os dados no âmbito da própria auditoria para conferir as informações.
Porém, a Abin se deparou com os dados de registro de sete outros servidores públicos federais e estaduais que teriam consultado os dados de Tostes Neto no período. Como não estava no escopo a sindicância apurar a atuação de servidores de outros órgãos, a agência não checou se os acessos estavam irregulares ou não, mas indicou que poderia compartilhar a informação com outros órgãos caso houvesse demanda.
“Os demais acessos informados estão fora do escopo de apuração da presente sindicância. Contudo, caso haja solicitação por parte de outro órgão encarregado da apuração dos mesmos fatos, será fornecido se assim determinado e com o devido cuidado de sigilo”, afirma o despacho da Comissão Sindicante em 31 de dezembro de 2020.
A sindicância interna foi concluída em 19 de fevereiro de 2021, sem constatar irregularidades por parte de servidores da Agência. Procurada, a Abin não informou se compartilhou a relação de acessos aos Infoseg para outros órgãos públicos.
Os acessos ao CPF de Tostes Neto ocorreram em uma base de dados nacional de acesso restrito chamada Infoseg, que reúne um conjunto de informações pessoais utilizado pelas polícias e órgãos de segurança pública em todos os estados para auxiliar em atividades de inteligência e investigação. Nela é possível acessar informações como endereços, empresas vinculadas à pessoa, processos que ela responde na Justiça, nomes do pai e da mãe, veículos em nome da pessoa, dentre outros. As consultas ao Infoseg não necessariamente são ilegais, pois alguns órgãos, como as polícias e mesmo alguns integrantes das forças armadas, têm atribuição de utilizar o sistema para checagens de rotina, por exemplo. Ainda assim, trata-se de um sistema de acesso restrito que lida com informações pessoais sensíveis e permite, por exemplo, gerar relatórios sobre determinada pessoa.
Dentre os nomes que consultaram o CPF de Tostes, estão ao menos um militar que era do Gabinete Pessoal do Presidente da República, o chefe da Ouvidoria do gabinete do então ministro da Justiça Sergio Moro (União Brasil–PR), uma agente da Polícia Federal (PF) lotada na Diretoria de Inteligência Policial, um suboficial da reserva da Marinha e dois policiais militares — uma da Bahia, cedida à Secretaria Nacional de Segurança Pública, e outro de Minas Gerais.
A Receita Federal era uma das preocupações do senador e filho do presidente, Flávio Bolsonaro (PL–RJ), investigado no escândalo das supostas rachadinhas na Alerj no período em que foi deputado estadual. Uma das estratégias de sua defesa foi justamente levantar suspeitas sobre o trabalho da Receita Federal. Graças a um requerimento apresentado pela defesa do senador, a Receita mobilizou cinco pessoas em uma apuração interna instaurada em outubro de 2020 para checar se servidores do órgão teriam acessado ilegalmente e repassado informações financeiras do parlamentar ao Coaf. A apuração interna foi encerrada em fevereiro de 2021 sem identificar irregularidades. O Coaf elaborou um relatório de atividades financeiras que identificou movimentações atípicas de Flávio e seus então assessores na Alerj que embasou o início das investigações sobre o senador.
Tostes Neto foi nomeado para chefiar a Receita Federal do Brasil no começo de outubro de 2019, após a demissão de seu antecessor, Marcos Cintra, e poucos dias depois do então chefe da área de inteligência da Receita, Ricardo Pereira Feitosa, ser exonerado.
Como veio a ser revelado anos mais tarde, Feitosa utilizou-se do cargo para levantar informações sigilosas de desafetos de Bolsonaro, incluindo o procurador-geral do Ministério Público do Rio, Eduardo Gussem, que coordenou as investigações sobre o suposto esquema de rachadinhas de Flávio Bolsonaro. A atuação irregular de Feitosa culminou com sua demissão no último dia 5 de outubro, após um Processo Administrativo Disciplinar constatar as irregularidades.
ACESSOS DO GABINETE PESSOAL
Em 2019, segundo a apuração da Abin, dois militares que estavam na ativa e ocupavam cargos de assessor no então Gabinete Pessoal da Presidência, Sandro Daniel Soares e Francisco das Chagas de Sousa Pinto, tentaram consultar o CPF de Tostes Neto no Infoseg, que também é utilizado na checagem de antecedentes dos nomes indicados a cargos de alto escalão do governo. As tentativas (no caso de Sandro o sistema Infoseg registra que a tentativa foi bem sucedida, no caso de Francisco consta apenas o registro “NPR”, que não deixa claro se o acesso foi bem sucedido) porém, ocorreram de forma paralela à consulta de antecedentes solicitada pelo Ministério da Fazenda na plataforma oficial do governo federal para este tipo de demanda e que foi atendida pela Abin.
Procurados, os dois militares afirmaram não se recordar da consulta e que não sabiam quem era José Barroso Tostes Neto. Francisco afirmou desconhecer a base de dados, alegou que trabalhava com “controle de material” no gabinete e que nunca teve contato com o presidente Jair Bolsonaro. “Juro para você que não lembro disso. E eu não tenho acesso a isso”, afirmou, ao ser questionado sobre o motivo da consulta.
Já Sandro admitiu que tinha acesso à base de dados do governo, mas que não se recordava de ter pesquisado. “Não lembro se pesquisei esse cara, nem sei quem é. Posso até conhecer, mas não sei quem é”, afirmou o capitão, que hoje está na reserva. Questionado se recebia demandas de pesquisa do presidente ou de algum outro chefe no Gabinete Pessoal, ele desligou o telefone.
O anúncio de que Tostes Neto, auditor fiscal de carreira, seria o novo secretário da Receita Federal foi feito pelo Ministério da Economia em 20 de setembro daquele ano. Segundo a apuração da Abin, Sandro fez a consulta três dias antes do anúncio, em 17/9, e Francisco fez a consulta um mês depois, em 17/10. O caso chama atenção, pois a checagem de informações dos nomes indicados ao governo é realizada pelo Sistema Integrado de Nomeações e Consultas (Sinc), plataforma instituída na própria gestão Bolsonaro por meio da qual os órgãos da administração pública solicitam a Abin, CGU e Comissão de Ética Pública da Presidência a pesquisa de informações e antecedentes.
No caso de Tostes Neto, a Abin constatou que a consulta ao nome dele foi formalizada no Sinc por Cesar Cláudio Moreira Giraldes, então assessor do ministro da Economia Paulo Guedes, em 24 de setembro de 2019. A partir da solicitação no sistema, a Agência mobilizou dois agentes para fazer um pente-fino no nome de Tostes Neto, consultando diferentes bases de dados do governo federal, incluindo o próprio Infoseg.
“O trabalho seguiu o protocolo padrão das pesquisas do Sinc, consultando-se registros de antecedentes criminais (Infoseg e Sinapse/Cintepol), de processos judiciais (na Justiça Estadual e na Federal) e de procedimentos administrativos no Tribunal de Contas da União. Como resultado da pesquisa, foi registrada apenas uma pendência, referente a um processo judicial em grau de recurso”, afirmou o Centro Nacional de Inteligência em ofício encaminhado à sindicância para explicar os acessos dos agentes da Abin aos dados de Tostes Neto. No ofício não é citado qual processo específico estava ainda em andamento na ocasião da consulta.
Após as pesquisas, a solicitação foi respondida no dia 25/9, por meio do próprio sistema Sinc. Tostes Neto foi nomeado oficialmente por Bolsonaro em 2 de outubro daquele ano.
Na lei que estabeleceu a organização dos ministérios do governo Bolsonaro, sancionada em 2019, cabia ao Gabinete Pessoal da Presidência as seguintes funções: “assessorar na elaboração da agenda do Presidente da República; formular subsídios para os pronunciamentos do Presidente da República; coordenar a agenda do Presidente da República; exercer as atividades de secretariado particular do Presidente da República; exercer as atividades de cerimonial da Presidência da República; desempenhar a ajudância de ordens do Presidente da República; e organizar o acervo documental privado do Presidente da República”. Além disso, no decreto do governo Bolsonaro que instituiu o sistema Sinc para as consultas de precedentes não é citada nenhuma atribuição do Gabinete Pessoal da Presidência para esse tipo de checagem.
Por meio de nota, a Casa Civil da Presidência da República informou que, caso seja identificada alguma informação sensível que possa impedir a posse da pessoa, cabe à Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos do Palácio do Planalto checar as informações.
“Caso seja localizado algum registro processual ou administrativo, a SAJ fará a análise para verificar se há óbice jurídico para o provimento do cargo ou função cogitada”, disse o órgão.
Procurados sobre o episódio, nem o Exército nem a assessoria de Jair Bolsonaro responderam às perguntas da reportagem.
POLÍCIA FEDERAL E MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
Além de servidores do Gabinete Pessoal da Presidência da República, a Abin identificou dois nomes de agentes da Polícia Federal que acessaram o sistema Infoseg para consultar os dados de Tostes Neto. Um deles era Frederico de Melo Aguiar, que estava no posto de chefe da Divisão de Ouvidoria da Ouvidoria-Geral do então ministro da Justiça Sergio Moro quando consultou o CPF de Tostes Neto, dois dias antes de ele ser anunciado pelo Ministério da Economia, em 18 de setembro de 2019. Ele consultou o CPF de Tostes às 13h37 e às 13h42. Procurado, o Ministério da Justiça informou que “tendo o fato ocorrido em 2019, não foi identificado procedimento ou requisição interna para as referidas consultas”.
Questionado se havia alguma norma prevendo que servidores da ouvidoria da pasta tenham acesso ao Infoseg, a pasta informou que uma resolução de 2021 e duas deliberações do Conselho Gestor do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública de 2022 — portanto depois dos acessos identificados pela reportagem — autorizam a Ouvidoria a indicar servidores para acessar o sistema.
Além disso, questionado sobre a consulta, o ministério informou que “para as consultas que são realizadas regularmente existe a Deliberação Nº 02/ 2022 do Conselho Gestor do Sinesp, que estabelece que agentes públicos tenham acesso ao sistema Sinesp Infoseg, mesmo lotados em órgão diverso da sua instituição de origem”. Procurado, o ministro da Justiça na época das consultas e hoje senador Sergio Moro informou por meio de sua assessoria que não iria se manifestar sobre o caso.
Já a agente Patrícia Coelho Gomide consultou o CPF de Tostes Neto às 13h48 e 13h49 do dia 18 de setembro de 2019. Na ocasião, ela estava lotada na Diretoria de Inteligência Policial, onde tramitam alguns dos mais importantes e sensíveis inquéritos da Polícia Federal. Questionada sobre o acesso, a PF informou que “na época em que a servidora citada teria realizado as mencionadas pesquisas, ela estava lotada em setor no qual a realização de buscas em sistemas de investigação faz parte das atribuições corriqueiras”. A PF não informou se havia algum inquérito envolvendo Tostes Neto em andamento na época das consultas.
MARINHA E PM
Também aparecem entre os que consultaram os dados de Tostes Neto um suboficial da reserva da Marinha, Nereu Fortunato de Almeida, que checou os dados do então chefe da Receita às 17h01 do dia 30 de janeiro de 2020. Procurada, a Marinha informou que a consulta foi realizada para “subsidiar o processo de concessão da Medalha Ordem do Mérito Naval (OMN), a qual foi conferida a Tostes em 8 de maio de 2020”. A Medalha é a condecoração mais alta dada pela força a autoridades civis e militares que tenham prestado serviços relevantes à corporação e a cerimônia para o recebimento da condecoração foi realizada em 30 de junho daquele ano. O evento foi registrado na agenda oficial de Tostes Neto.
A reportagem, então, questionou quais dados necessitavam de consulta ao Infoseg para a concessão da medalha, se todos os demais agraciados também tiveram os dados consultados, e por que um suboficial que estava na reserva desde 2017 tinha acesso à base de dados. Em resposta, a Marinha explicou que “a consulta no Infoseg, por pessoa devidamente credenciada, é um procedimento de rotina no processo de indicação para Medalha da Ordem do Mérito Naval.” Afirmou também que Nereu estava contratado sob o regime de prestação de Tarefa por Tempo Certo, um mecanismo de contratação de militares da reserva para exercer atividades militares.
Além de Nereu, também foi identificada na base de dados do Infoseg a consulta aos dados do chefe da Receita por parte de dois policiais militares. Uma soldado da PM da Bahia, chamada Alane Benedetto Santos, que estava cedida para a Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, e um sargento da PM de Minas Gerais, Rogelio Alves dos Santos.
Alane consultou os dados às 9h58 do dia 9 de outubro de 2020. Um dia antes, em 8 de outubro daquele ano, o então ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Félix Fischer, havia negado um recurso da defesa de Flávio Bolsonaro que buscava justamente anular as decisões da Justiça de primeira instância do Rio no âmbito das investigações das rachadinhas. Entre as decisões que a defesa do senador buscava anular, estava justamente a que decretou a quebra dos sigilos bancário e fiscal de Flávio. Um ano depois, em novembro de 2021, a turma do STJ da qual o ministro Fischer fazia parte iria seguir um entendimento contrário e anular todas as decisões do juiz de primeira instância do caso.
Procurada, a Polícia Militar da Bahia informou que “não foi notificada sobre o mencionado fato”. Já o Ministério da Justiça citou uma deliberação de 2022 do Conselho Gestor do Sistema Nacional de Segurança Pública que estabelece que agentes públicos tenham acesso ao Infoseg, mesmo lotados em órgão diverso da sua instituição de origem. Questionada se houve algum procedimento interno ou requisição para as consultas, a pasta informou que “tendo o fato ocorrido em 2019, não foi identificado até aqui procedimento ou requisição interna para as referidas consultas”.
Já Rogelio consultou o CPF de Tostes Neto às 11h38 do dia 15 de janeiro de 2020. Procurada, a PMMG afirmou por meio de nota que o Infoseg “é gerenciado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP)” e “apenas utilizado pela Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG)”. “Quaisquer informações relativas ao uso do sistema mencionado, devem ser sanadas junto àquele órgão federal”, diz a nota.
A Secretaria Nacional de Segurança Pública, que pertence ao Ministério da Justiça, é o órgão responsável pela gestão do Infoseg e foi quem encaminhou à Abin a relação de acessos à base de dados após receber a demanda da sindicância da agência, em 2020. Questionado pela reportagem se tomou alguma providência na época, ao se deparar com os acessos ao CPF de Tostes Neto, o ministério informou que, para responder a demanda seria indispensável ter “os números de referência, registros no SEI, ou, pelo menos, cópia da documentação, da referida Auditoria interna da Abin e da mencionada consulta da Agência à Senasp, com os quais poderemos analisar os conteúdos e adotar eventuais providências de responsabilização”.
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