Por Ana Paula Orlandi — Revista Pesquisa FAPESP
Com influente produção acadêmica a respeito sobretudo do Brasil Colônia, a historiadora paulista Laura de Mello e Souza acaba de ser contemplada com o Prêmio Internacional de História, concedido pelo Comitê Internacional de Ciências Históricas (Cish, na sigla em francês). A premiação leva em conta a qualidade da obra, a contribuição para o avanço da pesquisa histórica, além da atuação na área do ensino e formação de quadros.
“Do ponto de vista pessoal, além da surpresa, o prêmio é uma grande honra. Mas gostaria de frisar a importância dele para a comunidade de historiadores brasileiros, que é numerosa e competente, e tem sua visibilidade reforçada por um fato como esse”, declarou Mello e Souza à Pesquisa Fapesp.
Entre 2014 e 2022, a historiadora foi professora da cátedra de História do Brasil na Universidade Sorbonne, em Paris. Ao longo da carreira, também passou como professora visitante, por exemplo, pela Universidade do Texas (EUA), Universidade Nova de Lisboa (Portugal) e Universidade Nacional do México. Porém, sua trajetória se desenvolveu fundamentalmente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH–USP).
Na instituição paulista, onde ingressou como aluna na década de 1970, cursou graduação e pós-graduação. Em 1983, se tornou docente e, entre outras funções, foi chefe do Departamento de História (1999–2001) e vice-coordenadora do Programa de História Social (2002–2004), tendo se aposentado em 2014.
O Prêmio Internacional de História foi criado em 2015 e desde então agraciou três historiadores: o francês Serge Gruzinski, da École des Hautes Études em Sciences Sociales e do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), em 2015; o húngaro Gábor Klaniczay, da Central European University, de Budapeste, em 2016; e o indiano Sanjay Subrahmanyam, da Universidade da Califórnia (EUA) e do Collège de France, em 2022.
“Agora, pela primeira vez, o prêmio veio para uma mulher e para a América Latina”, comemora a historiadora Rita de Cássia Marques, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atual vice-presidente da Associação Nacional de História (Anpuh).
De acordo com a historiadora Ana Paula Torres Megiani, do Departamento de História da FFLCH–USP, a contribuição de Mello e Souza ao campo da história é vasta e já se inicia na pesquisa de mestrado, defendida em 1980, sob orientação do historiador Fernando Novais. A dissertação foi publicada com o título “Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII” (Editora Graal,1983), obra que ganhou várias reedições no Brasil e saiu também na França.
“Ela estudou uma camada da sociedade sobre a qual não se prestava atenção: os indivíduos livres que não tiveram acesso às riquezas durante o ciclo do ouro em Minas Gerais”, explica Megiani, uma das organizadoras da coletânea “Traços”. Da obra de “Laura de Mello e Souza” (Editora Ouro sobre Azul, 2021). Marques acrescenta: “É uma pesquisa que derrubou a crença em voga na historiografia brasileira da época de que a sociedade mineradora era mais democrática, oferecia maior mobilidade social, do que a sociedade açucareira. Ao se embrenhar pelas tessituras das hierarquias sociais, a autora mostrou que ali também havia opressores e oprimidos.”
Outras obras significativas de Mello e Souza, segundo as entrevistadas, são “O diabo e a terra de Santa Cruz” (Companhia das Letras, 1986), “Feitiçaria na Europa moderna” (Ática, 1987) e “Inferno atlântico” (Companhia das Letras, 1993). Os três livros abordam a questão da religiosidade popular e traçam conexões entre o que acontecia na Colônia e no continente europeu.
Já em “O sol e a sombra” (Companhia das Letras, 2006), a historiadora analisou a administração portuguesa no Brasil do século 18. Mais tarde, escreveu o perfil do poeta Claudio Manuel da Costa (1729–1789), ligado à Inconfidência Mineira, a partir de pesquisas em inventários, escrituras e processos judiciais. O livro “Claudio Manuel da Costa — O letrado dividido” saiu em 2011, pela Companhia das Letras.
O nome de Mello e Souza foi aprovado pelo conselho diretivo do Cish, composto por 12 membros de diferentes países, como Estados Unidos, Japão, França e Itália. “A meta do prêmio é homenagear um historiador com obra original e singular, que tenha trânsito internacional e capacidade de abrir diálogos com seus pares”, explica a historiadora Eliana de Freitas Dutra, da UFMG, que atualmente ocupa uma das vice-presidências do Cish.
De acordo com Dutra, esse é o caso da obra de Mello e Souza, cuja produção se vincula ao estudo das chamadas dinâmicas globalizadas do mundo moderno. “Além de estabelecer conexões historiográficas entre Brasil, Europa e África, ela trabalha com várias áreas da história, como econômica, literária e social. Não por acaso, tem estudos traduzidos em francês, inglês e espanhol”, enumera.
Se a premiação é recente, o mesmo não se pode dizer do Cish: a entidade foi fundada em 1926, na Suíça. “Sua criação acontece no contexto pós-Primeira Guerra Mundial, com o objetivo de incentivar o diálogo entre os povos e reunir a comunidade internacional de historiadores”, conta a historiadora Gabriela Pellegrino Soares, da FFLCH-USP e membro da Coordenação de Área da Diretoria Científica da FAPESP.
Hoje, o Cish congrega por volta de 55 associações nacionais de História, como é o caso da brasileira Anpuh, e 27 organizações de pesquisa, a exemplo da Comissão Internacional de Demografia Histórica. “A ideia é não apenas promover a ciência histórica por meio da cooperação entre os diferentes países, mas também discutir questões sobre ensino, ética profissional e desafios contemporâneos do nosso campo de pesquisa”, completa Dutra.
Com esse intuito, a cada cinco anos o Cish realiza um congresso mundial. O último deles ocorreu em 2022, na Polônia. Já a cerimônia de entrega da quarta edição do Prêmio Internacional de História deve acontecer durante a assembleia geral da entidade, prevista para outubro, no Japão.
“Claro que é preciso dedicação pessoal para receber uma honra como a que me concederam, sobretudo sendo mulher e tendo vida familiar”, comenta Mello e Souza. “Mas em meu campo de estudo e sobre a época que escolhi estudar, do século 16 ao começo do 19, o trabalho é obrigatoriamente lento, a documentação é em grande parte manuscrita e nem sempre fácil de ler. Isso significa que sem apoio institucional, a exemplo das bolsas que recebi de instituições como FAPESP e CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], os êxitos se tornam bem mais remotos.”
Embora aposentada, Mello e Souza continua vinculada à Sorbonne e à FFLCH–USP, onde orienta pesquisas de doutorado. Em 2023, voltou a morar no Brasil, após passar 8 anos na França, e lançou o livro “O jardim das hespérides — Minas e as visões do mundo natural no século XVIII” (Companhia das Letras). No momento, escreve um estudo sobre as migrações de três cortes europeias (Portugal, Sardenha e Nápoles) durante o período de expansão napoleônica, no século 19. “É uma pesquisa que comecei há 22 anos e me dá um trabalho danado, mas pretendo concluí-la em breve”, diz.
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