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Internacional

A Europa de antes e a de agora  

Percebemos agora, de forma mais nítida, o que não somos e o que não queremos vir a ser
04/06/2024 | 10h00

Por José Sócrates

“Ontem o futuro era melhor”, escreveu Ivan Krastev. Houve um tempo em que o nosso projeto era uma Europa sem fronteiras, uma Europa sem muros, uma Europa com moeda única, de liberdade individual, de oportunidades, de igualdade, ambicionando um nível de desenvolvimento semelhante em todos os países membros.

Esse foi o nosso futuro. O de uma Europa em que o mundo podia confiar: um generoso projeto de integração política, concentrado no diálogo político e na resolução pacífica de conflitos. Um exemplo para o mundo e um orgulho para os europeus. Esse futuro foi o projeto político das nossas vidas.

De repente, tudo mudou. Mudou a linguagem, mudaram as prioridades e até os princípios fundadores do projeto de integração europeia parecem esquecidos.

Na Europa de agora, o modelo social europeu, outrora um orgulho, desapareceu do discurso; a coesão extinguiu-se como objetivo da união e, pior, muito pior, a liberdade individual foi sendo substituída no discurso político dominante pela ideia de segurança coletiva.

O ideal do fim das fronteiras internas parece ter acabado (número impressionante: construíram-se mais de 1.000 km de muros na Europa desde que o de Berlim foi derrubado), o direito internacional é agora discutível e os direitos individuais deixaram de ser um absoluto para entrar na relatividade da contingência política e do interesse nacional.

O ideal da paz e da cooperação entre os povos é escarnecido como visão ingênua do mundo e a retórica beligerante de segurança tornou-se referência obrigatória na política europeia. Este é o vento que sopra — sem nada nem ninguém que se lhe oponha. O que está a acontecer não é uma paragem numa caminhada progressista, mas uma regressão, um andar para trás que representa uma profunda mudança de cultura política. Milan Kundera escreveu assim — Europeu: aquele que tem a nostalgia da Europa. Exatamente como me sinto.

A liderança. Exatamente por ser fundado no princípio da igualdade entre Estados e na regra da decisão por unanimidade, a liderança sempre foi uma questão decisiva no desenvolvimento do projeto europeu.

A aliança informal entre os dois países mais populosos e mais fortes economicamente, a França e a Alemanha, comandou e alargou a integração política nas primeiras décadas. O fim das fronteiras internas e o início da moeda única resultaram desse entendimento político.

Mas 1989 veio mudar tudo. O fim da guerra fria, a reunificação alemã e o alargamento a leste mudaram a Europa, mudaram a geografia, mudaram o centro de gravidade econômico e mudaram a liderança. A Alemanha era agora o país mais populoso, a economia mais forte e a nação com mais influência econômica e cultural nos novos países do centro europeu. Este era o novo tempo da Alemanha.

O primeiro grande teste à liderança veio com a crise financeira e com ela veio também o seu primeiro e mais clamoroso falhanço. A desgraça ficou evidente desde o início — nem proteção, nem preocupação com a unidade, nem diálogo. Nesse momento, a única coisa que ficou evidente foi a fragilidade da União.

O que se viu foi apontar culpas, frieza institucional e indiferença ao sentimento nacional nos países em maiores dificuldades. De um momento para o outro, sob liderança alemã (ou, talvez melhor dito, sob liderança da direita alemã), a política europeia deixou de falar em emprego, em educação, em tecnologia, em ambiente, em energia renovável, para se concentrar num ajuste de contas histórico da direita contra os seus demônios preferidos — as políticas sociais.

O alvo era exatamente o chamado modelo social europeu que a nova direita neoliberal nunca tolerou. A austeridade constituiu-se então como única resposta de política econômica: sem alternativa e ditada pela ciência. Além disso a austeridade tinha também uma certa dimensão moral adequada ao puritanismo da moda: é preciso redenção — e a redenção reclama castigo e sofrimento. Na verdade, a resposta europeia à crise financeira nunca foi uma política econômica, mas um programa ideológico. Com a austeridade a economia europeia continuou a escavar o buraco em que estava metida, enterrando-se cada vez mais.

No entanto, em boa análise, a mudança política na Europa começou antes da crise financeira. Vendo as coisas com rigor, a mudança começou no início do século com a chamada guerra global ao terror. Quando os americanos, a propósito da invasão do Iraque, resolveram dividir os seus aliados, classificando o ocidente europeu como a “velha” Europa e o leste europeu como a “nova” Europa estavam consciente e irresponsavelmente a escarafunchar uma ferida antiga.

Todavia, esta divisão só tornou ainda mais evidente o desrespeito do direito internacional e a imposição do interesse americano no xadrez agitado da ordem mundial desse tempo. Um desastre. Um desastre para o mundo e um desastre para o ocidente. A guerra do Iraque não só trouxe o elemento religioso para o centro da disputa militar como “abriu as portas do inferno”, o que viria a provocar a desestabilização política em todo o grande Médio Oriente – Afeganistão, Paquistão, Iraque, Síria, Iêmen, Líbia.

A Europa pagaria também o seu preço. A guerra ao terror não conteve o terrorismo, mas espalhou-o, até nos chegar a casa. Quase quinze anos depois do 11 de Setembro, os ataques ao Charlie Hebdo em Paris lembrou os europeus que a guerra ao terror não acabou com o terrorismo, mas alastrou-o a várias geografias.

Quinze anos depois de iniciada a guerra ao terror, o mundo tinha mais terrorismo, mais medo e mais refugiados. Com eles, o medo e os refugiados, o projeto europeu viveu a sua verdadeira tragédia. As liberdades públicas passaram a ser vistas como um problema e novas leis securitárias trouxeram novas instituições estatais e com mais poderes — mais vigilância, mais controle, mais punição. Nas palavras de Ignatieff, é a resposta ao terrorismo, mais que o terrorismo ele próprio, que tem feito pior à democracia.

As medidas de reforço da autoridade estatal em desfavor da liberdade individual foram cuidadosamente apresentadas em favor da chamada segurança coletiva e assim normalizadas no espaço público, para que os cidadãos europeus pudessem dizer valentemente que não se renderão ao terrorismo e que não alterarão os seus hábitos de vida. Na verdade, já o fizeram. Entre a Europa de agora e a Europa de antes há uma profunda diferença de cultura política.

Na Europa de agora está de novo presente uma velha questão geopolítica sobre o papel da Europa no mundo: simples testa de ponte da superpotência americana na Eurásia ou bloco político aliado com identidade e voz própria? Na Europa de antes, nunca houve dúvidas — a escolha sempre foi pela segunda.

O contributo da Europa para a ordem internacional não podia ser outro que a de ator político moderador do seu aliado transatlântico. Não, a política internacional não é o mundo hobbessiano da guerra de todos contra todos. Essa nunca foi a perspectiva europeia e a tentativa de apresentar a guerra da Ucrânia como o falhanço total e definitivo da lei internacional é evidentemente um ponto de vista resultante de uma determinada agenda política — o direito é fraco e só a força é eficaz. Não, não é.

A única garantia de segurança efetiva é a da paz e esta resulta do diálogo político e do compromisso entre interesses divergentes. Não são as armas ou a preparação para a guerra que cria a paz. Não são as defesas multimilionárias que oferecem segurança. A Europa de agora pensa assim, a Europa de antes pensava de outra forma. E é a ela que é preciso regressar.

O que espero, o que sinceramente espero das próximas eleições, é que, pelo menos, a política europeia deixe de disfarçar o que tem pela frente. Espero que a disputa se faça à volta dos valores do Iluminismo — recusar o crescente autoritarismo social nas sociedades europeias; rejeitar a limitação de direitos individuais; reestabelecer a ideia de direito como limitador do poder do Estado. Esta é a nova frente política que julgávamos resolvida na Europa e não está — a ideia da liberdade individual como força legitimadora do Estado.

Quem chegou até aqui na leitura do texto pode achá-lo pessimista, mas não é. É realista e confiante. A Europa de agora tem muitos problemas mas tem também novas armas e uma delas é a redescoberta da unidade popular à volta da defesa dos ideais democráticos europeus. Se não há dúvida sobre a ameaça à democracia por parte do populismo de extrema direita, a verdade também é que esta condição tem um outro lado — os democratas europeus estão a descobrir a sua identidade. Um pouco por todo o lado percebemos agora, de forma mais nítida, o que não somos e o que não queremos vir a ser. A ameaça da extrema-direita tornou-nos mais fortes na defesa do legado político europeu. E nada melhor para a unidade democrática que um inimigo bem identificado.

Ericeira, maio de 2024

*José Sócrates foi primeiro-ministro de Portugal de 2005 a 2011

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