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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

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A Leoa de Aracaju: Escolhida ou Eleita?

A metamorfose da candidata vitoriosa numa leoa, com direito à sugestão das garras com as quais governará Aracaju
04/11/2024 | 07h37

Estética política?

Outra vez, principio com um vídeo. Não se trata de gravação feita por mim ou da edição maliciosa de um corte, com a finalidade mesquinha de expor ou ridicularizar um eventual adversário.

Nada!

Muito pelo contrário.

O vídeo encontra-se na página oficial do Instagram de Emília Corrêa, recentemente eleita prefeita em Aracaju. E, apesar da repercussão, digamos com elegância, bem-humorada, e isso em nível nacional, não ocorreu à política suprimir o enfático e surpreendente agradecimento à população da capital do estado de Sergipe. A criativa produção audiovisual é acompanhada de uma declaração igualmente hiperbólica. Vale a pena transcrevê-la para que se entenda a estética favorecida:

“Aracaju, MUITO OBRIGADA por momentos indescritíveis, por ser raros. Nossa vitória foi linda! E agora, é hora de cuidar de nossa gente. E a melhor forma de demonstrar o que estamos vivendo hoje é retratar a força que me move: a fé em Jesus, o Leão da Tribo de Judá (Apocalipse 5:5). E como uma leoa, que na natureza, desempenha um papel crucial na sobrevivência e no bem-estar de sua prole, vou estar à frente dos destinos de Aracaju, cuidando e protegendo, em especial daqueles que mais precisam. Vamos escrever um lindo capítulo na história da nossa cidade com Deus e o povo.”

De fato, a vitória foi expressiva. Emília Corrêa enfrentou Luiz Roberto, do PDT, nome indicado pelo atual prefeito, Edvaldo Nogueira, do mesmo partido. Representante do PL, Corrêa triunfou com convincentes 57,46% dos votos, enquanto seu adversário precisou contentar-se com modestos 42,54% do eleitorado. Compreende-se sua alegria, exaltação até.

Triunfo maiúsculo — claro está.

O passo seguinte, contudo, mescla o lugar-comum com a atmosfera exótica de uma apresentação musical no ritmo de adolescentes do TikTok — e não se esqueça da metamorfose da candidata vitoriosa numa leoa, com direito à sugestão das futuras garras com as quais governará a cidade de Aracaju.

Vamos nos deter um pouco nessa floresta de símbolos em busca de correspondências que permitam passar da perplexidade à compreensão?

(Hipótese inicial: a perplexidade é nossa, não necessariamente de seus eleitores.)

Apocalipse: aqui e agora?

​Primeira referência, aliás, explicitada por Corrêa: o texto do Apocalipse. Vamos à letra:

“1 Vi, na mão direita daquele que estava sentado no trono, um livro em forma de rolo escrito por dentro e por fora, e selado com sete selos.
2 Vi, também, um anjo forte, que proclamava com voz forte:
– Quem é digno de quebrar os selos e abrir o livro?
3 Ora, nem no céu, nem sobre a terra, nem debaixo da terra, ninguém podia abrir o livro, nem mesmo olhar para ele.
4 E eu chorava muito, porque ninguém foi achado digno de abrir o livro, nem mesmo de olhar para ele.
5 Então um dos anciãos me disse
– Não chore! Eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para quebrar os sete selos e abrir o livro.”

O capítulo 5 trata do “livro (…) escrito por dentro e por fora” e, sobretudo, “selado com sete selos”. Os seis primeiros referem-se a eventos históricos, que, a seu modo, preparam o rompimento do sétimo selo, esclarecedor do destino último de todas as pessoas no julgamento final, isto é, na consumação escatológica. Em termos que ocorreriam ao romanista Erich Auerbach, o conjunto dos seis primeiros selos constitui figura, cuja consumatio é o próprio sétimo selo. Daí a pergunta angustiada que encerra o segundo versículo: “Quem é digno de quebrar os selos e abrir o livro?” Em tese, pessoa alguma, “nem no céu, nem sobre a terra, nem debaixo da terra”, possuía a dignidade requerida para essa tarefa – a mais decisiva que se possa conceber.

(É como se o tabuleiro de xadrez não contasse com o número exigido de casas para abrigar todas as peças.)

O choro e o desespero retratados no quarto versículo sintetizam a frustração e a impotência diante da constatação: “ninguém foi achado digno de abrir o livro, nem mesmo de olhar para ele”. Sequer contemplar o “rolo (…) selado com sete selos”, pois a mera visão supõe o compartilhamento com Deus de sua natureza, uma vez que a leitura equivale à decifração da verdade última relativa a todas as pessoas: os que se salvarão e os que se perderão. A escalada da tensão hermenêutica começa a se resolver no quinto versículo, justamente o trecho destacado no comentário de Emília Corrêa, embora com ânimo mais veterotestamentário do que cristão — como veremos.

Retornemos à letra: eis que finalmente surgiu aquele que não somente pode contemplar o livro, mas também romper os selos, isto é, revelar o seu conteúdo; finalmente o advento daquele que “venceu para quebrar os sete selos”, ou seja, o Jesus Cristo que triunfou sobre a morte e, ressurreto, afirmou sua natureza divina e confirmou a promessa da vida eterna. O versículo citado por Corrêa lança mão de dois símbolos para nomear Jesus: Leão da tribo de Judá, título oriundo do Gênesis; Raiz de Davi, em alusão ao livro de Isaías, no qual se fala da “raiz de Jessé”, ou seja, da linhagem de Davi e Jesus. No versículo 6, encontramos o símbolo do Cordeiro, que retorna no 7 e passa a constituir a chave hermenêutica de leitura do capítulo 5:

“7 O Cordeiro foi e pegou o livro da mão direita daquele que estava sentado no trono.

8 E, quando ele pegou o livro, os quatro seres viventes e os vinte e quatro anciãos se prostaram diante do Cordeiro, tendo cada um deles uma harpa e taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos, 9 e cantavam um cântico novo, dizendo:

Digno és de pegar o livro

e de quebrar os selos,

porque foste morto e com o teu sangue

compraste para Deus

os que procedem de toda tribo,

língua, povo e nação

10 e para o nosso Deus os constituíste

reino e sacerdotes;

e eles reinarão sobre a terra.” [1]

Um cântico que ilumina a centralidade do Cordeiro nessa passagem decisiva do Apocalipse. Em alguma medida, tudo se passa como se os símbolos icônicos do Velho Testamento — Leão da tribo de Judá e Raiz de Davi — também se convertessem em figura do futuro Cordeiro, consumatio das Escrituras e sentido último da adoração dos fiéis. É o que afirma o comovente versículo 11:

“11 Vi e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos, cujo número era de milhões de milhões e milhares de milhares, proclamando cm voz forte:

Digno é o Cordeiro que foi morto

de receber o poder, a riqueza,

a sabedoria, a força,

a honra, a glória e o louvor.” [2]

Ora, mesmo numa análise superficial, salta aos olhos a complexidade da passagem do Apocalipse mencionada pela prefeita de Aracaju. No limite, a apropriação é blasfema. Não é possível que, sem constrangimento aparente, e recorrendo à estética “Pablo-Qual é a música?”, do Programa Sílvio Santos, Emília Corrêa se compare a Jesus Cristo e se proponha a romper os setes selos da administração pública. Até em tempos de dissonância cognitiva coletiva, esse seria um delírio excessivo.

No entanto, a palavra estampada na camisa da Leoa de Aracaju desconcerta: “escolhida”. Pelo eleitorado? Nesse caso, nada a objetar, trata-se de constatação objetiva. Porém, a palavra “escolhida”, não sejamos ingênuos, possui uma ressonância explosiva no meio evangélico. Os judeus são o povo eleito, escolhido por Deus, assim como Jesus é o Ungido de Deus. No mínimo, a conjunção de Apocalipse 5:5 com a opção pouco modesta de considerar-se a “escolhida” aproxima perigosamente religião e política. Se as urnas não tivessem confirmado o “juízo”, teria havido fraude? Não foi esse o argumento golpista de muitos seguidores do ex-presidente Bolsonaro? Mas como aceitar a derrota eleitoral de um político “ungido”? Para tudo dizê-lo: o fundamentalismo religioso é estruturalmente golpista — e não pode ser de outra forma. O político-pastor Silas Malafaia não profetizou o triunfo de Bolsonaro, o “escolhido”? Em caso de derrota, não ameaçou os fiéis com seu esforçado jejum do café da manhã?

(Para ler como se estivesse gritando; na voz, cinquenta tons de ódio: “Todos vão jejuar! Mas podem jantar; aliás, comam muito bem, repitam a sobremesa! Depois, só o almoço no dia seguinte. Sim, claro, podem almoçar cedo!”)

Sem dúvida, o vídeo da prefeita é uma versão menos agressiva, mas ainda assim perversa da Teologia do Domínio em sua deturpação deliberada do repertório bíblico. Por isso, a prefeita ignora solenemente o símbolo do Cordeiro: no fundo, Jesus Cristo não cabe em sua mensagem.

A letra e a voz

Creio que tudo se esclarece se prestarmos atenção no louvor que fornece a trilha sonora do vídeo da prefeita, “Leão”, de Gabriela Rocha. Você conhece a canção?

Emília Corrêa improvisou sua inusitada coreografia com base no seguinte trecho:

“Já posso ouvir o Seu rugir daqui, oh oh
E em Seu nome, os gigantes cairão, oh oh
Já posso ouvir o Seu rugir daqui, oh oh
E em Seu nome, os gigantes cairão

Meu Deus é o Leão da Tribo de Judá
A morte não venceu
Ele é o Rei, Ele é o Rei”

É sintomático que se tenha principiado pela segunda estrofe, já que a abertura do louvor possui uma dicção bélica que poderia explicitar de modo imprudente o projeto do estabelecimento progressivo de uma ordem política e social teonomista. Eis a ameaça contida nos versos iniciais:

“Abram as portas, para que entre o Rei
O invencível, Senhor das guerras, Jesus
Seu nome é Jesus”

​De um lado, e mais uma vez, o Cordeiro é ignorado, metamorfoseado em “Senhor das guerras”. Por isso, as estrofes privilegiadas pela prefeita “escolhida” disfarçam o caráter agônico, porém não deixam de sublinhar a submissão da política à religião. A inadequação do gesto é óbvia: se a política é a arte das mediações entre visões de mundo opostas e interesses contraditórios, então, o fundamentalismo religioso necessariamente implica a negação absoluta da política. A razão é cristalina: na mentalidade fundamentalista só se pode aceitar o que seja espelho; nesse horizonte plúmbeo, o outro simplesmente não tem direito de cidadania. Entre o Leão da Tribo de Judá e o Cordeiro, hesitação alguma se insinua: Eliane Côrrea afia as garras e abraça o símbolo caracteristicamente veterotestamentário.

​De outro lado, salvo engano, voltamos a uma observação feita em coluna anterior, qual seja, a “escolhida” parece citar o repertório bíblico nem tanto pela consulta diligente da letra quanto pelo convívio com a voz, isto é, com a hinologia evangélica. Não se trata meramente de “criticar” a prefeita, mas de assinalar um fenômeno decisivo para o adensamento de uma cultura evangélica que começa a atravessar a sociedade brasileira em todos os níveis, alcançando inclusive grupos que professam outras religiões. A difusão de louvores tem criado uma espécie de koiné que reúne denominações diversas e ultrapassa fronteiras da fé, envolvendo parcelas crescentes do país.

(Você já antecipa: na próxima coluna, começo uma nova série de artigos. Conto com a sua leitura?)

 

[1] Agradeço ao pastor Sérgio Dusilek pelo diálogo na escrita deste texto.

[2] Apocalipse 5: 1-5. Nova Almeida Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018, p. 2364-2365.

[3] Apocalipse 5: 1-5. Op. cit., p. 2365.

[4] Ibidem.

[5] João Cezar de Castro Rocha. “Nikolas Ferreira: a manipulação do repertório bíblico”: https://iclnoticias.com.br/nikolas-ferreira-manipulacao-repertorio-biblico/.

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