Por sorte da humanidade Maria da Conceição Tavares viveu em um tempo em que suas entrevistas, aulas e palestras foram registradas em vídeo. É claro: as marcas que fizeram dela a principal mulher a se contrapor ao pensamento hegemônico da economia brasileira estão nos textos.
Mas não basta ler, é preciso ver Maria da Conceição Tavares.
Ao contrário da frieza dos tecnocratas que dominam o debate econômico, e aos quais ela dedicava tantas críticas, a emoção, a verve, a indignação da professora sempre estiveram à flor da pele.
As palavras escritas são insuficientes para expressar a revolta que a movia. A emoção transbordava da voz, do olhar, dos gestos com que hipnotizava seus ouvintes.
Era movida por ideias tão flamejantes que precisava dos movimentos corporais para enunciá-las.
Algumas vezes dava amistosos socos no peito do interlocutor para acompanhar o ritmo das frases. Este colunista passou por essa experiência duas vezes, ao entrevistá-la há muitos anos.
É esta expansividade que faz os vídeos de Maria da Conceição Tavares alcançarem tanto sucesso nas redes sociais.
Tome-se como exemplo a genial e dolorosa afirmação que a professora fez a uma turma da UFRJ, colocando os alunos frente a frente com um dilema existencial:
“Nós perdemos. Nós somos derrotados. E se vocês não fossem derrotados não vinham pra essa universidade, iam pra USP, pra PUC, pra outra qualquer. Ou pra Harvard. Pra aqui é que não viriam, seguramente. Isso está claro.
Estamos lutando pela hegemonia? Imagine-se.
Estamos lutando apenas pra não ficar malucos. Para não dizer besteiras demais. Pra não contribuir com a nossa gota de fel para um veneno alheio. Tomemos a nossa dose de cicuta com tranquilidade, meus filhos.
E até a próxima quarta”.
Já seria épica essa fala, lida em uma folha de papel ou em uma tela de celular. Mas o momento foi eternizado pelas lentes de uma câmera de vídeo.
A dramaticidade dessas palavras foi potencializada ao infinito pelas expressões faciais, pelo olhar e pelo tom de voz da mestra.
Confira:
Outra gravação que circula bastante nas redes foi feita em 1995, quando Maria da Conceição Tavares participou do programa Roda Viva.
Nesse trecho, ela diz:
“Uma economia que diz que precisa primeiro estabilizar, depois crescer, depois distribuir, é uma falácia. E tem sido uma falácia. Nem estabiliza, cresce aos solavancos e não distribui. E esta tem sido a história da economia brasileira desde o pós-guerra, ou não é?
Ver os meus queridos amigos, que junto comigo durante anos disseram que isto não era correto, que tinha que fazer ao mesmo tempo estabilização, crescimento e distribuição… Ver esses meus queridos amigos, que lutaram comigo no movimento de economistas, dizer hoje o contrário do que disseram é uma das maiores dores da minha vida.
Isto é dor mas também é raiva, portanto energia pra lutar por aquilo que o velho (Norberto) Bobbio e todos os jovens (…) ainda acreditam: você, se não se preocupa com a justiça social, com quem paga a conta, você não é um economista sério. Você é um tecnocrata”.
Essa declaração feita assim, no meio da roda composta por jornalistas econômicos, já denota uma das maiores qualidades da professora, a coragem. Mas quando assistimos o vídeo somos contagiados por sua indignação.
Veja:
Não é o caso de idealizá-la, como costuma acontecer em circunstâncias de morte. Conceição errou prognósticos ao apoiar o Plano Cruzado e ao se opor ao Plano Real.
Mas o saldo de acertos é muitíssimo superior. O principal acerto foi defender sempre que a economia fosse operada a favor dos mais necessitados e não em prol dos endinheirados, daqueles que ganham explorando o trabalho e o sofrimento alheio.
Mesmo diante de todos os baques que o Brasil lhe impôs, indo na direção oposta à que defendia, não abriu mão dos princípios. Chegou a dizer em uma das últimas entrevistas, já com 94 anos, que não desistiria deste país.
Fez isso com inteligência e sensibilidade, como pode constatar qualquer um que leia seus textos ou suas entrevistas.
No entanto, há seres humanos que só podem ser compreendidos completamente quando os vemos em movimento, defendendo com ardor seus ideais.
Darcy Ribeiro era um destes. Maria da Conceição Tavares também era assim, ainda em maior escala.
A qualidade essencial que os difere de outros excelentes intelectuais pode ser definida em uma palavra preciosa, que precisa ser inoculada em todos que lutam contra a desigualdade e que está tão difícil de se achar.
Paixão.
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