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Lindener Pareto

Professor e Historiador. Mestre e Doutor pela USP. Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). Apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação de História, Cultura e Arte nos canais do ICL.

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A última semana de dezembro

Mas no fundo você sabe que no dia 2 de janeiro o eterno retorno do Capital virá alucinado, roubando mais uma vez seu tempo, devassando a sua alma, suas coisas, desvãos… e muito cara de pau ele te dirá: “Adeus ano velho, Feliz ano novo!”
22/12/2024 | 14h29

Como de praxe, o tema de muitas colunas aqui e alhures é suportar a alucinação do dia a dia do mês de dezembro e tudo o que ele implica. Comecemos com o básico. Por “n” motivos ninguém ou quase ninguém deu conta de fazer tudo o que tinha que fazer, seja nas demandas do trabalho, seja nas demandas dos afetos familiares e amizades. Desde a aceleração do tempo provocada pela vida virtual e pandêmica, mil demandas caem sobre sua mesa virtual o tempo todo e não há IA capaz de te ajudar com isso. Até porque você precisa fazer e mostrar que está fazendo. E aí serve pra todo mundo, porque estamos em absoluto mergulhados na lógica espetacular da vida nas mídias sociais. O famoso “não basta viver, tem que postar” já ficou para trás, agora já é: “não viva, mas poste”.

Muito que bem, então avancemos. Você já fingiu que vai dar conta e já postou. Agora é encarar aquela meia dúzia de confras, tem a da firma (cuidado, é cilada, Bino), tem a dos amigos mais próximos, tem os mil grupos de zap (ainda bem que só encaro interação com um grupo, e olhe lá), tem a confra inesperada, enfim, você está moído, se arrastando, arrastando o fígado pela selvageria da cidade que te consome. Você chega com refluxo, paga caro, dorme mal, não dorme. Mas alto lá! Tem as festas de natal. Quando se é mais jovem e se tem uma família mais ou menos estruturada, você até tem pra onde ir, aquela ilusão de eterno retorno pra uma casa que não é mais a sua há décadas. Mas você vai, tenta refazer os laços de memórias afetivas que te reconectam aos seus iguais em sangue, mas você sabe que tem um bolsonarista, você lembra que sua mãe morreu, você lembra que perdeu a conexão com o seu pai, você lembra que as brigas pelo que restou da vida anterior estão vivas e prontas para explodir.

Mas você sobrevive, leva as rabanadas, finge bem que está tudo bem. Que não tem dívidas ou dúvidas, que não tem mil mensagens de zap pra responder, que não tem que renegociar o aluguel, que não tem a precarização e uberização da vida e o fascismo à espreita, ali, te fitando, só esperando uma única oportunidade pra varrer um país inteiro. E aí vem a última semana de dezembro. Você acabou de pagar aquela conta de luz atrasada, que a Enel tem a cara dura de te cobrar apenas dois dias depois do vencimento. É a semana mais sofrida da existência de um ser humano. E aí tem mil e um exemplos. Você não é um cristão tão praticante assim, não fez árvore de natal (são caras, não tem dinheiro pra isso), não tem luzinhas piscantes, não tem nada disso, você acha que é uma tradição importada, forçada e consumista, mas tem que ouvir mil sermões, mil mensagens de autoajuda, mensagens que ignoram o óbvio: “só há uma religião no mundo e ela se chama Capitalismo. E ela está te matando, vai te matar.”

E finalmente vem a virada de ano. E imaginem só, você põe Harry e Sally (feitos um para o outro) para ver com a namorada, é tudo metalinguístico, os encontros e desencontros do amor, a amizade, o fim de ano e a sua cara-metade, enfim, aquela comédia romântica que fez você acreditar que o amor, e só o amor, conhece o que é verdade. Mas outra coisa te aflige. Onde passará a virada? No fim de 2022 — por exemplo — passei (pela primeira vez) absolutamente sozinho. Foi deprimente. Não pela solidão, mas pelo lanche que tentei pedir uma hora antes da meia-noite, chegou às 3h da manhã, gelado, com alguns poucos grãos de milho e um hambúrguer que parecia carne de minhoca.

Mas o que interessa aqui é pensar por que todos e todas nós acreditamos que de um minuto para o outro, num passe de mágica, tudo vai mudar com a virada. Aquela esperada meia-noite no jardim do bem e do mal, o espumante feito com trabalho análogo à escravidão, aquela carne duvidosa, enfim, você constata o óbvio. Somos feitos de rituais e rituais importam. Você quer acreditar que tudo vai mudar, que a desigualdade social vai de fato diminuir, que o agronegócio não vai destruir de vez a Amazônia, que você não será mais uma peça no tabuleiro global das estratégias de exploração e humilhação. Mas você vai, pula onda, acende vela, vê o show, se isola na montanha, no sítio, numa casinha de sapê, reza, pede para as deusas, abraça um monte de gente e dá feliz ano novo! Mas no fundo você sabe que no dia 2 de janeiro o eterno retorno do Capital virá alucinado, roubando mais uma vez seu tempo, devassando sua alma, suas coisas, desvãos… e muito cara de pau ele te dirá: “Adeus ano velho, Feliz ano novo!”

“Velho triste (no Portão da Eternidade).” Pintura de Vincent Van Gogh, 1890

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