Cristiane Sampaio — Brasil de Fato
Em movimento coordenado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o plenário aprovou, de surpresa, na noite desta terça (16), a urgência para a tramitação de uma proposta que impõe sanções administrativas e restrições a ocupantes de terras rurais e urbanas. Trata-se do projeto de lei (PL) 895/2023, um dos itens de um combo de medidas que buscam dificultar a ação política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
A aprovação vem após a organização iniciar o Abril Vermelho, período em que são intensificadas as ocupações de terra e outras atividades dos militantes, logo após o presidente Lula (PT) exonerar o superintendente regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de Alagoas, Wilson César de Lira Santos, primo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a quem cabe definir a pauta de votações da Casa.
Além da demissão do primo, os embates com o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, que recebeu apoio do presidente Lula, é outro motivo para a atual ofensiva de Lira contra interesses do governo. O presidente da Câmara também anunciou que vai destravar a tramitação de outros assuntos de interesse da oposição, como a criação da Comissões Parlamentares de Inquérito.
A colocação do requerimento de urgência em votação para o projeto que pune movimentos populares revoltou parlamentares do campo da esquerda, que foram pegos de surpresa.
O pedido não constava na lista de pautas a serem avaliadas nesta terça após os acordos feitos pelos líderes das bancadas. “Não podemos aceitar isso. Me chamaram ali às presas. Eu não estava nem no plenário. Não podemos permitir isso”, reclamou no microfone o líder do governo, José Guimarães (PT-CE), que fez um apelo para se “repor o rito” da Câmara.
O PL 895 consta na lista de propostas que aguardam a análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e ainda não tem parecer do relator, o deputado Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro.
“Eu não estou nem entrando no mérito do projeto ainda. É que, no afã de votarem de qualquer jeito, fazem agitação no plenário. Como votar uma matéria tão polêmica como essa sem acordo? Como votar uma matéria dessa hoje? Isso não pode. Não é o desejo de vocês que pode sacrificar o funcionamento democrático desta Casa e do colégio de líderes, não”, criticou Guimarães.
A votação da urgência terminou com 293 votos favoráveis e 111 contrários, além de uma abstenção. As siglas PT, PCdoB, PV, PSB, Psol, Rede e as lideranças do governo e da maioria orientaram os correligionários a votarem contra a proposta. Já os partidos Novo, PL, as lideranças da minoria e da oposição e o bloco que reúne PP, PDT, União, PSDB, Cidadania, Avante, Solidariedade e PRD defenderam voto favorável.
A deputada Erika Hilton (PSOL-SP) disse que a votação foi uma “desagradável surpresa”. “Isso não foi tratado na reunião. Nós fomos pegos de surpresa porque tínhamos entendido que a pauta que estaria no plenário neste momento era uma pauta tranquila, quase consensual, e de repente voltam os projetos de criminalização dos movimentos sociais. É um projeto descabido, que ataca os direitos humanos, um projeto que não deveria estar como primeiro item da pauta. Qual é a finalidade dos acordos que nós fazemos como líderes para sermos surpreendidos aqui com estes projetos nefastos e horrorosos?”, questionou.
Com a aprovação da urgência, as lideranças partidárias ficam autorizadas a votarem o mérito do PL 895 a qualquer momento. No sistema da Câmara, o projeto foi apensado ao PL 709/2023 e outras propostas, o que significa que eles tramitam em conjunto.
O carro-chefe do grupo é o PL 709, que veda o recebimento de auxílios de programas federais por parte de ocupantes de terra. O texto também proíbe a nomeação para ocupação de cargos públicos efetivos ou em comissão, bem como impõe outros impedimentos ao segmento.
CCJ
A ofensiva da ala conservadora da Câmara contra o MST se deu também no âmbito da CCJ, que iniciou na tarde desta terça (16), sob protestos, a análise de uma proposta que autoriza proprietários rurais a convocarem forças policiais para retirarem ocupantes de terra de suas áreas sem necessidade de autorização judicial, conforme determina a legislação atualmente vigente.
Assinado pelo ex-deputado André Amaral (Pros-PB), o texto conta com parecer favorável do relator, Victor Linhalis (Podemos-ES), que apresentou o voto na sessão de hoje. A sessão foi encerrada antes da votação porque foi iniciada a ordem do dia no plenário da Casa, o que fez com que o debate sobre o texto e a avaliação do mérito do PL fossem adiados para esta quarta (17).
A proposta em questão é o projeto de lei (PL) 8262/2017, um dos textos do combo anti-MST articulado pela oposição bolsonarista. O grupo se refere a essa lista de projetos como “Pacote Anti-Invasão”. Durante a sessão da CCJ, parlamentares do campo progressista reagiram à tentativa de votação dessa e de outras propostas que buscam enquadrar o movimento.
Também estava na pauta desta terça, por exemplo, o PL 4183/2023, de autoria do deputado Coronel Assis (União-MS) com o apoio de outros 23 signatários, que impõe a movimentos populares a obrigação de terem personalidade jurídica. Esse texto também tem voto favorável do relator, Alfredo Gaspar (União-AL), mas não chegou a ser avaliado nesta terça.
A presidenta da CCJ, Caroline de Toni (PL-SC), disse, em reunião com parlamentares pouco antes da sessão do colegiado, que vê a aprovação dos PLs anti-MST como uma necessidade de “dar uma resposta ao Abril Vermelho”.
Patrus Ananias (PT-MG) afirmou que “este é um momento de retrocesso lamentável”.
“A comissão está explicitando as suas posições — uma parte delas, pelo menos —, infelizmente com adesão da presidência. Está fazendo uma clara opção ideológica e, inclusive, deixou claro conosco [em reunião] que a pauta de hoje tem a ver com o Abril Vermelho, como se coubesse à CCJ um papel de repressão dos movimentos sociais.” O petista lembrou que tais projetos têm como pano de fundo questões relacionadas à desigualdade no campo. “Uma dessas questões é a da propriedade. Nós respeitamos o direito de propriedade, mas ele não é absoluto. Direito sagrado é o direito à vida.”
A deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) esteve entre os parlamentares que levantaram a voz contra os projetos. Ela destacou que, ao longo da história, os povos indígenas foram dizimados porque, entre outras coisas, sua luta por direitos foi oprimida por ações políticas que dialogam com a lógica dos PLs inseridos na pauta da CCJ.
“Esta pauta que está aqui em jogo fala muito da criminalização direta de movimentos sociais. Se querem realmente acabar com a luta no campo, com a luta do MST, vocês têm que fazer cumprir o direito constitucional à reforma agrária.”
Para Chico Alencar (PSOL-RJ), a articulação política contrária ao MST lembra o que chamou de “velho coronelismo”. “Eles fazem da CCJ um campo de batalha, mas nós estamos aqui pra resistir, pra ocupar e produzir outras propostas, que não são essas de prender e punir quem luta por justiça agrária. Isto aqui é uma prova de resistência”, disse ao Brasil de Fato.
Nos bastidores da Câmara, a leitura geral é de que, por ter maioria na CCJ, a ala mais conservadora tende a obter a aprovação das propostas que miram o MST, ainda que talvez a apreciação de alguns projetos demore.
“No plenário, tudo depende do centrão, que é o fiel da balança. Talvez lá seja mais difícil, mas não sei. A mobilização da sociedade também é muito importante nesse processo. Não me arrisco a fazer nenhum prognóstico para o plenário, nem de vitória, nem de derrota. Daqui pra frente é luta”, diz Alencar.
Outras manobras de Lira
Além disso, Arthur Lira anunciou nesta terça-feira em reunião com líderes partidários que deve destravar pedidos feitos pela oposição, como a criação de cinco Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) e um Grupo de Trabalho (GT) para elaborar uma proposta de reação contra operações judiciais visando deputados.
O regimento da Casa limita em cinco número máximo de CPIs em funcionamento simultâneo. Entre os requerimentos com o número necessário de assinaturas estão colegiados que pretendem apurar o “tráfico infantil e exploração sexual”, o “avanço do crack”, o “crime organizado”, o “abuso de autoridade do Judiciário”, as “passagens promocionais”, as “concessionárias de energia Ambar Energia e Karpowership no Brasil” e as “concessionárias de distribuição de energia elétrica e pedidos de conexão de Micro e Minigeração Distribuída”.
Outra iniciativa é confrontar o Supremo Tribunal Federal (STF). A Câmara vai criar um grupo de trabalho para elaborar uma proposta em reação a investigações contra parlamentares.
Operações da Polícia Federal contra os deputados Alexandre Ramagem (PL-RJ) e Carlos Jordy (PL-RJ) e a prisão de Chiquinho Brazão (sem partido-RJ), alimentaram entre congressistas a vontade de impor freios.
Um dos projetos ficou conhecido como “PEC da Blindagem” e discute, entre outros pontos, exigir que o Congresso dê autorização para o início de apurações contra parlamentares e acabar com o foro privilegiado de congressistas, o que empurraria todos os processos à primeira instância.
Em direção contrária, o STF decidiu na semana passada estender o foro, amarrando um maior número de processos na Corte. Há ainda a intenção de proibir operações de busca e apreensão nas dependências do Parlamento.
Leia também
Após demissão de primo de Lira do Incra de Alagoas, movimento popular faz ‘lavagem’
Deixe um comentário