O abolicionista, jurista e jornalista Luiz Gama costumava dizer que a razão de Estado no Brasil é o Terror! E Gama não estava se referindo ao período Jacobino da Revolução Francesa (1789-1799), mas sim ao Estado Nacional brasileiro, que a partir de 1822 se constituiu como nação independente de Portugal e que o fez em função da instituição da escravidão.
Os especialistas já sabemos, mas é sempre bom lembrar ao público leitor, que o Brasil foi a maior nação escravocrata da modernidade. Dos quase 12 milhões de africanos escravizados entre 1550 e 1850, o Brasil (Colônia e Império) captou nos portos do continente africano quase 5 milhões de cativos. Número assombroso, mais de 40% do tráfico transatlântico de seres humanos escravizados teve como destino final os portos do Recife, Salvador e, sobretudo, o porto do Cais do Valongo, na cidade do Rio de Janeiro.
Vale dizer que 1822 não significou uma mera continuidade do período colonial e da escravidão. Como as pesquisas mais recentes do campo demonstram, houve o aumento do número de escravizados como nunca antes em nossa história e que toda a política do Império do Brasil se organizou em função da propriedade escrava. Nascia o Império da Escravidão!
Significa dizer que as altas instâncias das instituições do novo Império não apenas apostaram na política da escravidão como linha mestra do funcionamento do Brasil, mas também permitiu o tráfico ilegal de mais de 750 mil africanos, que entre 1831 e 1850, protegidos por lei aprovada no congresso nacional, deveriam ser imediatamente libertos caso fossem desembarcados em território nacional.
E foram? Não. Por isso tal crime, cometido pela elite nacional nas altas instâncias governamentais, foi chamado pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro de “o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira.” Em outras palavras, a elite política e econômica que forjou o Brasil independente era uma elite corrupta, sequestradora e absolutamente comprometida com o pacto da escravização de africanos. Ora, não nos iludamos.
Como manter um sistema assim sem a aplicação de um modelo brutal de justiça e de segurança pública? A maior nação escravocrata da modernidade, de maneira perversa e sofisticada – e condizente com os lucros do capitalismo ao sul do equador – conduziu o maior sistema público de punição aos corpos negros que se tem notícia. Basta verificar as pinturas de Jean Baptiste Debret para constatar que o terror contra a população afro-brasileira era (e ainda é) a razão de ser do Estado e das elites do Brasil.
Ora, a despeito da Lei Áurea, promulgada em 13 de Maio de 1888 depois de muita luta de abolicionistas do calibre de Luiz Gama, a Proclamação da República (15 de Novembro de 1889) – supostamente mais democrática – não deixou o Império da Escravidão para trás. Com efeito, a Constituição de 1891 excluía da participação política formal mais de 90% de nossa população, formada sobretudo por pretos, pardos e indígenas.
Uma exclusão formal acompanhada por uma constante criminalização dos costumes, tradições e crenças africanas no Brasil. Um sistema tão violento não deixou de produzir uma revolta à altura. Não foram poucas as rebeliões de escravizados em todas as partes do Brasil da Escravidão. Da Revolta dos Malês ao Movimento Negro Unificado, a luta do povo afro-brasileiro configura o que há de mais potente na luta pela liberdade em toda a história contemporânea.
Muitos são os nomes que ecoam tal potência: Abdias do Nascimento, João Cândido, Laudelina de Campos Melo, Marielle Franco e Carlos Marighella são alguns dos milhares de nomes de um Brasil Contemporâneo que se conecta ao século XVIII e à luta de Zumbi e Dandara dos Palmares contra a escravização organizada pelo sistema açucareiro dos senhores de engenho da então Capitania de Pernambuco, no século XVII.
De muitas maneiras, a unidade de luta da população afro-brasileira se conecta ao Zumbi, cujo reino africano no coração da América Portuguesa – também o quilombo mais longevo e resistente de toda a história da escravização negra das Américas – lembra a todos os brasileiros e brasileiras de hoje que somos a maior nação africana fora da África! Que só haverá futuro e democracia no Brasil se não ficarmos de costas para o continente africano que também nos forjou. O Brasil é África! E ela está em toda parte. Não deixemos mais que as balas do arcabuz que matou Zumbi em 1695, num 20 de novembro, continuem a matar nossas Marielles e Mariguellas. Viva Zumbi!
E em se tratando de celebrar datas de luta e liberdade, não se esqueçam! No dia 23 de novembro, às 20h, o ICL vai promover uma aula inédita no Brasil. Eduardo Moreira, Jones Manoel, e uma turma pra ninguém botar defeito, vão debater a luta e o legado do pensamento radical de Malcolm X! Com a presença de Abdur-Rahman Muhammad, direto dos EUA, num debate imprescindível sobre a unidade de luta dos povos africanos em todas as Américas!
E confesso ainda, num dos meus sonhos pueris de historiador, que eu gostaria de ver (e ter) uma dessas fotografias, feitas por Inteligência Artificial, que reúna numa única selfie os nomes que mencionei aqui. Já pensou lado a lado e sorrindo para a liberdade figuras como Malcolm X, Luiz Gama, Martin Luther King, Marielle Franco, João Cândido, Laudelina de Campos Melo e Marighella?! Alguém aí afim de fazer? Em todo caso, sabemos que estão mais juntos do que nunca! Vivem!
Enquanto isso, terminando aqui as linhas de hoje, estou olhando pela janela, vendo as ruas da cidade de São Paulo, da cidade de Luiz Gama…e vou cantando, contando com ele… e com Caetano:
“Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mas possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa”
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