ICL Notícias

Por Gabriela Varella*

Na última sexta-feira (9), vimos fotos de revirar o estômago da ex-primeira-dama da Argentina Fabiola Yañez. Ela denunciou o ex-presidente Alberto Fernández por violência doméstica. Além dos hematomas nos braços e nos olhos, também foram divulgadas conversas de WhatsApp entre Yañez e Fernández.

Nas mensagens, ela disse estar sendo agredida por três dias seguidos. Do outro lado, o ex-presidente argentino pede que ela pare de falar sobre as agressões. “Estou com dificuldade para respirar. Por favor, pare. Me sinto muito mal”, diz. Um comportamento típico do homem agressor que se coloca no lugar de vítima. Que pede perdão. Manda flores. Que diz que está arrependido e que nunca mais vai acontecer.

Fernández já veio a público negar as agressões. Mais de uma vez. Em uma delas, durante entrevista ao jornalista Horacio Verbitsky, disse que a foto em que Yañez aparece com o olho roxo era resultado de “tratamento estético contra rugas”.

A extrema direita imediatamente quis tirar vantagem política. O presidente argentino, Javier Milei, foi às redes para qualificar o caso como “hipocrisia progressista” e dizer que as políticas de igualdade de gênero promovidas por Alberto Fernández eram uma fraude. Muitos progressistas ficaram em choque. Decepcionados.

A mim? Não surpreende. Explico o porquê.

Entre todos que quiseram tirar uma casquinha e surfar na onda, quem tocou num ponto crucial nesta história foi a ex-presidente Cristina Kirchner, numa relação já desgastada de aliança política: “A misoginia, o machismo e a hipocrisia, pilares sobre os quais se baseia a violência verbal ou física contra as mulheres, não têm bandeira partidária e permeiam a sociedade em todos os níveis.”

A violência contra a mulher não tem um perfil. Como já disse o meu colega André Graziano, aqui mesmo no ICL Notícias, “é inegável que uma das forças que alimentam o bolsonarismo é o machismo”. Mas a recíproca não é verdadeira. A misoginia e a violência contra a mulher estão nas nossas raízes.

Fiquei com isso entalado na garganta. Depois, no final de semana, veio a declaração da atriz Cristina Pereira no Festival de Cinema de Gramado. Ela, hoje com 74 anos, revelou ter sido vítima de um estupro aos 12.

Na época, ela estudava em um colégio de freiras e ainda não tinha menstruado. Disse não ter tido qualquer tipo de suporte. “Eu não sabia nada de sexo e não sabia o que aquele homem tinha feito comigo”, disse. “Na minha época não tinha educação sexual na escola, e esses [parlamentares e apoiadores] filhos da puta do boi, da Bíblia e da bala não querem que a criança saiba, entende?”.

Cristina Pereira falou pela primeira vez publicamente décadas depois do abuso que sofreu. Quantas mulheres guardam ou passam por cima de suas histórias de violência? Quantas sentem vergonha? Medo?

Os casos de Yañez e de Cristina Pereira não saíam da minha cabeça. Me despertaram um gatilho adormecido. Me fizeram dar conta de um caso de que tento fugir. Mas que nunca me abandonou realmente.

Saí algumas vezes com um homem em quem confiava. Um aliado. Afinal, ele é progressista. Jamais poderia ser um abusador, não? Ele também se preocupa com direitos humanos, com os direitos das mulheres, dos negros, dos LGBTQIAP+. Estamos do mesmo lado da trincheira, não?

Demorei para entender que desrespeitar uma escolha minha era um abuso. Por mais que aquilo tenha me dilacerado, eu me calei. Fiquei em choque. Não consegui pedir pra parar. E me culpo até hoje por isso. Sinto vergonha. E nunca consegui chamar o que sofri pelo nome.

Homens progressistas não se enxergam como potenciais abusadores. Eles podem ser bem-intencionados — ou achar que são. Mas não estão isentos.

Veja, não é que eu não acredite que a gente consegue chegar a algum lugar, a algum tipo de avanço, excluindo os homens dessa caminhada.

Mas muito ajudam os homens que sabem se colocar no lugar de potenciais abusadores. Sim, você leu direito: de potenciais abusadores. A essa altura, alguns homens que chegaram até aqui podem levantar o dedo: “Eu, não!”. Eu poderia recorrer a diversas frases, além da clássica “nem todo homem”. Todas elas acabam recaindo no mesmo lugar: na fuga de uma responsabilidade que, sim, é de vocês.

Estamos cansadas. Até puxar essa responsabilidade é cansativo. Estamos exaustas de dizer, mais uma vez, o óbvio: não adianta só se dizer aliado, ler Simone de Beauvoir, Angela Davis e tantas outras autoras fundamentais para o feminismo. Tudo isso é importante, mas não impede que a violência de gênero continue sendo persistente e endêmica no Brasil.

Homens precisam querer estar nessa caminhada porque se importam, de fato, com a vida das mulheres. Desconstruir não é sobre querer se livrar da culpa do machismo. É reconhecer que esse é um problema de todos nós.

A gente não quer tapinha nas costas. A gente não quer só que vocês lavem a louça e sejam homens funcionais. Que vocês assumam a responsabilidade da paternidade. A gente quer poder se sentir segura. Mais do que poder dizer “não” e ser respeitada, a gente quer poder mudar de ideia.

 

*Gabriela Varella é jornalista e apresentadora do videocast Em Detalhes e do programa ICL Notícias — Segunda Edição

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