ICL Notícias

Quando o mundo se deu conta da gravidade da pandemia de Covid-19, nos primeiros meses de 2020, houve aqueles que conseguiram extrair da situação um prognóstico positivo e imaginaram que o trauma inédito iria fazer a humanidade superar as diferenças. Alguns otimistas apostaram que a lição de igualdade que não se aprendeu pelo amor seria assimilada pela dor, e uma nova era de fraternidade uniria os homens.

Erraram redondamente.

Essa constatação pode ser confirmada pelo relatório Desigualdade S.A., que está sendo divulgado hoje pela Oxfam (confederação internacional de entidades destinada a combater a pobreza, as desigualdades e as injustiças em todo o mundo) e será apresentado Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.

Diz o documento: “a distância entre o Norte e o Sul do mundo aumentou pela primeira vez em 25 anos”. A desigualdade global está agora em um nível comparável à encontrada na África do Sul, o país mais desigual do planeta e a pobreza nos países de renda mais baixa é ainda maior do que era em 2019.

Desde 2020, quase 5 bilhões de pessoas em todo o planeta empobreceram. “A fortuna dos cinco bilionários mais ricos do mundo mais do que dobrou desde o início desta década, enquanto 60% da humanidade ficou mais pobre”, diz o relatório.

“O forte aumento no custo de alimentos e outros bens essenciais que começou em 2021 passou a ser uma nova realidade para muitas famílias em todo o mundo, que tentam comprar óleo, pão ou farinha sem saber quanto poderão pagar desta vez ou quanta fome elas e seus filhos terão que suportar hoje”, relata o texto.

O levantamento da Oxfam ressalta que os preços estão ultrapassando os salários, e centenas de milhões de pessoas têm dificuldades de fazer com que seus ganhos rendam um pouco mais a cada mês.

Escalada de conflitos, aceleração da crise climática e aumento do custo de vida empurram o planeta para o caminho inverso ao imaginado pelos otimistas.

A seguir, o ICL Notícias mostra alguns dos principais pontos do relatório:

• Mais de metade (57%) dos países mais pobres do mundo, onde vivem 2,4 bilhões de pessoas, estão tendo que reduzir os gastos públicos em um total combinado de 229 bilhões de dólares durante os próximos 5 anos, o que é mais do que o valor total da ajuda pública ao desenvolvimento (APD) para 2022. Esses cortes costumam ser sentidos de forma particularmente aguda por mulheres, meninas e pessoas não binárias, principalmente as que enfrentam desigualdades cruzadas com base em raça, etnia e casta.

1. Desde 2020, quando começou esta década de divisão, os cinco homens mais ricos do mundo viram suas fortunas mais do que duplicas, enquanto o patrimônio de quase cinco bilhões de pessoas diminuiu.
2. Se cada um dos cinco homens mais ricos do mundo gastasse um milhão de dólares por dia, eles levariam 476 anos para esgotar todo o seu patrimônio combinado.
3. Sete em cada dez das maiores empresas do mundo têm bilionários como CEOs ou principais acionistas.
4. O 1% mais rico do mundo possui 59% de todos os ativos financeiros globais.
5. O 1% mais rico do mundo emite a mesma quantidade de poluição de carbono que os dois terços mais pobres da humanidade.
6. Apenas 0,4% das mais de 1.600 maiores e mais influentes empresas do mundo estão comprometidas publicamente com o pagamento de salários dignos a seus trabalhadores e apoiam isso em suas cadeias de valor.
7. Levaria 1.200 anos para uma trabalhadora do setor de saúde ganhar o que o CEO de uma das 100 maiores empresas lista da Fortune ganha em média em um ano.

• As pessoas mais ricas do nosso mundo continuam sendo as que mais ganham neste momento de crise. Em 2023, os bilionários estão 3,3 trilhões de dólares ou 34% mais ricos do que eram em 2020, no início desta década de divisão. Prevê-se que o número de milionários aumente 44% entre agora e 2027, enquanto o número de pessoas com patrimônio de 50 milhões de dólares ou mais deverá crescer 50%.

• A Oxfam estima que, se o patrimônio dos 5 bilionários mais ricos continuar aumentando no mesmo ritmo dos últimos 5 anos, veremos o primeiro trilionário em 10 anos. Mas a pobreza não será eliminada antes de 230 anos.

Fachada da empresa Amazon.

Fachada da empresa Amazon. Foto: David Becker/ AFP

• As empresas globais e os seus proprietários super-ricos estão entre os grandes vencedores desta crise. CEOs de todo o mundo receberam aumentos salariais significativos nas últimas décadas, de mais de 1.200% nas 350 maiores empresas dos Estados Unidos, superando em muito os escassos aumentos dos trabalhadores. A análise da Oxfam e da ActionAid sobre as maiores empresas do mundo revelou um salto de 89% nos lucros para os anos de 2021 e 2022, em comparação com a média de 2017–2020. Novos dados que abrangem os primeiros 6 meses de 2023 revelam que o ano deverá bater todos os recordes como o mais lucrativo até agora para as grandes corporações.

• Um pequeno número de empresas cada vez maiores exerce uma influência extraordinária sobre economias e governos, – como este relatório demonstra — um poder em grande parte desenfreado de aumentar os preços pagos pelos consumidores, reduzir salários e abusar dos trabalhadores, limitar o acesso a bens e serviços fundamentais, impedir a inovação e o empreendedorismo, e privatizar serviços públicos em benefício do lucro privado.

• As corporações monopolistas não são apenas grandes; elas podem controlar mercados, estabelecer as regras e os termos de troca com outras empresas e trabalhadores, e definir preços mais altos sem perder negócios. Especificamente, um monopólio é “uma empresa com poder de mercado significativo e duradouro — isto é, a capacidade de longo prazo de aumentar preços ou excluir concorrentes”. O poder monopolista gera mais poder, possibilitando que os monopólios extraiam riqueza das empresas e dos trabalhadores que estão em sua órbita gravitacional, gerando maior desigualdade.

As 5 maiores empresas do mundo, juntas, são avaliadas em mais do que o PIB combinado de todas as economias da África, da América Latina e do Caribe. E embora o imenso poder empresarial seja uma história global, não surpreende que as grandes corporações dos Estados Unidos geralmente dominem o discurso sobre esse poder, já que são a maioria das empresas mais valiosas do mundo.

A concentração de mercado está em toda parte. Em termos globais, as empresas passaram por uma grande consolidação.
Dez gigantescas farmacêuticas globais, as "big pharma", resultaram da fusão de 60 empresas ao longo de duas décadas.
Duas empresas globais controlam mais de 40% do mercado global de sementes (em comparação com dez que detinham 40% há 25 anos).
Quatro empresas controlam 62% do mercado mundial de pesticidas.
Três quartos dos gastos globais com publicidade online são pagos por Meta, Alphabet e Amazon.
Mais de 90% das buscas por informação online são feitas por meio do Google.
As "quatro grandes" dominam o mercado de contabilidade global, com uma fatia de mercado de 74%.
A agricultura tem registrado uma "concentração crescente da produção e da comercialização de produtos agrícolas e alimentares".

• Para além do ‘private equity’, as “Três Grandes” gestoras de fundos de investimentos – BlackRock, State Street e Vanguard – administram, juntas, cerca de 20 bilhões de dólares em ativos. A pesquisa sugere que esse tipo de concentração de mercado reduz os incentivos para que as empresas possam competir, aprofundando o poder de monopólio. Juntas, elas controlam perto de um quinto de todos os ativos ‘investíveis’ no mundo. A propriedade comum em tão poucas empresas financeiras impossibilita uma economia justa como um todo. Além disso, pesquisas de Harvard sustentam que o poder econômico desses fundos de investimentos está tão concentrado que “em um futuro próximo, cerca de 12 indivíduos terão poder, na prática, sobre a maioria das empresas de capital aberto dos Estados Unidos”, preocupações que já foram manifestadas pelo próprio fundador da Vanguard.

• Quando tomam medidas visando objetivos definidos e voltados a uma missão, como se concentrar no pagamento de salários dignos ou agir para reduzir suas pegadas de carbono, as grandes empresas podem receber ataques agressivos.

Fotogradia mostra paralisação feita por motociclistas entregadores por aplicativos. O foco está na traseira da mochila de um dos motociclistas, que possui um papel com os escritos: "Breque Internacional de entregadores. Nossas vidas valem mais que o lucro deles! #BrequeDosApps

Foto: Jaqueline Deister

• A extrema desigualdade de poder gerada pelos monopólios privados é uma forma de corrupção que impulsiona a desigualdade econômica. Os monopólios agem como governos, regulam como governos e competem com os governos pelo poder. Como advertiu o ex-presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, “a liberdade de uma democracia não está segura se o povo tolerar o crescimento do poder privado até um ponto em que este se torne mais forte do que o seu próprio Estado democrático”. Os riscos do aumento do poder foram bem sinalizados pelo ex-presidente chileno Salvador Allende, que disse: “Estamos diante de um confronto direto entre as grandes corporações transnacionais e os Estados. As grandes empresas estão interferindo nas decisões políticas, econômicas e militares fundamentais dos Estados”.

• As últimas décadas foram cruéis para muitos trabalhadores no mundo. Elas foram caracterizadas por uma corrida para nivelar por baixo e pelo trabalho muitas vezes mal remunerado, precário e perigoso. Este capítulo descreve como as pessoas que participam das cadeias de valor globais, principalmente mulheres e pessoas discriminadas e excluídas por raça e etnia recebem salários de fome e enfrentam desrespeito generalizado a seus direitos e péssimas condições de trabalho, enquanto as empresas usam a sua influência para garantir políticas trabalhistas favoráveis. Essas circunstâncias terríveis geraram lucros sem precedentes para grandes empresas, remunerações fantásticas para uma elite de executivos e muita riqueza para os acionistas. Em vez de investir em salários mais elevados e melhores condições de trabalho (como políticas que dariam apoio mais eficaz às responsabilidades de cuidado), empresas poderosas optaram por enriquecer seus proprietários, um grupo que, como mostra este relatório, é desproporcionalmente ultrarrico e vive no Norte Global.

• Trabalhadores do mundo todo realizam trabalhos mal remunerados, exaustivos e muitas vezes precários, em benefício de algumas das maiores empresas do mundo. Os salários são o principal meio pelo qual os benefícios da produtividade e, portanto, do crescimento econômico, chegam aos trabalhadores. No entanto, durante décadas, o crescimento salarial tem ficado preocupantemente defasado em muitos países. Uma análise da OIT revela que a distância entre o crescimento dos salários e a produtividade do trabalho em 52 países em 2022 foi a mais elevada desde o início do século 21. A nova análise da Oxfam sobre os dados da World Benchmarking Alliance para mais de 1.600 das maiores e mais influentes empresas em todo o mundo mostra que apenas 0,4% delas estão comprometidas publicamente com o pagamento de salários dignos a seus trabalhadores e apoiam isso em suas cadeias de valor.

Tania Rêgo/ Agência Brasil

A tributação das empresas diminuiu em vários aspectos, apesar do aumento acentuado dos lucros de muitas delas. Desde 1980, a alíquota do imposto sobre a renda de pessoas jurídicas caiu a menos da metade nos países da OCDE, começando em 1980 em 48% e diminuindo para apenas 23,1% em 2022. Essa redução ocorreu em todo o mundo, com quedas nas alíquotas de 111 dos 141 países pesquisados entre 2020 e 2023.

• Por mais drástica que tenha sido, essa queda não revela toda a extensão do problema, com paraísos fiscais, uso generalizado de incentivos fiscais inúteis e planejamento fiscal agressivo resultando em alíquotas reais muito inferiores às legais e, muitas vezes, mais próximas de zero.

• Uma forma importante — embora subestimada — pela qual o poder das grandes empresas fomenta a desigualdade é a privatização dos serviços públicos. Em todo o mundo, esse poder está pressionando incessantemente o setor público, mercantilizando e, muitas vezes, segregando o acesso a serviços vitais como educação, água e saúde, enquanto obtém enormes lucros bancados pelos contribuintes e destrói a capacidade dos governos de fornecer o tipo de serviços públicos universais e de alta qualidade que poderiam transformar vidas e reduzir a desigualdade.

• O poder das grandes empresas está contribuindo para o colapso climático que, por sua vez, gera grande sofrimento e exacerba desigualdades extremas. A busca das empresas por lucros de curto prazo levou o mundo à beira do colapso climático, à medida que os combustíveis fósseis continuam construindo fortunas para muitos dos super-ricos. No entanto, ainda hoje, muitos proprietários e investidores bilionários se beneficiam quando o poder e a influência das empresas procuram bloquear os avanços a uma transição rápida e justa, negam e distorcem a verdade sobre as mudanças climáticas, e destroem quem se opõe.

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