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Só por hoje

Espero que minha pequena história chegue para alguém que, nesse momento, procura por ela
07/09/2024 | 05h00

Por Aline Zampieri*

Outro dia estava voltando da academia, suada, Bon Jovi no Spotify. Caminhando, olhei para baixo, senti meus passos, olhei para meus pés e sorri. Momentos como esses, a la “Dias Felizes”, do Win Wenders, têm sido muito comuns no meu dia-a-dia. Olhar para o céu azul e sorrir, ver uma flor, sorrir, bater foto e enviar para a família sorrir também. Quando o momento do sorriso e da paz chega, faço uma prece, agradeço os pequenos milagres do cotidiano e jogo para o universo. Que dure um pouco mais, é tão lindo estar aqui. Fico feliz: o medo foi vencido pela alegria.

Hoje, 7 de setembro, é meu segundo aniversário. Hoje completo dez anos, uma criancinha de olhos vidrados engolindo o mundo. O mundo é tão lindo, as minhas pessoas mais. A vida é uma dádiva. Hoje, 7 de setembro, celebro o dia em que saía de uma mesa de hospital sem 70% do meu estômago e sem um câncer que nele crescia. Celebro o dia em que me foi dada uma nova chance. Celebro a enorme e incandescente oportunidade de envelhecer.

Nunca vou me esquecer da “nuvem cor-de-rosa” que se formou em volta de mim e emanou da minha pequena e intrépida família, meu amor e amigos, repleta de carinho e torcida. Foi dentro dela e graças a ela que pude reaprender a comer, a beber, a me relacionar com o mundo. Que tive tempo para me encaixar nessa outra espécie de ser humano que havia me tornado. Ninguém volta de uma viagem dessas igual. Eu vi e senti toda a paciência que tiveram comigo. Foi enorme. Obrigada, de todo o meu coração, a todos vocês, aos médicos. Vocês sabem quem são. Eu amo vocês sem fronteiras.

Durante os dois anos seguintes, mergulhei numa espécie de torpor. Me tornei uma pessoa triste. Olhava para as pessoas “normais” como que por trás de um véu, uma névoa, e ganhei um novo companheiro, o medo. Medo de o tumor voltar, medo de morrer devagarinho, sofrendo.

À época, minha mãe me contou uma história da qual duvidei, mas que com o tempo se mostrou verdadeira. Uma amiga dela que tinha tido câncer de intestino disse: avisa para a Aline que a gente esquece. Como apagar um episódio desses de uma vida? Não tem como. E como qualquer luto, para sobreviver, a solução é ressignificar. Deixamos a pele da cobra antiga de lado, sem olhar para trás. E realmente esquecemos, cada um a seu tempo.

E assim o medo foi passando, a nova realidade sendo absorvida, e um belo dia despertei me sentindo uma pessoa realmente feliz. Me lembro de pensar: já que não morri, vou é aproveitar a vida! Voltei a viajar, a dançar, a olhar com gosto para o céu, para o sorriso dos que amo.

Todo ano, todo dia 7 de setembro, eu pensava se deveria contar essa história. Sempre pensei que não, por dois motivos. O primeiro, o receio de uma exposição desnecessária. O segundo, um instinto de proteção: pesquisas já mostraram que empresas evitam contratar pessoas que tiveram câncer, pelo mesmo medo que eu tinha: uma morte lenta e deprimente.

Mas outra força também me movia e hoje, completando os meus dez aninhos, ela acabou falando mais forte. Durante todo o tempo de travessia pelo vale do medo, buscava apenas notícias felizes sobre a doença. Percentuais, perspectivas, gente curada. Aquilo me ajudou de uma maneira descomunal.

Como diria a Legião Urbana, sempre será “Só por Hoje” e “Por Enquanto”. Mas o tão sonhado aniversário de dez anos chegou. Agora eu empurro o futuro um pouquinho mais pra frente. Dá licença, seu Cosmos, que eu quero viver!

Espero que minha pequena história chegue para alguém que, nesse momento, procura por ela. Lentamente, a fênix renasce das cinzas. Lentamente, o deus egípcio Khepri traz o sol de volta das profundezas. Lentamente, paramos de nos associar à doença. Lentamente, algo emerge. Vida nova brilha.

Hoje eu ando sem medo. Até sorrio para meus pés.

Que dure um pouco mais, é tão lindo estar aqui!

 

*Aline Zampieri é jornalista

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