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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

As duas faces do imperialismo global

Continua sendo chocante e inadmissível saber que 20% da população mundial controlem 70% da riqueza
25/01/2024 | 14h42

O relatório da Oxfam sobre desigualdade global, apresentado em Davos na Suíça, nos lembra fatos fundamentais naturalizados como a chuva ou o nascer do Sol. Mas, apesar de tudo, continua sendo chocante e inadmissível saber que 20% da população mundial, do assim chamado Norte global, ou seja, a Europa e os Estados Unidos, controlem 70% da riqueza planetária.

Hoje em dia, essa disparidade criada no decorrer de séculos de exploração econômica e domínio militar parece não incomodar a mais ninguém.

Não era assim há 50 ou 60 anos. Jango, por exemplo, se tornou um alvo do governo americano ao procurar regular as remessas de lucro de empresas americanas para o exterior. Isso era visto como um dado essencial do desenvolvimento de uma indústria e de um mercado interno pujante. E na realidade era e ainda é verdade. Mas ninguém mais tem como bandeira partidária e projeto governamental uma reação articulada a esse tipo de domínio.

Três fatores concorrem para que assim o seja. O primeiro é o histórico de golpes de Estado no Sul global de modo a destronar eventuais governos nacionalistas do poder em favor de marionetes do império americano. O segundo é a extraordinariamente bem-sucedida máquina da indústria cultural americana que incute, subliminarmente, não apenas um estilo de vida, mas toda uma justificação simbólica do domínio fático.

Isso tudo é feito com elevadas cargas de sedução e desejo, trocando balas e bombas por Brad Pitt e Marilyn Monroe. Cerca de 90% dos filmes de Hollywood, assim como dos atuais streamings, repetem estereótipos — como dos mexicanos e latinos como traficantes e ladrões e árabes como terroristas — colonizando de modo pré-reflexivo e sem distanciamento crítico nossa capacidade de avaliar e refletir.

Assim, “nós” passamos a acreditar que eles “merecem” o que possuem já que são bonitos, inteligentes e honestos, enquanto o Sul global é feio, corrupto e burro. Em grande medida, é por conta do seu enorme aparato de doutrinação cultural, que envolve desde universidades até gibis, que os EUA podem se dar ao luxo de serem um “império informal”.

Ou seja, que faz de conta que não é império, posto que, quase sempre, abdica do uso contínuo da violência material direta em nome de uma autonomia relativa do campo político das colônias. É o predomínio da violência simbólica, que faz com que os oprimidos se vejam como inferiores, que permite o domínio indireto do imperialismo “soft” americano.

É essa circunstância que põe em jogo o terceiro e decisivo elemento que possibilita tamanha apropriação de riqueza alheia sem reação aparente. É que o imperialismo informal precisa da cooperação de uma elite subordinada nos países satélites. O imperialismo não é uma relação entre países, mas sim uma relação entre classes sociais dominantes. Ele representa a união das elites metropolitanas com as elites nativas nacionais. Essa união envolve tanto a divisão do saque econômico sobre as populações oprimidas quanto o compartilhamento do mesmo vocabulário da violência simbólica.

O tema da corrupção nos dá uma pista de como se dá o funcionamento deste tipo de violência que de suave — “soft” — só tem o nome. É crença corrente, seja na ciência hegemônica mundial, seja no senso comum planetário, que a corrupção dita sistêmica é reservada ao Sul global, se referindo apenas à América Latina, a África e a Ásia, como se a corrupção no “honesto” Norte global fosse um mero deslize individual.

A desqualificação moral do oprimido é a arma principal de qualquer processo de dominação, na medida em que desumaniza os oprimidos, legitimando o saque econômico para algozes e vítimas. Foi mais ou menos o que aconteceu no Brasil da Lava Jato. O povo brasileiro foi levado a pensar, pela força desses preconceitos, do seguinte modo: “Como os nossos políticos são corruptos, vamos dar o mercado da Petrobras e da Odebrecht aos americanos que são tão honestos e inteligentes”.

A violência simbólica é tão eficaz porque ela, literalmente, imbeciliza o oprimido.

Também as elites nativas se utilizam do mesmo repertório para criminalizar o voto popular e a política. O Brasil ilustra esse fato de modo exemplar. A criação da noção de povo corrupto e eleitor de corruptos se apropria e complementa o veneno simbólico imperialista, destilado todos os dias de diversas maneiras em nossos corações e mentes. É por conta disso que tamanha desigualdade global — e nacional — possa ser naturalizada e tratada como a previsão de chuva para os próximos dias. Como um fato sobre o qual não temos nenhuma possibilidade de controle. Quando se atinge este limite, a dominação fática passa a ser vista como a única realidade possível.

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