Por Iago Filgueiras*
A censura foi uma das marcas mais profundas da ditadura militar no Brasil. Junto à repressão política, o regime silenciou sistematicamente a arte, a imprensa e o pensamento crítico. Músicas, filmes, livros e jornais foram vetados, modificados ou proibidos.
Embora não inédita na história brasileira, a censura ganhou novos contornos durante o regime: mais ampla, institucionalizada e moralizante. O Estado usou esse controle para forjar uma aparência de estabilidade e sufocar a oposição e a diversidade de pensamento.
Neste artigo, vamos explorar os mecanismos de censura implantados pela ditadura, sua importância para a sustentação do regime e as estratégias criativas usadas por artistas e jornalistas para resistir ao silenciamento.
A censura foi uma estratégia central do regime para controlar a informação, moldar o discurso público e impedir críticas. Por meio de medidas legais e práticas autoritárias, o Estado atuou sobre jornais, músicas, filmes, novelas e qualquer produção considerada “subversiva” ou ofensiva à “moral e os bons costumes”.

Estudantes da Universidade Nacional de Brasília (UNB) foram reprimidos durante greve estudantil em 1977. Foto: Carlos Namba/Memorial da Democracia
A censura como instrumento político e moral
A censura impedia críticas, denúncias de corrupção, retratos da desigualdade social e temas como racismo, emancipação feminina, luta de classes e sexualidade. Tudo isso era enquadrado como ameaça à moral e aos bons costumes e potencialmente nocivo à coesão social. O objetivo era impor uma visão única, conservadora e patriótica.
Durante a ditadura, a censura adquiria uma caraterística de polícia política, mas também moral. É preciso lembrar que diversos setores da direita e conservadores apoiaram a tomada de poder pelos militares.
Todo o controle da informação feito pelos órgãos censores do Estado colaborava para criar uma narrativa única sobre o cenário do país. Foi essa manipulação que permitiu a consolidação de mitos como o “milagre econômico” e a narrativa de que não havia corrupção no período.
Quais eram os mecanismos de censura durante a ditadura militar no Brasil?
A censura foi uma peça-chave no funcionamento da ditadura militar que durou 21 anos no Brasil. Após o golpe de 1964, repressões à imprensa e a cultura aumentaram, mas foi a partir de 1967, com a Lei de Censura à Imprensa, que o regime estruturou legalmente os mecanismos de controle.
Antes disso, a censura se dava por meio de batidas policiais, apreensão de materiais e ameaças físicas. Entre 1964 e 1968, o editor Ênio Silveira, foi preso diversas vezes e teve a editora Civilização Brasileira, a qual era dono, invadida em diversas oportunidades. Com o tempo, a ditadura buscou dar aparência legal às práticas de censura, ampliando sua sofisticação e alcance.

No período de censura durante a ditadura era comum que notícias vetadas pelo regime fossem substituídas por poesias, para ocupar o espaço na diagramação final. Foto: reprodução
Lei nº 5.250 (Lei de Censura à Imprensa)
Sancionada por Castello Branco em 1967, a Lei nº 5.250, também conhecida como Lei de Censura à Imprensa, regulava a liberdade de expressão, proibindo conteúdos considerados subversivos ou ofensivos à moral e aos bons costumes.
Ato Institucional Nº 5 (AI-5)
Publicado em 1968, o AI-5 ampliou os poderes da ditadura: fechou o Congresso, suspendeu o habeas corpus, institucionalizou a tortura e intensificou a repressão e a censura.
No livro 1968: o Ano Que não Terminou, o jornalista Zuenir Ventura estima que, nos dez anos em que o AI-5 esteve em vigor, houve a censura de “cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, cem revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovela”.
Decreto-Lei nº 1.077/70 (Decreto Leila Diniz)
O decreto foi publicado dois meses após uma entrevista de Leila Diniz ao jornal O Pasquim, onde a atriz falou abertamente sobre amor livre, sexo e maconha. O conteúdo provocou forte reação dos militares. Foi após essa lei que as redações de jornais e revistas passaram a contar com censores oficiais.
Autocensura
Além da repressão direta, muitos jornalistas e artistas passaram a evitar certos temas por medo de represálias. A autocensura tornou-se reflexo da vigilância constante e da insegurança instaurada.
Quais eram os órgãos censores da ditadura militar?
Durante a ditadura militar, a vigilância e a repressão a opositores contaram com a atuação direta de órgãos como o DOPS, o DOI-CODI e os departamentos de inteligência das Forças Armadas.
Mas, além disso, diversos órgãos foram criados ou tiveram estruturas adaptadas para realizar a censura institucionalizada e sistemática à cultura e à imprensa:
- Serviço Nacional de Informações (SNI): embora sua função principal fosse a coleta de dados e inteligência, teve papel central na criação da imagem pública da ditadura militar. O SNI desempenhava a manipulação e censura da mídia, colaborando para a propaganda estatal.
- Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP): vinculada ao Ministério da Justiça, era responsável por analisar e vetar conteúdos culturais como filmes, músicas, peças de teatro, novelas e programas de TV.
- Conselho Superior de Censura: criado em 1976 para tentar padronizar critérios entre os censores e dar uma aparência técnica às decisões. Quando algum artista discordava de uma censura era necessário entrar com um recurso no órgão.
O papel dos censores
Os censores oficiais eram servidores públicos com status de policiais federais. O cargo exigia curso superior e o órgão promovia treinamentos para refinar o julgamento dos funcionários.
Após a revogação do AI-5, em 1978, embora a censura política tenha diminuído, a censura moral se intensificou, especialmente sobre livros. Segundo a professora Sandra Ramão, em artigo publicado na Revista de Estudos Avançados da USP, uma das hipóteses para isso é de que, nesse período, a censura intensificou ainda mais a vigilância moral.
Em 1981, Solange Hernandes assumiu a chefia da DCDP e intensificou o trabalho de censura do órgão. Para ironizar a atuação da censora, em 1985 o cantor Leo Jaime lançou a música Solange, uma adaptação da música So Lonely, da banda britânica The Police.
Criatividade e resistência para driblar a censura durante a ditadura
Durante a censura na ditadura militar no Brasil, artistas e jornalistas criaram formas criativas de resistência. A imprensa alternativa, as metáforas na música e o teatro engajado driblavam a censura estatal e mantinham vivas a crítica e a liberdade de expressão em meio à repressão autoritária.
A imprensa que não se calou
A censura durante a ditadura militar no Brasil atingiu diretamente a imprensa, a cultura e a produção intelectual. Inicialmente, grande parte da mídia apoiou o regime, posição que só mudou após os rumos da gestão militar despertarem incômodo em setores do empresariado brasileiro.
Nesse contexto, surgiram publicações alternativas e clandestinas. Os jornais clandestinos, em geral ligados a grupos políticos, foram duramente reprimidos. Já a imprensa alternativa ganhou força com publicações como a revista Pif-Paf, criada por Millôr Fernandes e que contou com nomes como Ziraldo, Jaguar e Fortuna. A publicação foi encerrada após uma edição na qual Millôr provocou o regime ao alertar que o país poderia “cair numa democracia” caso conteúdos como aquele fossem permitidos.
Outros veículos, como Movimento, O Pasquim, Jornal da Amazônia e O Lampião da Esquina — voltado ao público gay — desafiaram o autoritarismo. Chargistas como Henfil e Laerte também utilizaram o humor gráfico como forma de resistência.
Mesmo na grande imprensa, houve enfrentamento: jornalistas desafiaram a censura e enfrentaram prisões, perseguições e até a morte, como no emblemático caso de Vladimir Herzog.

Capa do jornal O Lampião da Esquina de abril de 1978, questionando o processo do Ministério Público contra Celso Curi por violação à moral e aos bons costumes após publicar uma coluna voltada para o público gay no jornal Última Hora. Foto: reprodução
Metáforas e entrelinhas como forma de protesto na música
A partir de 1964, a censura da ditadura militar impôs uma nova realidade para os artistas. Produtores de teatro, compositores, cantores e cineastas precisaram encontrar formas de driblar a repressão. O uso de recursos de linguagem, como as metáforas, passou a ser explorado.
Na música, diversos compositores tiveram suas canções censuradas, como Geraldo Vandré, Chico Buarque, Rita Lee e Gilberto Gil. Mas com o tempo, para driblar a censura, os artistas passaram a adotar algumas técnicas, entre elas incluir uma canção crítica na mesma pasta em que estavam as letras de compositores considerados “neutros”.
Foi assim que o compositor Paulo César Pinheiro conseguiu lançar a música “Pesadelo”, que entre outras mensagens, tinha o verso “Você corta um verso, eu escrevo outro / Você me prende vivo, eu escapo morto”. Outras músicas também ganharam repercussão, como a canção “Cálice”, de Gilberto Gil e Chico Buarque, que se aproveitava do duplo sentido da palavra para criticar o “Cale-se” imposto pela ditadura.
Conheça 5 canções que foram censuradas durante a ditadura militar
A música foi um dos campos mais férteis de resistência à repressão. Abaixo, listamos sete canções emblemáticas que foram censuradas por afrontarem o regime ou por tratarem de temas considerados “subversivos”, “imorais” ou “perigosos” pelos censores.
- “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” – Geraldo Vandré (1968): hino informal da resistência, foi vetada por exaltar a luta popular contra o regime e se tornar um símbolo dos movimentos de combate à ditadura.
- Comportamento Geral (1973) – Gonzaguinha: criticava a passividade social e a alienação induzida pela ditadura e teve a exibição proibida pelos militares.
- Cor de Rosa Choque (1981) – Rita Lee: inicialmente com o nome As Duas Faces de Eva, a música fala sobre a força das mulheres, mas foi acusada de ferir a moral e os bons costumes por um verso em que Rita Lee menciona a menstruação.
- Que as Crianças Cantem Livres (1973) – Taiguara: a música trazia críticas à repressão e à falta de liberdade, especialmente à infância e juventude.
- Tiro ao Álvaro – Adoniran Barbosa e Elis Regina (1973): a música foi censurada por desrespeitar as normas gramaticais e ser vista como “linguagem inadequada”, revelando o nível absurdo do controle
O teatro e o cinema como trincheiras
O teatro e o cinema também foram alvos da censura durante a ditadura militar. Zé Celso, do Teatro Oficina, usou a linguagem experimental como crítica ao regime e foi preso, torturado e exilado. Já Augusto Boal, do Teatro de Arena, dirigiu peças como Arena Conta Zumbi, escrita com Gianfrancesco Guarnieri e com música de Edu Lobo. Exilado, Boal desenvolveu o Teatro do Oprimido, propondo a prática teatral como instrumento de transformação social.
No cinema, diversos filmes recebiam investimento estatal, mostrando que a ditadura buscava perpetuar sua narrativa também nas produções audiovisuais. Ainda assim, surgiram filmes que desafiaram o regime. Terra em Transe (Glauber Rocha), Cabra Marcado Para Morrer (Eduardo Coutinho) e Pra Frente, Brasil! (Roberto Farias) confrontaram a narrativa oficial e trataram de temas como a desigualdade social e econômica.
O fim da censura e a redemocratização
O fim da censura no Brasil está diretamente ligado ao processo de redemocratização iniciado ainda nos anos 1980. Com o desgaste do regime militar, a pressão social por liberdades democráticas se intensificou. Movimentos sociais, setores da Igreja, da imprensa e da cultura tiveram papel decisivo ao exigir eleições diretas, anistia aos perseguidos políticos e o fim das restrições à liberdade de expressão.
Foi com o governo Sarney, em 1985, que se iniciou o desmonte do aparato autoritário. Mas somente após a promulgação da Constituição de 1988, que a liberdade de expressão e de imprensa foi garantida de forma plena e a livre manifestação do pensamento restaurada.
No entanto, a Lei Nº 5260/67, conhecida como Lei de Censura à Imprensa, continuou a constar no ordenamento jurídico brasileiro até 2009, quando foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A redemocratização do Brasil foi uma conquista do povo brasileiro, marcada pela luta, resistência e coragem daqueles que ousaram enfrentar o autoritarismo. Foto: Agência Estado
Por que não devemos esquecer da censura durante a ditadura militar brasileira?
Lembrar a censura imposta pela ditadura militar é essencial para compreender como o silenciamento da arte, da imprensa e da crítica foi usado como ferramenta de dominação e de construção de uma narrativa idealizada do período.
O Brasil nunca enfrentou seu passado autoritário. Os militares foram anistiados pelos crimes que cometeram; a tortura, o assassinato e o desaparecimento de opositores foi por muito tempo ignorado. Se hoje, de tempos em tempos, o monstro do autoritarismo volta para nos assombrar, é porque os horrores do período ainda são relativizados.
Ignorar esse passado é abrir espaço para que discursos autoritários se normalizem, disfarçados de moral ou ordem. A mesma moral e ordem que promoveu 21 anos de repressão, violência e aprofundamento de desigualdades sociais. Preservar a memória histórica é uma forma de resistência e um alerta permanente de que, se hoje a liberdade de expressão pode ser defendida, é por que durante a ditadura muita gente lutou — e morreu — para que ela pudesse ser conquistada.
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*Estagiário sob supervisão de Leila Cangussu
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