A Comissão Nacional da Verdade (CNV) marcou um momento importante na história brasileira ao encarar o legado da ditadura militar. Criada em 2012, sua missão era apurar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, com foco nos 21 anos de regime autoritário.
Mais do que apenas revelar fatos, a CNV trouxe à tona debates sobre memória e justiça, propondo caminhos para que as violações do passado não fossem esquecidas nem repetidas.
Neste artigo, você vai entender como a comissão foi estruturada, os desafios que enfrentou e as mudanças que buscou promover.
O que foi a Comissão Nacional da Verdade?
A CNV foi criada pelo governo federal como uma resposta às demandas de memória e justiça. Seu objetivo era investigar crimes cometidos por agentes do Estado, documentar casos de prisões arbitrárias, torturas, desaparecimentos e execuções.
Embora não tivesse poder para julgar ou punir, sua função era essencial para esclarecer o passado e propor medidas para evitar novos abusos.
Por que a CNV foi criada?
A criação da CNV foi resultado de uma longa luta de movimentos sociais, familiares de vítimas e organizações de direitos humanos. Durante décadas, a Lei da Anistia de 1979 blindou os agentes do regime militar, impedindo responsabilizações pelos crimes cometidos.
A CNV surgiu como uma tentativa de preencher essa lacuna histórica. Seu trabalho permitiu que histórias de repressão, silenciadas por anos, fossem documentadas e reconhecidas.
O contexto histórico que levou à criação da CNV
O período da ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, foi marcado por censura, perseguições e graves violações de direitos humanos. A transição para a democracia foi negociada, e a Lei da Anistia protegeu os responsáveis pelos abusos.
Mesmo assim, movimentos sociais, como o Brasil: Nunca Mais, e familiares de desaparecidos políticos continuaram a pressionar por respostas. A criação da CNV representou um marco nesse processo, trazendo reconhecimento oficial às vítimas e propondo mudanças estruturais.
Como funcionou a Comissão Nacional da Verdade?
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi formada por sete membros nomeados pela presidente Dilma Rousseff, além de contar com uma equipe de consultores e pesquisadores.
Entre 2012 e 2014, a comissão desempenhou um papel central na investigação de violações de direitos humanos, realizando audiências públicas, coletando depoimentos de vítimas e familiares, visitando instalações militares e analisando uma vasta gama de documentos históricos.
Seu funcionamento foi estruturado para garantir eficiência e profundidade nas investigações, utilizando uma combinação de pesquisa documental, testemunhos e análises técnicas para reconstruir os eventos do período investigado.
Organização por grupos temáticos de trabalho
Para sistematizar as investigações e cobrir diferentes áreas de violações, a CNV criou grupos temáticos que abordaram questões específicas, como:
- Repressão a movimentos sociais e sindicatos: o foco estava nas perseguições a trabalhadores, lideranças sindicais e organizações sociais que lutavam por direitos no período. A CNV documentou estratégias do regime para desarticular greves e enfraquecer movimentos organizados.
- Violências contra indígenas e camponeses: esse grupo analisou remoções forçadas, massacres e abusos cometidos contra comunidades rurais e povos originários. O trabalho incluiu denúncias de genocídios e violações decorrentes de grandes obras de infraestrutura promovidas pelo regime militar.
- Operação Condor: a comissão investigou a colaboração entre as ditaduras sul-americanas para rastrear, capturar e eliminar opositores políticos em toda a região. Documentos revelaram o papel do Brasil nessa rede repressiva internacional.
- Papel das igrejas durante o regime militar: esse grupo examinou como as igrejas cristãs se relacionaram com o regime, destacando tanto as colaborações com a repressão quanto os casos de resistência e proteção a perseguidos políticos.
Esses grupos de trabalho produziram relatórios detalhados que serviram como base para o documento final da comissão, ampliando a compreensão sobre os métodos e impactos da repressão.
Diligências e investigações em locais marcados pela repressão
Além dos trabalhos temáticos, a CNV realizou diligências em locais históricos de repressão, como o DOI-CODI e a Casa da Morte. Essas visitas foram fundamentais para reunir evidências sobre práticas sistemáticas de tortura, execuções e desaparecimentos.

Casa da Morte: centro clandestino de tortura e assassinatos da ditadura em Petrópolis, revelado por Inês Etienne Romeu, única sobrevivente. (Foto: Aline Rickly/G1)
As investigações incluíram análises técnicas dos locais, depoimentos de sobreviventes e familiares, além de exumações e perícias. Esse trabalho permitiu documentar as condições desses centros de detenção e os métodos brutais empregados, contribuindo para a reconstrução da memória histórica do período.
A estrutura de funcionamento da CNV refletiu a importância de abordar o passado de forma ampla e sistemática, garantindo que as vozes das vítimas fossem ouvidas e os abusos, registrados.
As principais descobertas da CNV
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), apresentado em dezembro de 2014, revelou detalhes impactantes sobre as violações de direitos humanos cometidas durante o período investigado. Essas descobertas foram essenciais para documentar a dimensão da repressão estatal no Brasil e demonstraram como práticas como tortura, execuções e desaparecimentos foram organizadas e sistematizadas.
- Mortes e desaparecimentos políticos: foram identificados 434 casos de mortes e desaparecimentos forçados relacionados à atuação de agentes do Estado. Esses números representam pessoas que foram perseguidas, silenciadas e cujas famílias ficaram décadas sem respostas.
- Centros de tortura e repressão: o documento detalhou a existência de locais como o DOI-CODI e a Casa da Morte, que operavam como centros estruturados para deter, torturar e eliminar opositores políticos.
- Apoio privado à repressão: empresas privadas foram apontadas como financiadoras do aparato repressivo, fornecendo recursos e suporte logístico para ações contra trabalhadores e movimentos sociais.
- Violências contra povos indígenas: a CNV documentou massacres, remoções forçadas e outras formas de violação aos direitos de povos indígenas, muitas vezes relacionadas a projetos de grande escala promovidos pelo regime, como a construção de rodovias e usinas hidrelétricas.
O relatório concluiu que essas ações não eram excessos isolados ou desvios de conduta, mas faziam parte de uma política de Estado deliberada e coordenada. As descobertas reforçaram a importância de preservar a memória histórica e de avançar na busca por justiça e reparação às vítimas e suas famílias.
Os desafios enfrentados pela Comissão
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) enfrentou obstáculos significativos ao longo de sua trajetória, reflexo do contexto político e social em que foi criada. Desde a sua instalação, em 2012, houve resistência de setores conservadores e pressão de diversas frentes, evidenciando o impacto profundo de mexer com as feridas do passado.
Resistências e contestações
Desde o início, a CNV foi alvo de críticas, principalmente de setores militares, tanto da ativa quanto da reserva, e de grupos políticos conservadores. Essas críticas giravam em torno da alegação de que a comissão era parcial, pois investigava apenas os crimes cometidos por agentes do Estado, deixando de lado atos praticados por grupos de oposição armada durante o regime.
Essa escolha, no entanto, foi deliberada e fundamentada no entendimento de que os crimes cometidos pelo Estado, como tortura, desaparecimentos forçados e execuções, não haviam sido reconhecidos nem investigados formalmente. Por outro lado, as ações da oposição armada já haviam sido amplamente julgadas, com muitos militantes condenados, presos ou anistiados.
Assim, o foco da CNV foi direcionado para esclarecer e documentar as violações de direitos humanos promovidas pelo próprio Estado, com o objetivo de promover memória, verdade e justiça.
Limitações institucionais
Um dos maiores desafios enfrentados pela CNV foi sua falta de autonomia financeira e jurídica. A comissão dependia do governo federal para recursos e não tinha poder de julgar ou punir os responsáveis pelas violações identificadas.
Essa limitação gerou frustração em muitas vítimas e familiares, que esperavam que os trabalhos resultassem em responsabilizações concretas. Além disso, o curto período de dois anos para a conclusão dos trabalhos dificultou investigações mais aprofundadas.
Reações públicas e apoio institucional
Apesar das críticas, a CNV recebeu amplo apoio de organizações internacionais, como a Human Rights Watch, e de movimentos de direitos humanos no Brasil. Essas entidades reconheceram a relevância da comissão para a promoção do direito à verdade e à memória histórica.
O apoio da sociedade civil, incluindo movimentos de familiares de desaparecidos políticos, foi fundamental para legitimar as ações da CNV e garantir que os trabalhos fossem amplamente divulgados.
Esses desafios não apenas expuseram a resistência em torno do tema, mas também ressaltaram a importância do trabalho da CNV como um primeiro passo na construção de um diálogo mais profundo sobre justiça e reparação no Brasil.
Impactos e recomendações da CNV
O trabalho da CNV trouxe à tona questões que transformaram o debate sobre memória e justiça no Brasil. Em seu relatório final, a comissão apresentou 29 recomendações que buscavam tanto responsabilizar agentes do Estado quanto implementar medidas preventivas para evitar novas violações. Entre as principais recomendações estavam:
- Revisão da Lei da Anistia: a CNV propôs que a legislação fosse ajustada para permitir a responsabilização criminal de agentes do Estado envolvidos em graves violações de direitos humanos.
- Fim de homenagens a torturadores: foi recomendada a retirada de nomes de ruas, praças e outros espaços públicos que homenageassem pessoas diretamente ligadas ao regime militar e à prática de tortura.
- Políticas públicas de memória: sugestões como a criação de museus, centros de documentação e maior acessibilidade a arquivos históricos visavam garantir que as histórias e os registros da repressão permanecessem vivos para futuras gerações.
Embora muitas dessas recomendações ainda não tenham sido implementadas, elas abriram um debate necessário sobre o papel das instituições na preservação da democracia.
A importância do direito à memória e à verdade
O direito à memória e à verdade é um dos pilares da justiça de transição. Ele garante que os abusos de direitos humanos sejam reconhecidos e documentados, impedindo que sejam apagados da história ou minimizados. No Brasil, a CNV exerceu esse papel ao documentar abusos e dar visibilidade às histórias das vítimas.

Painel da exposição “Mortos e desaparecidos políticos: percursos pela Verdade e Justiça”. Foto: Memorial da Resistência de São Paulo
Por que isso importa?
Entender e expor o que aconteceu durante o período da ditadura militar é mais do que uma questão de justiça para as vítimas e suas famílias. É também um passo crucial para evitar que abusos semelhantes ocorram no futuro.
A CNV desempenhou um papel importante nesse processo ao documentar como o Estado atuou de forma sistemática para reprimir cidadãos, mostrando os perigos de ignorar ou apagar capítulos da história.
Essas iniciativas reforçam que o compromisso com a memória histórica é fundamental para a construção de uma sociedade mais democrática, informada e justa.
O legado da Comissão Nacional da Verdade
A atuação da Comissão Nacional da Verdade revela como o regime militar brasileiro utilizou o Estado para implementar políticas repressivas e violar direitos fundamentais. Mais do que um simples registro histórico, a CNV deixou um alerta importante sobre os riscos de negligenciar a proteção das instituições democráticas e os direitos humanos.
O que a Comissão Nacional da Verdade deixou como contribuição para o Brasil?
- Documentação detalhada do período de repressão: a CNV reuniu depoimentos de vítimas e familiares, relatórios periciais e uma vasta coleção de documentos que oferecem um panorama completo das práticas repressivas adotadas pelo regime militar.
- Discussão sobre a revisão da Lei da Anistia: seu trabalho reabriu o debate sobre a impunidade garantida pela Lei da Anistia, defendendo a responsabilização de agentes do Estado envolvidos em crimes contra a humanidade.
- Fundamentos para políticas de memória e reparação: as descobertas da CNV são a base para iniciativas que promovem a justiça de transição, como a criação de museus, memoriais e programas de educação que preservem a memória histórica e evitem novas violações.
Memória, justiça e o futuro da democracia
A Comissão Nacional da Verdade foi um marco no enfrentamento do passado autoritário do Brasil. Apesar de suas limitações e dos desafios enfrentados, ela lançou luz sobre violações que durante décadas foram negadas ou ignoradas.
Ao entender o papel e o legado da CNV, você se conecta com a luta contínua por uma sociedade onde a memória histórica, a justiça e a proteção das liberdades democráticas sejam prioridades. Esse compromisso com a verdade não é apenas sobre o passado, mas também sobre garantir um futuro mais justo e democrático para todos.
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