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O grande abismo da desigualdade econômica no Brasil

Os desafios da desigualdade econômica vão muito além de políticas públicas de distribuição de renda. Como podemos ter um país com mais justiça social?
07/08/2024 | 16h50

Para entender o abismo da desigualdade econômica do Brasil, imagine a cena: em uma sala estão dez pessoas diferentes esperando para comer. Todas estão com fome quando alguém entra para servir uma torta, mas a maior parte dela é dada a uma única pessoa, enquanto os demais recebem fatias muito menores – até desproporcionais à quantidade de calorias e nutrientes que precisam para se considerar alimentados em um dia.

Parece surreal que essa seja a distribuição feita dessa forma? Pois é isso que acontece no Brasil quando o assunto é concentração de renda. De acordo com o IBGE, o grupo dos 1% mais ricos da população tem 28,3% de toda a riqueza do país, o que faz de nós um dos países mais desiguais do mundo.  Para efeitos de comparação, a nação com pior índice de desigualdade do mundo é a África do Sul, onde 1% da população concentra 55% de toda a riqueza do país, segundo dados do Laboratório Mundial da Desigualdade.

A desigualdade econômica e o Brasil colonial

Sim, boa parte da desigualdade econômica que vivenciamos hoje tem relação direta com o legado de escravidão e aos padrões latifundiários estabelecidos no período em que fomos explorados por Portugal – primeiro com o cultivo da cana de açúcar, depois com o café.

O fato de um pequeno grupo de proprietários concentrar boa parte das terras e utilizar mão de obra escravizada pavimentou a base das desigualdades que temos hoje. Desde lá, tivemos uma série de medidas para proteger os proprietários de escravizados, os produtores de café e outros grupos que já detinham privilégios, mas nenhuma delas foi pensada na inclusão social ou na eliminação de estruturas injustas. Aliado a isso, a ausência de investimentos em educação e saúde apenas favoreceram o aumento do abismo social brasileiro.

A abolição da escravidão em 1888, embora um passo fundamental para a liberdade, não significou o fim da desigualdade. Entre outras coisas, a população negra se viu livre, porém privada de acesso à terra, educação e oportunidades, tendo como única alternativa a marginalização. Essa exclusão social e de moradia se perpetua até os dias atuais nas inúmeras favelas brasileiras – fundadas por ex-escravizados e que não tinham onde morar depois de expulsos da casa dos “senhores”.

Mesmo o modelo de desenvolvimento industrial do século XX, que de fato impulsionou o crescimento econômico, privilegiou a concentração de renda e a perpetuação de estruturas de poder. A falta de investimento em políticas sociais, a ausência de uma reforma agrária justa e o atraso em estabelecer leis trabalhistas que protegessem os direitos do trabalhador assalariado contribuíram para a perpetuação da desigualdade em diversas esferas da sociedade brasileira.

A concentração de renda e os impostos brasileiros

Imposto sobre grandes fortunas poderiam gerar R$ 76 bilhões por ano cobrando 220 mil pessoas no Brasil

A concentração de renda no Brasil é um dos maiores problemas do país. Dados recentes do IBGE  mostram que 1% da população detém mais riqueza do que os 58% mais pobres, revelando um abismo social inaceitável. Claro que temos uma herança escravista e latifundiária, mas o principal responsável contemporâneo pela manutenção das desigualdades é o sistema tributário brasileiro.

Com regras regressivas, que fazem as camadas mais pobres da população pagarem uma parcela maior de sua renda em impostos, os mais ricos desfrutam de isenções e brechas fiscais – mantendo o cenário de desigualdades. O peso desproporcional dos impostos impede o acesso a serviços essenciais como saúde, educação e moradia, perpetuando o ciclo da pobreza e da desigualdade.

A taxação de grandes fortunas tem sido pauta frequente de campanhas eleitorais como uma das medidas econômicas, e é sim uma iniciativa importante para combater a desigualdade e financiar políticas públicas que promovam a justiça social.

Atualmente, a tributação sobre o patrimônio no Brasil é extremamente baixa, privilegiando os mais ricos. Uma taxação justa e progressiva sobre grandes fortunas, com alíquotas que reflitam a capacidade contributiva de cada indivíduo, poderia gerar recursos para investimentos em saúde, educação, infraestrutura e programas sociais, beneficiando a população mais vulnerável e promovendo uma maior justiça social.

Claro que problemas complexos exigem diversas soluções, e por isso taxar muito os super ricos não é a única solução para o problema. Com a reforma tributária aprovada no Congresso, temos avanços na progressão dos impostos, apesar de alguns setores ainda receberem privilégios em forma de isenções fiscais.

Sem dúvida, a ampliação de programas sociais como o Bolsa Família atua como remédio para os sintomas, mas é preciso ir além para combater a desigualdade e promover a justiça social. Ao aprovar políticas públicas para promover a inclusão social, o acesso à educação de qualidade, à saúde e ao mercado de trabalho digno, garantimos que todos tenham a oportunidade de ascender socialmente e construir um futuro mais próspero.

Programas sociais = mais justiça social

Se, no Brasil, a desigualdade econômica é uma realidade cruel, a existência de programas sociais e políticas públicas de combate à pobreza são um esforço para minimizar esse abismo, começando aos poucos a construção da ponte da igualdade. O Bolsa Família, por exemplo, atinge milhões de famílias, garantindo renda mínima e acesso a serviços básicos como saúde e educação.

A expansão de programas de transferência de renda, como o Auxílio Brasil, demonstra a importância de garantir uma rede de proteção para os mais vulneráveis, principalmente nos momentos mais críticos, como foi a pandemia de Covid-19.

Ampliar o acesso à educação de qualidade, com investimentos em escolas públicas e programas de inclusão, é crucial para romper o ciclo da pobreza. E é por isso que programas como a Lei de Cotas, Enem, Fies e ProUni foram tão importantes na transformação de diversas estatísticas brasileiras – conseguindo, entre outros feitos, que os estudantes de escolas públicas se tornassem maioria nas universidades públicas.

Além disso, políticas de saúde pública, como o SUS, garantem acesso a serviços médicos para toda a população independente da renda. A promoção de políticas de moradia e saneamento básico, bem como o acesso a crédito e microcrédito para empreendedores de baixa renda, contribuem para a inclusão social e o desenvolvimento econômico.

A desigualdade aguda vivida pela população de rua

Brasília (DF) 18/09/2023 – Distrito Federal é a unidade da federação com maior percentual de pessoas em situação de rua no Brasil. Os dados são do Relatório da População em Situação de Rua, divulgado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Foto: José Cruz/Agência Brasil

O aumento da população de rua no Brasil é um sintoma da desigualdade social em sua forma mais cruel, constatado com maior força durante crises econômicas, como a que vivenciamos durante a pandemia de Covid-19.

A perda de emprego, a falta de moradia e os problemas de saúde mental são alguns dos fatores que levam as pessoas para as ruas, e não o consumo de drogas, ao contrário do que o senso comum tanto gosta de esbravejar.

Para cumprir seu papel constitucional de Estado de bem estar e dar a essas pessoas uma oportunidade de recomeçar suas vidas com dignidade, o poder público deve combinar políticas de assistência, programas de acolhimento e reinserção social a iniciativas que gerem emprego, ofereçam moradia e garantam o cuidado da saúde dessa população.

As muitas desigualdades do Brasil

Em um país onde é muito comum visualizar as favelas na paisagem, as desigualdades econômicas, sociais e raciais saltam aos olhos, mas infelizmente não são as únicas. Também temos enormes divergências no cenário político e educacional, entre outros pontos. O acesso a cargos legislativos em todas as esferas de poder, ainda é majoritariamente masculino e branco, contrariando as estatísticas populacionais.

Na educação, a cor da pele continua sendo um obstáculo. A PNAD Contínua destacou que o número de adultos com mais de 25 anos e que concluíram o ensino médio chegou a 53,2%, mas o recorte racial aponta que, enquanto 60% dos brancos possuem diploma de ensino médio, apenas 47% dos negros e pardo conseguiram tal feito.

O acesso à moradia também é uma fotografia das desigualdades nacionais e pode ser percebido nas estatísticas do déficit habitacional, índice que contabiliza o número de famílias que vivem em condições precárias, com muitas pessoas no mesmo imóvel ou que acabam destinando mais de 30% da renda para pagar o aluguel.

Em 2024, a Fundação João Pinheiro constatou que 26 milhões de brasileiros, principalmente trabalhadores de baixa renda, mulheres e negros, vivem em moradias com alguma inadequação. A lista inclui falta de energia, ausência ou insuficiência de saneamento básico e até mesmo a insegurança fundiária.

Ao mesmo tempo, o Censo de 2022 constatou 11 milhões de imóveis vazios, número mais do que suficiente para garantir moradia básica e de qualidade para os grupos que vivem em condições de inadequação e os que foram forçados a viver na rua em virtude da crise econômica.

Brasil, um país de todos. Quando?

As desigualdades socioeconômicas no Brasil são resultado de um conjunto de fatores históricos interligados, que moldaram uma sociedade marcada pela exploração, pela exclusão e pela perpetuação de privilégios. Superar essa herança exige políticas públicas eficazes e uma mudança profunda na estrutura social, garantindo igualdade de oportunidades e acesso a direitos básicos para todos os brasileiros.

Tratar as desigualdades como qualquer coisa que não algo extremamente complexo, é, ao mesmo tempo, desrespeitar a Constituição Brasileira e contribuir para a manutenção desse sistema tão prejudicial para todos.

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