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Esquerda no Brasil: do século XIX ao cenário atual

A trajetória da esquerda brasileira, das lutas sociais históricas aos desafios contemporâneos. Uma análise das transformações e futuros caminhos.
12/11/2024 | 12h01

Por Clarissa Viana e Leila Cangussu*

Historicamente, partidos e movimentos da esquerda política ficaram conhecidos pela luta por justiça social, combate às desigualdades e alinhamento com o movimento e os partidos socialistas. Segundo o dicionário, a esquerda representa um “grupo de indivíduos de uma nação, de uma organização não governamental de uma comunidade, que preconiza a superioridade dos sistemas políticos socialistas ou comunistas sobre o capitalismo e defende a igualdade social”.

A esquerda brasileira tem suas raízes nos movimentos sociais do século XIX e XX, como os movimentos operário, camponês e dos estudantes, que conquistaram diversos direitos para a população brasileira ao longo da história. A luta contra a ditadura militar (1964-1985) também foi um marco fundamental na história da esquerda brasileira, pois foi responsável por unir diversos setores da sociedade em defesa da democracia e dos direitos humanos.

Com a redemocratização do Brasil na década de 1980, a esquerda se reorganizou e ganhou espaço na política institucional. O Partido dos Trabalhadores (PT), fundado exatamente em 1980, se tornou um dos principais partidos de esquerda do país, e a consolidação dessa força foi a eleição de Lula como presidente do Brasil em 2002 – após três derrotas nas urnas e oito anos de oposição ao governo de Fernando Henrique Cardoso.

Quando surgiram as definições de esquerda e direita política?

A divisão entre esquerda e direita política surgiu durante a Revolução Francesa (1789-1799), movimento que é considerado o marco histórico para o início de diversas democracias ao redor do mundo. Essa divisão ideológica entre valores está relacionada à disposição dos assentos na Assembleia Nacional para estabelecer os artigos da nova Constituição após a abolição da monarquia no país.

À direita do presidente da Assembleia sentavam-se os monarquistas, que defendiam a manutenção da ordem social tradicional e os poderes do rei. Eles eram a favor da hierarquia social, da autoridade centralizada e da preservação dos privilégios da nobreza e do clero.

Do outro lado, à esquerda do presidente, estavam os republicanos, defendendo a mudança radical, a abolição da monarquia e a criação de uma república baseada na igualdade e na soberania popular. Eles eram a favor de reformas sociais, da redução das desigualdades e do poder popular.

Essa divisão espacial acabou por se tornar uma metáfora para diferentes visões políticas e ideológicas, e se espalhou pelo mundo, sendo usada até hoje para classificar partidos, movimentos e indivíduos. Ao longo da história, os conceitos de “esquerda” e “direita” foram se transformando e se adaptando às mudanças sociais, políticas e econômicas.

Depois da queda da Bastilha, prisão que simbolizava a repressão da monarquia, a Assembleia Constituinte começou a ouvir as reivindicações da população de Paris e da França. Crédito: Alexandre Debelle/ Domínio Público

No século XIX, a Revolução Industrial trouxe novas questões sociais, como a exploração do trabalho e a desigualdade social. Com isso, a esquerda passou a defender os direitos dos trabalhadores, a regulamentação do trabalho e a redistribuição de renda, enquanto a direita defendia o livre mercado e a propriedade privada. É nesse momento que surgem os sindicatos.

O surgimento do socialismo e do comunismo no século XX ampliou o espectro da esquerda, dividindo-a em diferentes correntes, como a social-democracia e o comunismo. Em resposta a esses movimentos, a direita também se diversificou, dando origem ao fascismo, o nazismo e o neoliberalismo.

Atualmente, os conceitos de “esquerda” e “direita” continuam a ser adotados, mas têm se tornado cada vez mais complexos e fluidos. Questões sociais, culturais e econômicas do século XXI, como a globalização, a crise climática e a revolução digital têm gerado novos debates, ampliando e flexibilizando o espectro político e o posicionamento ideológico.

Quais são os valores que a esquerda política defende?

Considerando os ideais defendidos pela esquerda durante a Assembleia Nacional da Revolução Francesa, os principais valores estão intimamente conectados à justiça social, combate às desigualdades e a crítica ao status quo – geralmente associado ao capitalismo e à concentração de poder.

Atualmente, definir a ideologia de esquerda é mais complicado, já que desde o século XVII surgiram diversas correntes e nuances dentro desse espectro. No entanto, é possível destacar alguns pontos em comum entre esses posicionamentos:

1. Justiça social e igualdade

As diversas vertentes da esquerda política defendem a redução das desigualdades socioeconômicas – incluindo políticas públicas de redistribuição de renda, investimentos em serviços públicos de qualidade e a regulação do mercado de trabalho.

Além disso, a esquerda também busca garantir a igualdade de oportunidade de desenvolvimento, que inclui educação, emprego e moradia para todos, independentemente de origem, raça, gênero ou orientação sexual, por exemplo.

2. Crítica ao capitalismo

Outro fator comum das diversas ideologias de esquerda é a crítica ao capitalismo. Mesmo existindo diferenças no objeto da crítica, a esquerda critica as desigualdades resultantes do acúmulo de capital promovido pelo capitalismo.

E nesse ponto é preciso destacar: enquanto o comunismo se propõe a ser um novo modelo econômico, em oposição ao capitalismo, muitos dos posicionamentos do espectro da esquerda criticam as desigualdades e injustiças resultantes desse sistema, mas não pretendem extingui-lo, apenas melhorá-lo.

O próprio socialismo pode ter até mesmo resquícios da propriedade privada, assim como a social-democracia – outra vertente da esquerda.

A esquerda também critica a concentração de poder nas elites econômicas, o que contribuiria para a manutenção da concentração de poder e capital. Por isso a esquerda, de modo geral, defende a maior participação popular nas decisões, bem como uma distribuição mais equitativa de poder – incluindo mulheres, pessoas negras, pessoas indígenas e membros do movimento LGBTQIA +.

3. Progressismo social

]As correntes ideológicas de esquerda defendem a universalidade dos direitos humanos – sejam eles civis, políticos ou até mesmo culturais. Isso implica na inclusão de grupos marginalizados na participação social e política.

Esse progressismo começou na Revolução Francesa, quando a burguesia clamava por igualdade, pois queria extinguir os direitos da nobreza. A partir daí, os questionamentos surgem: se todos somos iguais, por que permitimos que algumas pessoas sejam escravizadas? Ou, se somos iguais, por que há quem trabalhe muito para receber um salário muito baixo, enquanto outros nem precisam trabalhar?

O quadro “A Liberdade guiando o povo” é uma das imagens clássicas da Revolução Francesa. Crédito: Eugène Delacroix/ Domínio Público

No Ensino Fundamental, aprendemos que a Revolução Francesa foi, juntamente com a Revolução Americana, o ponto de partida para as transformações no mundo. A bandeira pela igualdade entre todas as pessoas foi exatamente o que motivou a independência de diversos países na América, assim como a luta pelo fim da escravidão.

4. Intervenção do estado

Diferente da direita, a esquerda política defende uma participação mais ativa do Estado na economia e na sociedade para que seja possível regular o estado, promovendo o bem-estar e garantir a justiça social. Por isso, as políticas públicas de governos de esquerda são mais complexas e elaboradas, além de utilizarem mais investimentos estatais.

O objetivo é garantir a construção de uma sociedade mais justa e a proteção dos direitos humanos.

A era PT, o Brasil de esquerda e o aceno ao centro de Lula

Com a eleição de Lula em 2002, um marco histórico da esquerda brasileira, o PT – nascido de movimentos sociais e com um discurso de ruptura com o sistema capitalista – se viu diante do desafio de governar um país com séculos de desigualdades econômicas e sociais e complexidades de vários tipos.

Os governos Lula e Dilma, de 2003 a 2016, implementaram políticas sociais importantes, como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e ProUni, que contribuíram para a redução da pobreza e das desigualdades sociais. No entanto, o modelo econômico neoliberal já estava estabelecido no Brasil, e os mandatos dos presidentes de esquerda foram também uma luta contra essas políticas – que prometiam maior eficiência do poder público, mas não garantiram a justiça social.

Essa nova apresentação da esquerda política, priorizando a estabilidade econômica e deixando de lado um projeto mais radical de transformação social, acabou recebendo diversas críticas de setores mais tradicionais do partido e também contribuiu para enfraquecer o discurso da esquerda sobre a revolução socialista.

Com essa nova roupagem do PT e do seu plano de governo, o “Lula paz e amor” de 2002 conquistou o apoio do mercado, mas acabou perdendo o apoio de sua própria base eleitoral. O que, infelizmente, abriu espaço para as críticas da direita política.

No entanto, é preciso destacar que mesmo tendo equilibrado mudanças sociais com os interesses do mercado financeiro, o legado desses programas perdura até hoje, mais de 20 anos depois de seu início. É inegável que a redistribuição de renda proporcionada pelo Bolsa Família, por exemplo, ajudou a tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU e estabeleceu o país como modelo para programas de redistribuição de renda.

Assim como, por meio dos programas de cotas de acesso ao Ensino Superior, o Brasil passou por uma diversificação dos novos estudantes das universidades públicas, com pessoas com menos recursos financeiros também alcançando essa conquista. Isso trouxe uma melhora no nível de qualificação da mão de obra como um todo, o que precisa ser celebrado.

No âmbito internacional, o Brasil passou a atuar para estabelecer diversos acordos comerciais multilaterais entre países do Sul global. O fortalecimento dos BRICs é uma das conquistas diplomáticas desse período, além de uma melhora na imagem do país no espaço da ONU, por exemplo.

A crise da esquerda e a ascensão da extrema-direita

Há quem diga que a crise da esquerda começou em 2013, quando movimentos populares tomaram as ruas para protestar contra o aumento das tarifas de transporte público, mas também para expressar sua insatisfação com a política “tradicional”, extremamente desgastada pelos escândalos de corrupção deflagrados nos governos do PT.

Ao encontrar uma sociedade desiludida com o sistema e a política tradicionais, políticos de extrema direita conseguiram se conectar à população por meio de um posicionamento teoricamente “anti-sistema”, mas carregado de discursos de ódio, conservadorismo e até flertando com o autoritarismo.

Surgiam ali nomes que depois protagonizaram a política nacional, como Jair Bolsonaro, o Movimento Brasil Livre (MBL) e Janaina Paschoal, entre outros. A esquerda, desgastada por anos de concessões e alianças questionáveis, não soube responder às reivindicações populares nem oferecer uma alternativa convincente ao discurso da extrema-direita.

Além de conversar com a população sobre suas principais preocupações e reclamações, a extrema-direita soube (e continua sabendo) se comunicar muito bem pelas redes sociais, que hoje são o principal espaço de debate e comunicação da população. Enquanto isso, a esquerda ainda está entendendo o funcionamento desse ambiente e tem muito o que aprender para chegar ao mesmo nível da oposição.

O dilema da esquerda com a Frente Ampla

Com o desenrolar do mandato de Jair Bolsonaro, ficou claro que sua reeleição colocaria o Brasil num caminho cada vez mais autoritário, minando os mecanismos de proteção da democracia. Por isso, fez-se necessária a formação de uma Frente Ampla, movimento que une diferentes forças políticas para derrotar um inimigo comum, a extrema direita, para preservar a democracia.

Nas palavras do jornalista Juca Kfouri, seria necessário formar uma frente tão ampla a ponto de doer, o que significava aliar-se a forças políticas que não compartilhavam os mesmos princípios e valores, mas imprescindíveis para defender a democracia. Mas isso levantou o questionamento: a sobrevivência eleitoral é compatível com a manutenção da identidade da esquerda?

A derrota de Bolsonaro e a vitória de Lula em 2022, com uma frente ampla formada pelo PT e partidos que iam da esquerda à direita, passando pelo centro, mostraram que é possível unir forças quando extremamente necessário. Porém, o debate sobre a perda de identidade da esquerda com essa aliança também ganhou mais força.

Como pensar a esquerda brasileira para além de Lula?

É inegável o reconhecimento de que o presidente Lula hoje é o principal nome da esquerda brasileira – seja pelo seu legado político ou por suas habilidades de negociação e fazer política. No entanto, a poucos anos de completar 80 anos de vida, fica claro que é preciso renovar as lideranças do partido, trabalhar líderes mais jovens e carismáticos que consigam se conectar com as novas demandas da população.

A esquerda brasileira precisa se renovar e se reconectar com suas bases sociais para superar a crise que enfrenta. Mas, para além dessa retomada de discurso, a esquerda deve reaprender a conversar com a população – a mesma que se comprometeu a proteger das desigualdades quando surgiu, no século XVII. E entender as mudanças que aconteceram no mundo e na sociedade desde então.

Os novos projetos e objetivos da esquerda

A esquerda precisa apresentar um novo projeto de nação, que responda aos desafios do século XXI, como a crise climática, a desigualdade social e a uberização do trabalho, sem deixar de falar de racismo e a violência. Esse projeto deve ser construído com a participação popular, e deve ter como base os princípios da justiça social, da sustentabilidade e da democracia, para ter adesão – nas urnas e durante os mandatos.

A luta contra o neoliberalismo, que tem sido o principal responsável pelo aumento da desigualdade social no Brasil e no mundo, também precisa voltar para a pauta da esquerda. É preciso defender um modelo econômico que priorize o bem-estar social e a distribuição de renda. No entanto, essa conversa não pode se deixar pelas formalidades do academicismo, deve engajar a população.

A reconexão da esquerda com os movimentos sociais se faz necessária porque os movimentos sociais têm sido protagonistas na luta por direitos e por mudanças sociais no Brasil. É preciso apoiar as lutas dos movimentos sociais e construir uma aliança forte com esses movimentos.

Um dos campos em que a esquerda ainda não aprendeu a se posicionar e comunicar com sua audiência é o das redes sociais. Desde 2018, esse ambiente digital é completamente dominado pela extrema-direita, responsável por compartilhar diversos conteúdos rotulados falsos como algo que realmente tenha acontecido. E nesse fluxo de mensagens, acaba por dizer o que a população quer ouvir com soluções simplistas para problemas complexos – mesmo que isso signifique perdas de direitos.

Os caminhos para a esquerda brasileira

A esquerda brasileira se encontra em uma encruzilhada. A escolha entre a concessão e a ruptura com o sistema capitalista definirá o futuro da esquerda no país. A busca desesperada pela sobrevivência eleitoral tem levado a esquerda a se distanciar de suas bases e de seus princípios. É preciso retomar a luta por uma sociedade mais justa e igualitária, com um projeto claro de nação e com a coragem de enfrentar o sistema que gera a exploração e a opressão.

O caminho para a renovação da esquerda, em potência política e reputação, passa pela atualização do discurso. Claro que falar sobre racismo, violência policial e distribuição de renda é importante, mas hoje temos demandas que não existiam até poucos anos.

Do crescimento no número de MEIs após a Reforma Trabalhista ao avanço da política por emendas, ao fortalecimento dos partidos do Centrão como estrutura de governo, é preciso acrescentar novos tópicos às pautas, da base às lideranças. Também é urgente entender como utilizar melhor o ecossistema de comunicação digital para que ele deixe de ser uma ferramenta exclusiva da extrema-direita.

A renovação da esquerda é essencial para a construção de um futuro mais justo, igualitário e democrático para o Brasil.

* Clarissa Viana é jornalista e mestranda pela UNESP. Leila Cangussu é comunicadora e faz parte do time ICL Notícias.

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