Ao procurar pelo termo “fake news” (ou notícias falsas) em qualquer dicionário, não é difícil perceber que o termo em si não é nada de novo. Afinal, não há como definir quando essa expressão foi criada, já que, desde a Antiguidade, sempre houve casos de notícias falsas circulando “na boca do povo”.
Desde então, a única mudança foi o alcance dessas informações. Com a criação da imprensa, jornais e revistas passaram a ser a origem e também os identificadores desse tipo de conteúdo. Por terem audiências que extrapolaram bairros, alguns exemplos de fake news publicados nesses veículos também passaram a circular entre mais pessoas.
No século XIX, a expressão passou a ser usada para conteúdos jornalísticos sem fundamentação ou evidências plantadas. No Brasil, segundo historiadores, o primeiro presidente republicano foi vítima de fake news. Deodoro da Fonseca, então marechal extremamente próximo do Imperador D. Pedro II, recebeu boatos de sua prisão e então proclamou a República. Sim, o processo todo foi acelerado por informações falsas.
Desde então, tivemos outros episódios históricos marcados por esse tipo de conteúdo. Do golpe de 1964 e a ditadura cívico-militar que o seguiu, passando pelas urnas eletrônicas e os atentados terroristas de 08 de janeiro, muita desinformação circulou (e circula) pela sociedade brasileira.
Essa é a ideia por trás da expressão fake news: conteúdos distorcidos ou descontextualizados que parecem verdadeiros, mas não são. A ideia é deturpar os fatos ou criar uma realidade paralela para que alguém possa obter alguma vantagem.
E não importa se o benefício é de natureza política ou econômica, o resultado é sempre confirmar um ponto de vista para prejudicar determinados indivíduos ou grupos.
Mas boato e fake news não é a mesma coisa?
A resposta é sim, e não. Assim como as fake news, os boatos podem ser apenas uma distorção ou descontextualização de um fato. Ou podem ser uma informação que não representa a realidade. Mas, no que diz respeito à origem, são fenômenos distintos. Enquanto o boato sempre existiu e faz até parte da comunicação humana e da socialização, as fake news simulam uma realidade e sua credibilidade.
Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias, o especialista Igor Sacramento aponta que a propagação de notícias falsas é um fenômeno com uma camada a mais de complexidade. Ele também diz que os conceitos de falso e verdadeiro também foram diluídos, o que “relativiza” a ideia de desconexão com a realidade.
Muitos especialistas afirmam que estamos na era da “pós-verdade”, onde crenças e sentimentos pessoais são mais influentes na formação da opinião pública do que fatos objetivos. O tradicional Dicionário Oxford elegeu o termo “pós-verdade” como a palavra do ano em 2016.
Esse é o cenário perfeito para a formação das bolhas sociais, onde pessoas se reúnem para trocar informações que apenas chancelam suas crenças e a forma como veem o mundo. Se essas pessoas não recebem nada que contradiga o que pensam, fica mais difícil perceber que existem outros pontos de vista. E isso dificulta não apenas a percepção da realidade como é, múltipla, mas também acentua a polarização.
A modernidade e as fake news
Se a expressão “notícias falsas” foi definida pela imprensa no século XIX, a popularização das redes sociais e aplicativos de mensagem deu outros contornos a esse conceito no século XXI.
Alguns exemplos de fake news ganharam os holofotes ainda durante a disputa presidencial dos Estados Unidos em 2016, quando Donald Trump classificava qualquer informação que não o favorecesse como fake news. De tanto taxar as notícias negativas como falsas, Trump conseguiu que o dicionário da editora Collins elegesse essa expressão como “palavra do ano” em 2017, quando começou seu mandato.
E assim como a modernidade e a tecnologia aumentam o volume de informações circulando pelos feeds das redes sociais e pelos aplicativos de mensagens, também deixam mais difícil a tarefa de conseguir identificar o que é falso e o que não é.
Com o aprimoramento da inteligência artificial, por exemplo, as fake news estão cada vez mais elaboradas. Seja por utilizar um áudio que se assemelha à voz de um especialista real ou por copiar a identidade visual de um veículo de comunicação. Isso sem falar no tipo de conteúdo compartilhado. E detectá-las está cada vez mais difícil.
Nem sempre esses conteúdos são distorções “simples” da realidade. Algumas dessas notícias beiram o absurdo, como as alegações de que a vacina de COVID-19 implantaria chips eletrônicos nos vacinados ou a famosa “mamadeira de piroca”, divulgada durante a corrida eleitoral de 2018.
Compartilhar fake news é crime?
Como a questão das notícias falsas chegou a prejudicar diversas esferas da sociedade, os governos passaram a debater sobre isso em termos legais. No mundo, um estudo com cerca de 100 países constatou que apenas Paquistão, França e a União Europeia não possuem nenhuma legislação para criminalizar a disseminação de fake news.
O levantamento, feito pela Coalizão Direitos na Rede (CDR), analisou países e blocos regionais e verificou que, desde 2016, 57 leis foram criadas em 44 países para combater a desinformação. Países como África do Sul, Costa Rica, Grécia, Angola, Tailândia, China, Nicarágua e Romênia possuem legislação para criminalizar o compartilhamento de informações falsas.
No Brasil, tanto o Código Penal quanto a legislação eleitoral já punem os responsáveis por produzir e disseminar informações falsas, veicular discursos violentos e ataques às instituições. Mas, desde a pandemia de COVID-19, novas iniciativas foram propostas pelo Congresso.
A Lei 14.197 de 2021, define como crime tentar depor um governo legitimamente eleito ou restringir o exercício dos poderes constituídos. As penas variam entre 4 e 12 anos de prisão. A Lei nº 14.197 de 01/09/2021, sancionada com vetos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, também trata da disseminação de notícias falsas, dessa vez com relação ao Estado Democrático de Direito. O Congresso manteve os vetos do ex-presidente.
De acordo com a Agência Senado, o PL 3.813/2021 inclui entre os crimes contra a paz pública “criar ou divulgar notícia que sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre tema relacionado à saúde, à segurança, à economia ou a outro interesse público relevante”. A matéria está em tramitação na casa e, depois, segue para a Câmara dos Deputados.
Uma busca rápida pelo portal do Congresso apresenta diversas proposições quanto ao combate das fake news, mas é preciso agir logo.
Exemplos de fake news e desinformação por toda parte
A dupla fake news e desinformação não está restrita ao território nacional. O crescimento global de dispositivos móveis, principalmente os smartphones, aliado ao acesso facilitado à tecnologia, incluindo a conexão à internet de maior velocidade, permitiu que elas circulassem livremente pelas redes sociais de muitos países.
Alguns exemplos de fake news ganharam mais notoriedade na mídia ao longo dos anos.
Brexit
O referendo que chancelou a saída do Reino Unido da União Europeia, apelidado de Brexit, foi marcado pela vitória apertada do “SIM” e pela influência de informações falsas e distorcidas na campanha antes da votação.
Uma investigação parlamentar do Reino Unido sobre a votação aponta que houve manipulação de cidadãos inclinados a votar pelo sim. Combinando análise de dados dos usuários com notícias falsas sobre tópicos como imigração, soberania nacional e economia, organizações a favor do Brexit polarizaram ainda mais o debate.
Além da polarização, essa campanha contribuiu para prejudicar a confiança nas instituições tradicionais e nos veículos de comunicação, o que também ajudou a influenciar o voto de muitos eleitores.
As eleições de 2016 nos EUA
Donald Trump, considerado um outsider na política, foi eleito em 2016 após contratar o trabalho de consultoria da Cambridge Analytica.
Para quem não se lembra, foi essa empresa que coletou, secreta e ilegalmente, dados de milhões de usuários do Facebook por meio de testes de perfis divertidos e supostamente inocentes, com previsões sobre o futuro a partir de informações sobre a personalidade de cada um.
O problema é que os dados coletados não eram apenas dos respondentes dos testes, mas também dos amigos de quem conectava o perfil do Facebook ao tal teste. E as informações obtidas não eram apenas aquelas necessárias para a conexão do aplicativo, mas incluíam até o histórico de interações com páginas e publicações, por exemplo.
Na época, muitos especialistas disseram que era possível saber mais sobre os usuários com as informações das redes sociais do que um familiar ou até mesmo cônjuge. Isso significa que o Facebook e a Cambridge Analytica saberiam como manipular seus sentimentos e direcionar as suas escolhas de uma forma mais eficiente do que seus pais, amigos e pessoas que conhecem e convivem com você há mais tempo.
O resultado, para os Estados Unidos e a campanha de Trump, foi uma extensa campanha de conteúdo falso e manipulado para sensibilizar eleitores indecisos a votarem no dia das eleições – e escolherem Trump, que foi o vencedor da disputa. Lembrando que, nos Estados Unidos, o voto não é obrigatório e boa parte da mobilização das campanhas é pedir para que as pessoas votem – diferente do que acontece no Brasil.
Para o resto do mundo, o escândalo da Cambridge Analytica gerou uma série de legislações para proteger os dados dos usuários, como a Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil (LGPD). Desde então, mais de 80% da população global passou a viver sob regulamentações que protegem seus dados pessoais.
Eleições brasileiras de 2018
Do ”kit gay” à legalização da pedofilia, o pleito presidencial brasileiro de 2018 não ficou imune à divulgação de muitas informações falsas, principalmente por aplicativos de mensagens, como Whatsapp e Telegram.
Além de notícias para prejudicar a imagem do candidato do PT, Fernando Haddad, muitos conteúdos que circularam nos grupos bolsonaristas também questionavam a integridade das urnas eletrônicas e a imparcialidade das pesquisas eleitorais.
O próprio Jair Bolsonaro, mesmo depois das eleições, alegava fraude no processo eleitoral, dizendo que teria sido eleito já no primeiro turno. Uma das razões para essa fala era, segundo o ex-presidente, as multidões que o recebiam em eventos políticos. Isso, claro, antes da facada que o forçou a passar o restante da campanha política hospitalizado, sem participar dos debates do segundo turno.
O impacto das informações falsas sobre as urnas e as eleições pode ser percebido até os dias de hoje. Em 2021, uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha apontava que apenas 69% da população confiava no sistema eleitoral. O número cresceu em 2022, com um total de 79% dos brasileiros acreditando na urna eletrônica.
O movimento antivacinas
A vacinação, no Brasil, era motivo de orgulho nacional. As campanhas de imunização infantil mobilizavam todo o país e resultaram na erradicação e controle de diversas doenças, como varíola, poliomielite, sarampo e meningite. Mas, desde 2016, o fenômeno da “hesitação vacinal” ganhou força no país, impulsionado pela desinformação e fortalecido pelo isolamento da pandemia.
Em 2022, a Organização Mundial da Saúde classificou o Brasil como um local de risco “altíssimo” para o retorno da poliomielite, considerando a queda na cobertura vacinal. Dados do Ministério da Saúde apontam que a vacinação atingiu cerca de 75% das crianças de até 1 ano e 80% das crianças com mais de um ano.
A regulação das redes sociais no combate às fake news
A regulamentação das plataformas pode ter chamado a atenção do grande público com a cobertura da imprensa sobre o PL 2630/2020 em 2023. Mas no Brasil a questão é mais antiga: o Marco Civil da Internet, de 2014, possui um artigo tratando da responsabilidade das plataformas digitais, como Meta e Google.
Atualmente, o conteúdo publicado pelos usuários não é de responsabilidade das empresas que os hospedam, como sites e aplicativos. E as multas e punições só podem ser aplicadas em casos de descumprimento de ordens judiciais de remoção. As únicas exceções à regra são conteúdos de nudez não consentida ou direitos autorais.
Por outro lado, o projeto de lei batizado de “PL das Fake News” busca regular as chamadas “big techs” de forma mais ampla e ativa. O texto estabelece critérios e situações em que será possível responsabilizar as plataformas pelo conteúdo criado por usuários, incluindo o pagamento de indenizações, independente de notificações judiciais.
Além disso, a lei compartilha com as “big techs” a tarefa de excluir, ativamente, conteúdos que se enquadrem em infrações já tipificadas na Constituição Brasileira, como racismo, violência contra crianças e adolescentes, crimes contra o Estado Democrático de Direito, entre outros.
O PL 2630 não se resume à moderação de conteúdo e à penalização das empresas que não agirem para prevenir práticas ilegais. Ele também exige a produção constante de relatórios de risco nas plataformas e propõe a monetização de conteúdo jornalístico veiculado, assim como de direitos autorais de músicas e vídeos.
Os defensores do projeto alegam que ele vai incluir as plataformas no combate à desinformação, compartilhando a responsabilidade hoje depositada apenas na sociedade civil e no poder público.
Somado a isso, especialistas a favor do texto apontam que ele vai dificultar a ação de grupos que propagam deliberadamente fake news; ampliar a verificação de fatos; proteger a liberdade de expressão e empoderar os usuários no enfrentamento aos conteúdos falsos e à desinformação.
Críticos do projeto, entre eles as próprias plataformas como Meta e Google, ponderam que o texto vai onerar a atividade, inviabilizando o serviço como é disponibilizado hoje. O grupo contrário ao projeto aponta também que, se aprovada, a lei vai possibilitar o pagamento por conteúdo não verificado, incluindo as mesmas fake news que se propôs a combater.
O PL 2630/2020 está parado na Câmara dos Deputados desde maio de 2023, quando a votação foi adiada uma vez por falta de apoio do governo para conseguir a aprovação do texto. Desde então, as movimentações do presidente da Câmara, Artur Lira (PP-AL) estabeleceram um grupo de trabalho para discutir novamente o projeto.
Pesquisadores do tema destacam que o texto do PL é uma iniciativa relevante para compartilhar responsabilidades e moderar mais ativamente o conteúdo publicado em redes sociais. No entanto, o combate às fake news precisa incluir a educação midiática, investimentos em jornalismo e na reconstrução da credibilidade das instituições brasileiras.
Como saber se um determinado conteúdo é falso ou foi distorcido?
Existem alguns pontos que podem ser observados sempre que você receber algum texto que parece suspeito. Compilamos essas dicas do Guia Prático de checagem do CNJ.
Analise o material
- Em caso de muitas palavras em letras maiúsculas, exclamações, um tom muito alarmista, erros de ortografia ou muitos adjetivos, desconfie. Esses são artifícios para chamar a atenção e apelar para as suas emoções;
- Confira se a informação tem um link, se esse link funciona e se foi publicada em algum site conhecido. Vale verificar até se o site é o original, e não algo criado para se parecer muito e enganar as pessoas;
- Se houver a opinião de algum “especialista” que não foi citado, como um “famoso médico”, o “responsável pelo Hospital de Clínicas”, etc., ou se houverem dados estatísticos sem a indicação da fonte, o conteúdo pode ser falso, sim;
Pesquise sobre o site onde a informação foi publicada.
- Verifique se o portal existe mesmo e quais são outros conteúdos publicados ali. Isso pode indicar se as notícias são falsas;
Confirme a informação
- Você pode usar o Google mesmo para procurar em outras fontes, como jornais, revistas ou até mesmo agências checadoras de fatos. Lembre-se que nem sempre um conteúdo é falso, ele pode ser apenas descontextualizado ou antigo. Todas essas formas de manipulação contribuem para a desinformação e também precisam de uma alfabetização da nossa parte;
- Ao constatar, por exemplo, que trata-se de uma notícia falsa ou de algo desatualizado, replique o conteúdo no grupo ou com a pessoa que enviou o material. Assim, você pode interromper o compartilhamento.
Denuncie
- As empresas criadoras das redes sociais possuem mecanismos de denúncias. E também compartilhe a existência desses canais com quem enviou a mensagem falsa para você
Como combater as fake news?
Para além da educação — incluindo a midiática, para que mais pessoas consigam consumir conteúdo de forma crítica —, precisamos trabalhar para diminuir a polarização.
O combate às desigualdades, como medida institucional, aliado à educação política e ao fortalecimento da democracia também são necessários. Essas últimas são iniciativas que podem ser tomadas por todos, em parceria com o poder público, para uma sociedade mais igualitária.
Pelo desenrolar do ano de 2024, o caminho não será tranquilo e muito menos curto. Se a tragédia climática das chuvas no Rio Grande do Sul mostrou algo, é de que ainda teremos muitas situações em que o maior esforço será desmentir notícias falsas.
Com o avanço da tecnologia e das deep fakes, a dificuldade fica ainda maior. Esse ano, teremos eleições municipais e o Supremo Tribunal Eleitoral já estabeleceu regras sobre o uso da inteligência artificial. Infelizmente, o trabalho de combate às fake news vai além de conteúdos sobre candidatos. Estamos falando das mudanças climáticas, os incêndios no Pantanal, economia e até mesmo guerras como as da Ucrânia e em Gaza.
Além de acirrar a polarização e atrapalhar a vacinação, por exemplo, as fake news disseminam preconceitos e ódio, atacam a credibilidade das instituições e da própria democracia e dificultam a ação dos governos. Se o combate a elas é um trabalho árduo, quanto mais cedo começarmos, mais cedo estaremos perto do fim.
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