Por Leila Cangussu
O Brasil é um país multicultural. Essa pluralidade é uma das riquezas, se não a maior, que temos. A capacidade de ser muitos em um só é o que torna esse país diferente de tantos outros. Mas mesmo com toda essa diversidade, há tradições que só existem de verdade nos territórios onde nasceram. O Festival de Parintins é um exemplo.
Por que no Sudeste, no Sul ou no Centro-Oeste as crianças não aprendem na escola o que significa a rivalidade entre o azul e o vermelho no Amazonas? Por que a disputa entre Caprichoso e Garantido, uma das expressões culturais mais sofisticadas do país, ainda é vista como algo exótico, local, distante?
Neste texto, você vai entender como o festival começou, o que está em jogo, como são feitas as avaliações, o que representa a rivalidade entre os bois e por que tudo isso diz muito mais sobre o Brasil do que parece.
Uma história de criação popular
O Festival de Parintins nasceu oficialmente em 1965, como iniciativa da Juventude Alegre Católica. O objetivo era arrecadar recursos para a construção da Catedral de Nossa Senhora do Carmo, padroeira da cidade.
Mas a tradição do boi-bumbá em Parintins é mais antiga. Foi trazida no início do século XX por trabalhadores maranhenses durante o Ciclo da Borracha, num processo de migração interna que levou consigo não só a força de trabalho, mas também as práticas culturais.
O que era uma brincadeira de rua, feita em terreiros e espaços improvisados, foi ganhando corpo, estrutura e identidade. A disputa simbólica entre bois-bumbás logo deixou de ser apenas uma encenação para se transformar em arena de memória, de resistência e de afirmação cultural.
A construção do Bumbódromo
Nos anos 1980, a festa alcançou um novo patamar com a construção do Bumbódromo, uma arena em formato de cabeça de boi com arquibancadas divididas entre as torcidas do Caprichoso e do Garantido.
A arquitetura do espaço não é neutra: ela traduz fisicamente o que o Festival representa. É ali que se encena a luta por visibilidade, reconhecimento e pertencimento. A capacidade atual é de cerca de 25 mil pessoas, mas o número de visitantes durante o festival dobra a população da cidade.

Com 25 mil lugares e formato inspirado na cabeça de um boi, o Bumbódromo é dividido entre as torcidas azul e vermelha. As “galeras”, que ocupam as arquibancadas, são parte do espetáculo e ajudam a definir o boi vencedor. Foto: Secom Parintins
Reconhecimento oficial e o papel da mídia
Em 2018, o Festival foi reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Iphan. Em 2024, ganhou status de manifestação da cultura nacional por lei sancionada pelo governo federal.
Mais recentemente, entrou no radar da grande mídia por um motivo curioso: a cunhã-poranga do Garantido, Isabelle Nogueira, chegou à final do Big Brother Brasil 24. Foi necessária a lógica do entretenimento nacional para que o país enxergasse, ainda que de forma superficial, a força simbólica de Parintins.
A partir de 2026, a transmissora oficial do Festival será a TV Globo, que firmou acordo com os bois Caprichoso e Garantido, mediado pelo governo do Amazonas. A expectativa é que essa nova etapa aumente a projeção do evento.
Memória encenada
Cada boi conta uma história. Mas não se trata de um roteiro ficcional. As apresentações de Caprichoso e Garantido encenam a história do povo amazonense, dos povos originários, dos descendentes de quilombos, das populações caboclas e ribeirinhas. Ao mesmo tempo, denunciam o apagamento sistemático dessas mesmas populações da narrativa oficial brasileira.
É um teatro popular em grande escala, em que cada personagem carrega uma camada de significados: o pajé representa o saber ancestral indígena; a cunhã-poranga, a potência e a beleza das mulheres da floresta; o amo do boi, a figura do colonizador, às vezes ressignificado, às vezes confrontado.
A denúncia que o livro escolar não traz
O Festival de Parintins é uma plataforma política, mesmo quando não se assume como tal. Ele encena a história dos povos que foram escravizados antes da escravidão africana se consolidar como estrutura dominante. Os povos indígenas do Norte foram os primeiros a sofrer as violências da colonização — aprisionamento, expropriação, evangelização forçada — tudo isso muito antes de 1500 virar data de aula.
Essa história raramente aparece nos livros didáticos, mas ela está lá, viva, no corpo dos dançarinos, nas letras das toadas, nas alegorias gigantes que desfilam no centro do Bumbódromo. Não há neutralidade. Há posicionamento.
Arte como resistência
Transformar trauma em espetáculo é uma forma de resistência. Em Parintins, isso acontece todos os anos, em três noites, com luzes, música, movimento e coragem. Não é folclore no sentido decorativo. É arte que incomoda, que afirma, que questiona.
Enquanto boa parte do Brasil segue romantizando o próprio passado, Parintins encena o que foi silenciado: a exploração, a dor, a luta, mas também a sobrevivência e o orgulho de existir.

Transformar trauma em espetáculo é uma forma de resistência. No Festival de Parintins, a dor e a memória se tornam arte diante de 25 mil pessoas. Caprichoso e Garantido encenam histórias invisibilizadas pelo Brasil oficial, com cor, ritmo, ironia e orgulho. Foto: divulgação
A disputa e seus critérios
Caprichoso e Garantido se apresentam em noites alternadas no Bumbódromo. Cada boi tem até duas horas e meia para desenvolver seu enredo. São três noites, três apresentações completas, com início, meio e fim. Mas ao contrário do que muitos pensam, o objetivo não é apenas entreter. É contar a própria história, disputar narrativas, representar uma coletividade.
A disputa é regulamentada. Existe um regulamento técnico com 21 itens, avaliados por jurados especialistas em cultura popular, folclore e artes visuais e cênicas. Cada item recebe notas de 0 a 10, e a menor nota de cada quesito é descartada. Ao final, vence o boi que acumular mais pontos.
O que é avaliado?
Os itens estão divididos em três blocos:
- Bloco A (expressões principais): apresentador, levantador de toadas, amo do boi, sinhazinha da fazenda, cunhã-poranga, porta-estandarte e batucada/marujada. Aqui estão as figuras centrais, que conduzem o espetáculo e representam o boi em diferentes dimensões simbólicas.
- Bloco B (cenografia e coreografia): ritual indígena, pajé, galera, coreografia, organização do conjunto folclórico e evolução do boi-bumbá. É onde o festival mostra força visual e performática, com movimentos sincronizados, alegorias em grande escala e efeitos dramáticos.
- Bloco C (conteúdo cultural): tribos indígenas, tuxauas, lenda amazônica, figura típica regional e toadas (letra e melodia). São os elementos que conectam o espetáculo à história local, aos saberes tradicionais e à identidade da região.
A torcida também conta ponto. Chamados de “galera”, os grupos que ocupam as arquibancadas executam coreografias coordenadas, sem improviso. É um balé coletivo com milhares de corpos. A manifestação do público vira item técnico. Em Parintins, ser público também é ser parte do espetáculo.
Técnica e emoção
Há regras objetivas: tempo de apresentação, ordem dos itens, respeito à estrutura. Mas há também o que não está no papel: a capacidade de emocionar, de fazer o público vibrar, de afirmar identidades que o Brasil insiste em deixar de lado.
Cada detalhe é pensado com antecedência de um ano inteiro. Desde o bordado do figurino até o movimento de cada alegoria. Nada ali é aleatório. Parintins não é festa improvisada. É técnica, ensaio e arte em estado bruto.
Azul x vermelho: mais do que torcida
A rivalidade entre Caprichoso e Garantido não é uma simples briga entre torcidas. É uma disputa simbólica sobre o que se quer dizer quando se representa o povo do Amazonas.
Caprichoso veste azul. É o boi da floresta, da estética ritual, da narrativa ancestral. Sua linguagem é marcada pela presença indígena, pela mitologia amazônica e por um discurso visual mais apurado. É o boi da renovação simbólica, da ousadia e da experimentação.
Garantido veste vermelho. É o boi do coração, das massas, das raízes populares. Sua narrativa resgata o catolicismo caboclo, o romantismo das toadas, a oralidade dos mais velhos. É o boi que se vê como povo, que canta com emoção, que bate mais forte porque bate de dentro pra fora.

As galeras azul e vermelha enchem o Bumbódromo de Parintins com bandeiras, cantos e coreografias. Cada torcida representa seu boi com paixão e também conta ponto na disputa. Foto: Portal Norte
A rivalidade como identidade
Os dois bois nunca se apresentam juntos. Cada um tem sua noite. Mas isso não impede que a disputa comece muito antes. Durante o ano, nos ensaios, nos mutirões, nas sedes chamadas de “currais”, as torcidas se organizam, produzem conteúdo, ensaiam coreografias e compõem toadas.
A rivalidade acontece no plano simbólico. Mas as provocações existem, e fazem parte do jogo. É comum ouvir que o Caprichoso é mais bonito, que o Garantido tem mais força, que o Caprichoso parece fraco ou que o Garantido é o verdadeiro dono da arena.
Essas brincadeiras têm função social: reforçam o pertencimento e mantêm viva uma tradição de mais de 100 anos. Em Parintins, ninguém nasce neutro. Cada pessoa nasce Caprichoso ou Garantido. E isso não muda com o tempo.
Muito além do folclore
Reduzir essa disputa a “folclore” é uma forma de esvaziar seu significado político. O Festival de Parintins é um território de afirmação, um campo de disputa simbólica sobre quem pode contar a própria história e como essa história deve ser ouvida.
Azul e vermelho não são só cores. São códigos. São formas de existir. São maneiras diferentes de dizer: nós estamos aqui. E essa ilha, esse povo, essa memória não vão desaparecer.
O que Parintins ensina
Parintins não é uma festa qualquer. Não é só música, dança e alegoria. É uma encenação coletiva que mobiliza centenas de artistas, milhares de trabalhadores e milhões de espectadores. É uma síntese viva de identidade cultural, pertencimento e crítica social. E é também um lembrete de que o Brasil tem outras formas de narrar a si mesmo — formas que não passam pelas grandes capitais, nem pelos currículos escolares, nem pelas editorias do eixo Rio-SP.
O Festival ensina que cultura é linguagem política. Que memória não se preserva apenas em arquivos e livros, mas também em corpos que dançam, em vozes que cantam e em comunidades que resistem.
A floresta não é cenário
Enquanto boa parte do Brasil insiste em tratar a Amazônia como paisagem ou recurso natural, Parintins a transforma em protagonista. Cada apresentação é um grito contra a colonização simbólica que reduz a floresta a clichês ou a mercadoria.
As tribos encenadas na arena, os pajés, os rituais, os cantos, as lendas e até o vocabulário usado — tudo isso tem função de denúncia. A Floresta Amazônica, em Parintins, não é cenário. É personagem. É sujeito de sua própria história.

A Amazônia é a grande protagonista no Festival de Parintins. Foto: Wikimedia Commons
O Brasil que não se ensina
Parintins é uma aula pública sobre o Brasil que não se ensina. Sobre as violências fundadoras que nunca viraram capítulo de livro didático. Sobre os povos indígenas que foram escravizados antes da escravidão negra. Sobre a Amazônia que foi explorada, dividida, catequizada e, ainda assim, não desapareceu.
Caprichoso e Garantido não estão disputando um prêmio. Estão disputando atenção. Querem ser ouvidos em um país que ainda hesita em reconhecer que sua maior riqueza cultural vem das margens, não do centro.
O que fazer com esse aprendizado?
Parintins não precisa da aprovação do Brasil para continuar existindo. Mas o Brasil precisa, urgentemente, aprender com Parintins. Precisamos rever o que chamamos de cultura nacional. Precisamos reconhecer que há outros modos de existir, de pensar e de produzir arte que não cabem na lógica do espetáculo branco e urbano.
Quem assiste ao Festival entende que não se trata apenas de uma festa. É uma forma de resistência. Uma forma de memória. Uma forma de dizer: estamos aqui. E não vamos desaparecer.
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