ICL Notícias
Conhecimento

Guerra de Canudos: quando o misticismo e a desigualdade social se misturaram no jovem Brasil República

Nos primeiros anos após a Proclamação da República, o Brasil viveu uma das maiores tragédias de sua história. Descubra o que foi a Guerra de Canudos e como a desigualdade social se tornou marca do conflito.
20/03/2025 | 13h32

Por Iago Filgueiras*

A Guerra de Canudos foi um dos mais marcantes conflitos sociais do início do período republicano no Brasil. Eternizado no livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, o movimento passou a fazer parte do imaginário coletivo e da história brasileira.

A guerra expôs as contradições e diferenças entre um Brasil governado por elites intelectuais e econômicas litorâneas — que desconheciam a realidade social do país — e uma população cujo direito à terra havia sido negado por anos e que, em meio à dura realidade da seca e da miséria do sertão no século 19, encontraram em Antônio Conselheiro a promessa de salvação.

Uma realidade marcada por terríveis condições de trabalho, pobreza, violência e a exploração de mão de obra por grandes latifundiários se chocou com o preconceito, discriminação e o caráter fortemente oligárquico dos primeiros governos republicanos.

Resumo sobre a Guerra de Canudos

  • Foi um dos principais conflitos armados do início do período republicano no Brasil.
  • Aconteceu na Bahia entre 1896 e 1897 e foi marcada pelo embate entre os seguidores de Antônio Conselheiro e o Exército Brasileiro.
    Antônio Conselheiro foi um peregrino que nasceu na então Província do Ceará e, durante suas andanças pela Bahia e pelo Sergipe, pregou contra a fome e a desigualdade, além de construir e restaurar igrejas, cemitérios e tanques d’água. Em 1896 fundou o Arraial de Canudos.
  • O Arraial chegou a atrair mais de 25 mil moradores que plantavam e criavam animais no local. Autossuficiente, na comunidade não havia propriedade privada e a comida era distribuída entre os habitantes.
  • O Arraial de Canudos sobreviveu a três ataques encabeçados por forças da elite local, pela igreja, estado da Bahia e União. No quarto ataque, milhares de soldados e o uso de canhões derrotaram a comunidade.
  • A Guerra de Canudos foi uma das maiores tragédias do Brasil e mais de 25 mil pessoas morreram. A cabeça de Antônio Conselheiro foi levada como “troféu” e usada para estudos clínicos.

O que foi a Guerra de Canudos

A Guerra de Canudos foi um conflito armado ocorrido no sertão baiano no período da recém inaugurada República do Brasil, poucos anos após a queda da monarquia. Entre 1896 e 1897, as forças do Exército Brasileiro e os moradores do Arraial de Canudos, seguidores de Antônio Conselheiro, se enfrentaram. O saldo do conflito foi uma das maiores tragédias brasileiras, com a morte de milhares de pessoas — a maioria civis.

Vista do Arraial de Canudos, onde se estima que houvesse mais de cinco mil casas. Foto: Flávio de Barros/Acervo Museu da República

Vista do Arraial de Canudos, onde se estima que houvesse mais de cinco mil casas. Foto: Flávio de Barros/Acervo Museu da República

Contexto histórico: desigualdades no Brasil do século 19

A Guerra de Canudos foi fortemente influenciada pelo contexto histórico brasileiro do final do século 19. Em 1888, com a abolição da escravidão, os ex-escravizados recém-libertos foram largados sem que houvesse qualquer política que permitisse o acesso à terra, educação ou trabalho digno.

Em 1889, um golpe militar encerrou a monarquia no Brasil, dando início a Primeira República, também conhecida como República Velha (1989-1930). O voto direto foi regulamentado apenas pela Constituição Republicana de 1891 e o primeiro presidente civil foi eleito em 1894. Antes disso, o poder era exercido por militares.

O quadro do pintor brasileiro Benedito Calixto, de 1893, retratou a Proclamação da República. Pintura: Benedito Calixto

O quadro do pintor brasileiro Benedito Calixto, de 1893, retratou a Proclamação da República. Pintura: Benedito Calixto

No período entre o final da monarquia e o início da República, o país enfrentava graves problemas econômicos que levaram a uma forte inflação, desvalorização da moeda e falência de diversas empresas. No nordeste brasileiro, além dos problemas econômicos e sociais já citados, as secas que afetavam a região, amplificadas pelo abandono do estado, tornavam a situação ainda mais dramática.

Nesse contexto, um andarilho que pregava uma vida em comunidade, a rejeição ao governo republicano e a desigualdade social atraiu diversos seguidores. Em suas andanças, Antônio Conselheiro construiu capelas, cemitérios, tanques d’água e ofertou conselhos a quem precisava ouvi-los.

A formação de Canudos

Devoto da Virgem Maria, Antônio Conselheiro iniciou sua peregrinação em meados da década de 1870 e chegou a passar por Sergipe e Bahia. De 1877 a 1879, a Grande Seca, uma das maiores tragédias climáticas da história do país, levou milhares de pessoas a migrarem em busca de melhores condições. Estima-se que, na época, 500 mil pessoas tenham morrido de fome e sede em oito províncias brasileiras.

Com o grande número de pessoas que caminhavam em busca de uma nova vida, o número de seguidores de Antônio Conselheiro aumentou ano após ano. Ao seu lado, ex-escravizados, indígenas e famílias inteiras mantinham vivo o sonho de uma realidade sem miséria.

Em 1893, as milhares de pessoas que compunham o grupo se estabeleceram em um antigo latifúndio improdutivo no povoado de Canudos, localizado à beira do rio Vaza-Barris, no nordeste baiano. Na comunidade, os “conselheiristas”, como eram conhecidos os seguidores de Antônio Conselheiro, construíram igrejas, um reservatório de água, uma escola e um depósito de armas.

Representação do Arraial Belo Monte. Imagem: Wikimedia Commons

Representação do Arraial Belo Monte. Imagem: Wikimedia Commons

O Arraial, rebatizado de Belo Monte, atraiu milhares de pessoas, que passaram a construir casas e fixar residência no local. O latifúndio improdutivo deu lugar a uma vila onde não havia propriedade privada da terra. No local, a criação de animais e a agricultura garantiram a autossuficiência e autonomia da comunidade, onde a comida era distribuída entre todos os moradores.

Em entrevista ao Canal Curta!, o pesquisador e doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, Pedro Lima Vasconcelos, enfatizou o papel de Belo Monte como “uma das experiências mais autênticas da organização popular brasileira”. Para ele, a salvação após a morte, pregada no Arraial, dependia também da luta cotidiana por mais igualdade.

Quem foi Antônio Conselheiro?

Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como Antônio Conselheiro, nasceu em 13 de março de 1830, no território onde hoje é a cidade de Quixeramobim, no Ceará. Seus pais pretendiam que ele seguisse carreira sacerdotal, o que, à época, representava uma possibilidade real de ascensão social, mas com a morte de sua mãe ainda enquanto ele era criança, o sonho foi deixado de lado.

Por volta dos 27 anos, após perder o pai, Antônio assumiu o armazém de propriedade da família e passou a sustentar suas quatro irmãs. Ele se casou e se mudou para várias cidades, chegando a se tornar professor e até rábula — uma pessoa que exercia advocacia sem formação, prática comum no Brasil Colônia, onde os cursos de direito eram ministrados apenas na Metrópole.

Antônio Conselheiro foi uma figura messiânica, líder do Arraial de Canudos. Imagem: reprodução

Antônio Conselheiro foi uma figura messiânica, líder do Arraial de Canudos. Imagem: reprodução

Em 1861, Antônio Vicente flagrou sua esposa em um caso extraconjugal e, envergonhado e humilhado, abandonou tudo e resolveu partir para o sertão. Com o tempo e através de seu conhecimento religioso, passou a divulgar o evangelho e ofertar conselhos durante suas caminhadas, o que lhe rendeu o nome Antônio Conselheiro.

Antes da fundação do Arraial de Canudos ele precisou enfrentar diversas situações. Em 1876, foi acusado de ter assassinado a própria mãe e a ex-companheira, mas foi inocentado. No mesmo ano, devido à seca, milhares de pessoas passaram a ver no andarilho uma figura profética, enviada por Deus para ajudá-los. Já em 1889, a abolição da escravidão levou a população recém liberta a procurar Conselheiro em busca de esperança.

Suas ações incomodaram clérigos e latifundiários. Para os padres, as pregações que ele fazia representavam uma ameaça à autoridade da Igreja. Já para os grandes proprietários de terra, a enorme quantidade de seguidores atraídos por Antônio Conselheiro reduzia a oferta de mão de obra barata para as fazendas.

Causas da Guerra de Canudos

As causas que levaram ao conflito de Canudos são diversas, mas é possível dizer que foram fortemente influenciadas por disputas sociais entre uma população que vivia na miséria e encontrou no Arraial uma oportunidade e o recém-inaugurado Brasil Republicano, que via em Canudos uma ameaça à sua existência e um polo de atraso.

Antônio Conselheiro era um opositor da república e defensor da monarquia, sobretudo, porque para ele o Estado e a Igreja não deveriam estar separados e isso era uma ofensa aos seus valores religiosos.

Embora as suas ideias possam ser interpretadas sob a ótica do fanatismo religioso, seus seguidores eram pessoas pobres, camponeses e ex-escravizados que enxergavam no modo de vida de Canudos uma alternativa para a miséria.

Além disso, a comunidade se opunha ao pagamento de impostos ao governo central e aos municípios. Para quem havia sido abandonado pelo estado e enxergava na institucionalidade apenas a repressão, o pagamento de tributos se tornava mais uma forma de violência.

Em seu artigo “Brasil: 500 anos de luta pela terra”, o professor e doutor em geografia pela USP, Bernardo Mançano Fernandes, citou a relação de Canudos com a luta pela terra. Para ele “a migração e a peregrinação, como esperança de chegar à terra liberta, são marcas da história do campesinato brasileiro”.

O conflito armado e as expedições militares

O Arraial de Canudos já enfrentava resistência da elite local, tanto de coronéis e latifundiários, quanto da Igreja Católica. Em 1896, pretendendo construir uma nova igreja na comunidade, Antônio Conselheiro encomendou uma remessa de madeira da cidade de Juazeiro, mas o material não foi entregue. Um boato de que a cidade seria invadida por conselheiristas para exigir o produto levou o governo local a pedir apoio militar ao governo baiano.

Esse evento pode ser considerado como o estopim para o início do conflito armado, marcado por uma série de quatro expedições militares.

Na quarta e última expedição, o Exército Brasileiro utilizou um canhão Withworth 32, que foi apelidado pelos conselheiristas de “matadeira”. Foto: Flávio de Barros/Acervo Museu da República

Na quarta e última expedição, o Exército Brasileiro utilizou um canhão Withworth 32, que foi apelidado pelos conselheiristas de “matadeira”. Foto: Flávio de Barros/Acervo Museu da República

A primeira expedição a Canudos

Em novembro de 1896, o tenente Manuel da Silva Pires Ferreira liderou a primeira expedição militar, composta por 113 oficiais das forças do estado da Bahia. Emboscados pelos conselheiristas, os militares fugiram e retornaram para Juazeiro.

Ao saber da história e do fracasso dos soldados, os intelectuais cariocas, desconhecendo o contexto da vida no sertão à época, passam a divulgar na imprensa que os conselheiristas eram conspiradores que queriam restaurar a monarquia e a escravidão do Brasil Império.

A segunda expedição a Canudos

No início de 1897, uma segunda expedição é enviada para tentar destruir o Arraial de Canudos, mas após dois dias de confronto, os 609 soldados enviados pelo governo baiano são derrotados e fogem.

A terceira expedição a Canudos

Em fevereiro de 1897, o governo federal organizou uma terceira expedição, composta por 1.300 soldados e liderada pelo coronel Antônio Moreira César, militar conhecido como “Corta-Cabeças” pelo histórico de violência e cuja carreira foi marcada pelo linchamento e assassinato de um jornalista no Rio de Janeiro.

Com uniformes inadequados, que não se camuflavam em meio à paisagem do sertão e não protegiam os soldados dos espinhos dos cactos, os militares foram derrotados e suas armas confiscadas pelos conselheiristas. Quase um mês depois do conflito, o coronel Moreira César morreu vítima de um ferimento da batalha.

A vitória dos sertanejos teve uma forte repercussão no Rio de Janeiro, então capital federal. Em entrevista ao portal da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), o professor Marcos Francisco Napolitano de Eugênio classificou Canudos como “uma experiência de rebeldia mais defensiva do que agressiva, mas o pânico se alastrou a partir da Capital”.

A quarta expedição a Canudos

A quarta expedição, liderada pelo general Artur Oscar de Andrade Guimarães, iniciou-se em junho de 1897 e foi marcada por um longo combate. Inicialmente com cinco mil soldados, após diversas baixas e solicitação de reforços, o contingente militar chegou a mais de oito mil oficiais.

Com a repercussão na região sudeste, diversos jornais enviaram representantes para cobrir o conflito, entre eles o então jornalista Euclides da Cunha, enviado pelo jornal O Estado de São Paulo. Mais tarde, a cobertura da guerra seria imortalizada no livro “Os Sertões”.

O Arraial de Canudos foi exterminado em outubro de 1897 e como resultado, além de mortes entre os militares, estima-se que 25 mil conselheiristas tenham morrido, muitos deles executados após serem capturados.

Para garantir a destruição total de Canudos, o vilarejo foi incendiado,o corpo de Antônio Conselheiro, morto um mês antes do término da guerra, foi desenterrado e sua cabeça enviada para estudos acadêmicos.

Após a quarta expedição a Canudos, o Arraial foi completamente destruído e sua população dizimada. Flávio de Barros/Acervo Museu da República

Após a quarta expedição a Canudos, o Arraial foi completamente destruído e sua população dizimada. Flávio de Barros/Acervo Museu da República

O conflito pela terra ainda existe

A Guerra de Canudos foi fortemente marcada pelo caráter místico e profético de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Mas, além disso, é importante compreender o conflito no contexto da luta pela terra, uma ferida aberta no Brasil até os dias de hoje.

Em 1893, os conselheiristas fundaram Canudos e promoveram uma comunidade marcada pela propriedade coletiva do solo e pela distribuição de alimentos. A ação expunha também a disputa com os grandes latifundiários, que concentravam propriedades e impunham uma lógica exploratória de trabalho aos sertanejos. Além disso, a falta de políticas que garantissem acesso à terra e direitos básicos para a população recém-liberta após a abolição da escravidão era evidente.

O Atlas do Espaço Rural, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2020, revelou que a desigualdade nos estabelecimentos agropecuários brasileiros ainda é uma marca do espaço rural. Entre os dirigentes de propriedades com até um hectare (dez mil m³), 57,9% se declaram como pardos. Nas terras entre mil a dez mil hectares, 74,7% são brancos e 23,8% pretos ou pardos.

O curioso é que 81% desses estabelecimentos têm até 50 hectares, mas eles representam 12,8% da área total destas terras no Brasil. No entanto, as propriedades com 2,5 mil hectares, 0,3% do total de estabelecimentos, representam 32,8% da área ocupada.

Conclusão

Longe de ser um episódio isolado da história brasileira, a Guerra de Canudos foi também um reflexo de desigualdades estruturais que ainda prevalecem em nossa sociedade. O massacre do Arraial expôs a violência do estado, impulsionado por grupos políticos que se opunham aos anseios dos mais pobres e marginalizados, uma realidade que ainda se repete em conflitos fundiários no Brasil contemporâneo.

A exclusão social ainda pode ser vista na concentração de terras no país, uma das mais desiguais do mundo. Atualmente, movimentos sociais que lutam pela terra são uma marca do território rural brasileiro, sendo fundamentais na luta por justiça social. Por isso, a história de Canudos nos convida a refletir sobre a importância de promover um país mais justo e plural.

Em um mundo marcado pela desigualdade, injustiça e crises sociais, pensar criticamente o Brasil é essencial. Se você quer aprender mais sobre aspectos fundamentais da história e política brasileira, conheça a pós-graduação ICL “Repensando o Brasil: Sociedade, política e história”, oferecida em parceria com a FESPSP. Essa é uma oportunidade para desenvolver uma visão crítica e engajada sobre os desafios do nosso tempo.

 

*Estagiário sob supervisão de Leila Cangussu

Relacionados

Carregar Comentários

Mais Lidas

Assine nossa newsletter
Receba nossos informativos diretamente em seu e-mail