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Estudar História é disputar o presente: por que isso importa agora

Estudar História é mais do que revisitar o passado. É entender as disputas do presente e agir com consciência sobre onde você pisa
09/05/2025 | 09h49
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Por Leila Cangussu*

Você vive em um país que evita lembrar. O presente é cheio de demandas imediatas, e o passado costuma ser tratado como algo irrelevante. Mas isso é uma ilusão. O que se entende como “agora” está atravessado por decisões tomadas antes, muitas vezes sob silêncio ou apagamento.

Quando você escolhe estudar História, começa a perceber o que sustenta os conflitos atuais. Violência, desigualdade, autoritarismo e racismo não são eventos isolados. São parte de processos históricos que continuam em funcionamento.

Estudar o passado não é uma curiosidade. É um posicionamento. A maneira como a História do Brasil é contada influencia o que se entende como legítimo hoje. Quem define os marcos do passado também interfere no que você considera aceitável no presente. A narrativa histórica não está fora do jogo político. Ela faz parte dele.

Por que estudar História é um ato político?

Quando você escolhe estudar História, não está só abrindo um livro. Está entrando num campo de disputa. Quem controla o que se lembra também organiza o que se repete. Os discursos oficiais, os monumentos, os livros didáticos e os currículos escolares são resultado de escolhas. Alguém decidiu o que mostrar e o que esconder.

A formação histórica ensina a fazer perguntas. A desconfiar do que parece consenso. A observar os silêncios e os atalhos. Por isso incomoda. Porque ajuda a revelar que algumas versões foram mantidas justamente para proteger quem já tem poder.

Num contexto em que negar o passado virou prática comum em discursos políticos, estudar História passa a ter uma função: desmontar versões distorcidas e mostrar que nada do que está aí veio do acaso. A História pode ser usada para justificar ou para alertar. A diferença está em quem conta. E por que escolheu contar daquele jeito.

O que a História estuda, de verdade

História não é sobre relembrar datas comemorativas. É sobre entender como as sociedades foram organizadas. Como o poder se acumulou em determinadas mãos. Como ele foi apresentado como legítimo. Como parte da população foi deixada de fora.

Estudar História é observar a formação de estruturas sociais, as disputas por terra, trabalho e reconhecimento. É analisar como certos grupos garantiram seus privilégios e como isso seguiu operando ao longo do tempo. A História não acontece em linha reta. Ela muda, se adapta, mas carrega marcas do que foi mantido e do que foi apagado.

O estudo da História exige olhar para os bastidores do que foi registrado como fato. Não existe versão neutra. Existe escolha, interesse, disputa. O que chega até você é o resultado de decisões sobre o que deveria ser lembrado e o que seria esquecido. Estudar História é investigar essas escolhas.

História do Brasil: uma disputa de memória

A história do Brasil que você aprendeu na escola provavelmente veio com lacunas. Faltaram nomes, contextos, contradições. Isso tem um motivo. A narrativa oficial foi construída para reforçar uma determinada ideia de país. Ela evitou temas incômodos, simplificou processos complexos e tirou o foco de quem foi afetado pelas decisões tomadas.

Revisar essa narrativa não é reescrever o passado. É examinar o que ficou de fora. É entender por que certos eventos são comemorados enquanto outros são ignorados. A independência, a abolição, a proclamação da República ou a redemocratização ganham outro significado quando você observa quem não teve voz nesses processos. E o que foi feito para que essa ausência parecesse natural.

Independência proclamada por quem mantinha escravizados

O processo de independência do Brasil é muitas vezes apresentado como um gesto de ruptura com Portugal. Mas, na prática, foi conduzido por um príncipe europeu, que mantinha escravizados e tinha vínculos diretos com a estrutura colonial. A decisão foi tomada por cima, com base em interesses econômicos de grandes proprietários e comerciantes.

A maior parte da população não teve participação. O modelo político e social seguiu quase o mesmo. O poder continuou nas mãos de quem já mandava: donos de terra, militares e figuras ligadas à Igreja. Para a maioria, pouca coisa mudou.

Analisar esse período de forma crítica ajuda a entender que o projeto de independência foi pensado para manter as hierarquias existentes, e não para romper com elas.

Criado por um artista italiano e criticado por apagar a história do povo, o Monumento da Independência foi alterado às pressas para incluir nomes brasileiros. Mesmo assim, manteve o protagonismo da elite. Um símbolo erguido sem o povo — e contra a memória popular. Foto: Alesp

Criado por um artista italiano e criticado por apagar a história do povo, o Monumento da Independência foi alterado às pressas para incluir nomes brasileiros. Mesmo assim, manteve o protagonismo da elite. Um símbolo erguido sem o povo — e contra a memória popular. Foto: Alesp

Abolição que deixou milhões à margem sem qualquer reparação

A abolição da escravidão, em 1888, é muitas vezes apresentada como um ato generoso da monarquia. Mas o fim formal da escravidão não veio acompanhado de qualquer política de reparação. Nenhuma medida foi adotada para garantir moradia, renda, acesso à terra ou educação aos libertos. O Estado os deixou à margem.

Milhões de pessoas passaram da condição de propriedade para a de mão de obra descartável. Sem direitos, sem reconhecimento, sem apoio. Isso não foi descuido. Foi escolha. A elite continuou controlando os meios de produção, e o racismo seguiu sendo ferramenta de exclusão. A desigualdade racial que existe hoje tem raízes nesse momento.

Não é um problema novo nem um erro de percurso. É consequência de uma estrutura montada para manter privilégios.

República implantada sem consulta popular

A República brasileira foi proclamada por militares em 1889, sem participação da população. Não houve debate público, nem qualquer processo de escuta. O império foi substituído por uma nova forma de governo, mas os grupos no poder continuaram os mesmos.

O discurso da modernização escondeu a permanência de práticas excludentes. O voto era restrito. As oligarquias dominaram a política. O novo regime não ampliou direitos — apenas reorganizou o controle. A lógica da escravidão foi reciclada sob outra linguagem: clientelismo, coronelismo, controle regional. A República não nasceu democrática. E isso ajuda a entender muitos dos problemas institucionais que ainda persistem.

Ditadura militar tratada como “revolução” por décadas

O golpe de 1964 foi, por muito tempo, tratado como “revolução”. Essa escolha de palavra não foi neutra. Foi parte de um esforço de legitimar a repressão. A ditadura impôs censura, perseguições, torturas e assassinatos. Mesmo assim, durante anos, o regime foi defendido em escolas, jornais e documentos oficiais como se tivesse “salvado o país”.

A ditadura foi a continuação de uma tradição de fechamento político e repressão a qualquer tentativa de organização popular. Para entender o período, não basta listar presidentes militares. É preciso olhar para a estrutura do Estado, para a atuação das polícias, para o papel das empresas e para o apoio externo. Essa memória ainda é disputada. E os efeitos do regime continuam presentes nas instituições.

Redemocratização sem responsabilização dos torturadores

A transição política nos anos 1980 trouxe eleições e uma nova Constituição, mas não enfrentou os crimes cometidos durante a ditadura. A Lei da Anistia, aprovada ainda em 1979, impediu qualquer responsabilização dos agentes do regime. Torturadores, mandantes e beneficiários seguiram impunes. Nenhum julgamento. Nenhuma reparação completa. Nenhuma mudança estrutural nas forças de segurança.

Esse silêncio teve efeitos duradouros. O autoritarismo permaneceu presente nas práticas policiais, no sistema de justiça e na forma como o Estado lida com protestos, periferias e populações racializadas. A violência institucional não foi interrompida. Apenas mudou de nome e cenário.

Chamar esse processo de “redemocratização” sem qualificar o que ficou de fora ajuda a entender por que a democracia brasileira ainda convive com tantas limitações. As bases do autoritarismo não foram desmontadas. Foram preservadas sob a promessa de estabilidade.

Por que estudar História incomoda tanto?

Estudar História incomoda porque muda a forma como você enxerga o que está à sua volta. Tira os fatos da zona de conforto. Aponta que muita coisa ensinada como verdade foi, na prática, escolha. Alguém decidiu o que seria contado e o que seria deixado de lado. Estudar História é lidar com essas decisões.

Porque você aprende a desconfiar

A formação histórica te ensina a fazer perguntas. A não aceitar versões prontas. A buscar fontes, comparar discursos, analisar os contextos. Isso atrapalha quem está acostumado a impor uma narrativa única.

A História mostra que nenhuma versão é neutra. Que toda explicação serve a algum interesse. Por isso, quem estuda costuma ser visto como alguém que “complica”. Mas o que está fazendo, na verdade, é recusar explicações fáceis.

Porque você entende quem você é

Estudar História ajuda a localizar seu lugar nas estruturas sociais. Entender como a classe a que você pertence foi construída. De onde vêm as desigualdades que te atingem. Qual foi o papel do Estado nisso tudo. Quando você reconhece essas dinâmicas, começa a perceber que o problema não está só em escolhas individuais.

A formação histórica também aproxima você de outras experiências. De lutas antigas que seguem atuais. De processos de resistência que continuam, mesmo quando não aparecem nos livros. Isso amplia seu repertório e te conecta com outras formas de ação.

Movimentos estudantis pedindo a revogação do Novo Ensino Médio em manifestação na Avenida Paulista, São Paulo, em 2023. | Foto: reprodução de Nova DemocraciaMovimentos estudantis pedindo a revogação do Novo Ensino Médio em manifestação na Avenida Paulista, São Paulo, em 2023. | Foto: reprodução de Nova Democracia

Formar-se em História é intervir no mundo

O campo da História não se limita à sala de aula. Quem se forma nessa área pode atuar em arquivos, museus, projetos culturais, produções audiovisuais, assessorias parlamentares, organizações sociais e coletivos de memória. A função é sempre a mesma: lidar com o que é contado, com o que foi esquecido, com o que precisa ser documentado.

O trabalho de quem estuda História é ajudar a construir referências. Isso vale tanto para o ensino quanto para a produção de conteúdo, o jornalismo, a curadoria de exposições ou a participação em políticas públicas. Onde há disputa de narrativa, existe espaço para atuação.

Conhecimento como prática de combate

  • Investigar documentos pouco acessados e propor novas leituras
  • Dar visibilidade a trajetórias de mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+
  • Atuar em comissões da verdade ou processos de justiça de transição
  • Apoiar a formação política em sindicatos e movimentos sociais
  • Participar de espaços educativos informais, como coletivos e ocupações
  • Organizar mapeamentos de memória em territórios urbanos e rurais
  • Criar exposições, acervos digitais e livros com base em fontes primárias

A atuação em História não precisa de palco. Ela acontece nos bastidores, nos arquivos, nos bairros, nas salas de aula, nos grupos de estudo, nos projetos locais. É ali que se cria vínculo com o território, com a memória e com as disputas atuais.

O papel da História diante do negacionismo

Negar o golpe de 1964, negar o racismo estrutural, negar a escravidão, negar o extermínio indígena ou a violência de Estado não são erros isolados. São escolhas. Estratégias de grupos que querem manter controle sobre o passado — e, por consequência, sobre o presente.

Esses discursos ganham força quando não há contraponto. É por isso que a formação histórica tem um papel importante. Ela ajuda a reconhecer padrões, identificar repetições e desmontar versões fabricadas. Quem estudou os regimes autoritários do século XX, por exemplo, consegue perceber quando o discurso político começa a repetir os mesmos métodos.

O negacionismo não surge de uma hora para outra. Ele se organiza em torno de interesses, se apoia em narrativas simplificadas, ocupa espaços institucionais e tenta substituir pesquisa por opinião. Quem estuda História pode não impedir isso sozinho, mas ajuda a travar esse tipo de disputa com argumentos, dados e contexto.

A História não serve apenas para preservar. Ela também expõe. E, às vezes, incomoda. Justamente por mostrar que quase tudo o que se apresenta como inevitável foi, em algum momento, uma decisão política. Estudar História é uma forma de lembrar disso.

O saber histórico não é neutro

Toda decisão metodológica tem impacto político. A pergunta que você escolhe fazer, a fonte que decide usar, o que entra no recorte e o que fica de fora — tudo isso define o tipo de história que será contada. A ideia de neutralidade muitas vezes serve para reforçar o que já está estabelecido. Assumir uma posição não desqualifica o trabalho. Deixa claro de onde se fala e com que intenção.

O que você pode fazer com esse conhecimento?

Com esse conhecimento, você pode criar conteúdo educativo em redes sociais, roteirizar documentários e podcasts sobre temas históricos, produzir materiais didáticos com outras abordagens, construir acervos comunitários em territórios periféricos, apoiar movimentos de memória e reparação, mapear violações de direitos e recuperar trajetórias de luta.

Também pode atuar em projetos de educação popular, escrever artigos que conectem o passado ao presente, desenvolver metodologias de ensino crítico em escolas públicas e organizar laboratórios de história oral com idosos e lideranças locais.

A História precisa sair do lugar do saber fechado. Circular em diferentes espaços. Funcionar como ferramenta útil para quem enfrenta as contradições do cotidiano. A formação histórica ganha sentido quando se conecta com as lutas concretas, com as desigualdades persistentes e com os debates que ainda estão em aberto.

Conclusão

Você vive num país que apaga. Um país que chama ataque de pacificação. Que transforma ditadores em patriotas. Que ensina o 13 de maio e silencia o 20 de novembro. Que homenageia torturadores com nomes de ruas. Estudar História é recusar esse projeto. É disputar o sentido das palavras. É recontar o que foi distorcido. E, mais do que isso, é fortalecer quem luta por justiça. Por reparação. Por memória.

A formação histórica te oferece ferramentas para enxergar o que está por trás dos discursos. Para entender a função social da mentira. Para reconhecer padrões de dominação. Para construir outros caminhos.

Estudar História é, hoje, um ato de coragem. Porque é um ato de posicionamento. E quem se posiciona, incomoda. Mas também move. Desloca. Faz pensar. E talvez, aos poucos, transforme.

 

*Leila Cangussu, da equipe ICL Notícias, é aluna da pós-graduação Repensando o Brasil: Sociedade, política e história, uma formação oferecida pelo ICL em parceria com a FESPSP. A segunda turma começa em 15 de maio de 2025. As inscrições estão abertas. Se você quer estudar História com foco crítico e compromisso com a realidade brasileira, não perca essa oportunidade!

 

 

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