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Saiba o que a meritocracia ignora: o esforço individual supera a desigualdade sistêmica?

Em um sistema marcado por desigualdades, o discurso do mérito mascara privilégios e ignora a realidade
10/06/2025 | 14h58
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Por Iago Filgueiras*

O patrimônio construído durante a vida, o reconhecimento social e um bom salário costumam ser associados à ideia de sucesso. Às vezes, vemos pessoas esforçadas e que batalharam muito para conquistar o que tem e podemos chegar a acreditar que somente o esforço próprio foi suficiente para o sucesso individual — a famosa ideia da meritocracia.

É claro que o esforço que se emprega em realizar algo importa, mas as condições que permitiram que esse esforço fosse feito vão muito além da nossa vontade: CEP, cor de pele, gênero e origem contam muito.

É possível que você já tenha ouvido frases como “todos temos as mesmas 24 horas” ou “quem quer, dá um jeito”. Essas ideias, repetidas quase como mantras, podem nos convencer de que todos largamos na mesma linha de partida e, nessa lógica, se tornar um “case de sucesso” se torna apenas uma questão de vontade. Mas a realidade é muito mais complexa.

A meritocracia não é apenas um conceito neutro sobre esforço e recompensa — é uma construção ideológica com implicações sociais profundas. Neste artigo, vamos mostrar como a meritocracia saiu de um livro de ficção científica para se tornar uma falácia usada para justificar privilégios. E, além disso, vamos te mostrar, com fatos, por que ela é uma farsa.

Afinal, o que é meritocracia?

A meritocracia é um termo que costuma ser usado por muitas pessoas, mas é possível que nem todas compreendam o significado da palavra. Você sabe o que é meritocracia? O termo deriva da palavra latina “meritum”, que significa mérito e da palavra grega “kratos”, que representa a ideia de poder ou governo. Ou seja, é um governo do mérito.

O conceito prevê que o sucesso individual é fruto exclusivo do esforço, talento e dedicação de cada pessoa. Da forma como é utilizada atualmente, a teoria propõe uma sociedade onde todos teriam as mesmas oportunidades e, portanto, o sucesso é uma questão de empenho.

Por mais sedutor que possa parecer, acreditar que o esforço individual determina todas as possibilidades de sucesso ignora a complexidade da sociedade. Foto: Shutterstock

Por mais sedutor que possa parecer, acreditar que o esforço individual determina todas as possibilidades de sucesso ignora a complexidade da sociedade. Foto: Shutterstock

Todos temos as mesmas oportunidades?

A ideia de que todos partem do mesmo ponto ignora o óbvio: nem todo mundo corre com o mesmo par de tênis (ou sequer tem calçados). O acesso à saúde, educação, trabalho, cultura, tempo livre e segurança varia conforme fatores como cor, gênero, território e classe. O mérito pode ter seu papel, mas ele só entra em campo quando há condições mínimas de jogo. E, convenhamos, tem gente que já nasce com o apito na mão.

Sete dados que provam que a meritocracia é uma mentira

Dizer que o sucesso depende só do esforço é simplista e até cruel com quem enfrenta barreiras sociais todos os dias para sobreviver. Ignorar a realidade torna a meritocracia uma mentira mais fácil de ser engolida como verdade.

A seguir, confira sete dados que mostram como ela é, na prática, uma farsa que esconde injustiças estruturais.

Índice de pobreza entre pretos e pardos é quase o dobro se comparado aos brancos

O Censo de 2022, produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), revelou que 43,5% da população brasileira se considera branca, 45,3% parda, 10,2% preta, 0,6% indígena e 0,4% amarela. No entanto, as disparidades econômicas entre esses grupos são enormes.

Em 2021, tendo como base a linha de pobreza monetária proposta pelo Banco Mundial, que considera a relação entre a renda diária e o poder de compra local, a proporção de pessoas pobres era de 18,6% entre os brancos e quase o dobro entre os pretos, com 34,5% e pardos, com 38,4%.

Alguns grupos são mais suscetíveis à exclusão digital

O acesso à internet é cada vez mais essencial, mas, ainda, profundamente desigual no Brasil. Segundo a pesquisa TIC Domicílios 2024, somente 1% das pessoas com ensino superior está desconectada. Porém, esse número salta para 60% entre quem é analfabeto ou só concluiu a educação infantil.

Nas classes D e E, 21% não têm acesso, contra apenas 2% na classe A. Em áreas urbanas, 10% vivem offline; nas zonas rurais, o índice chega a 18%. Nordeste e Centro-Oeste lideram em exclusão digital, com 13% da população desconectada. Entre indígenas, 18% ainda não têm acesso, revelando como a exclusão digital reflete outras desigualdades históricas.

Durante a pandemia da Covid-19, quando a educação a distância se tornou obrigatória para a continuidade do ensino, cerca de seis milhões de alunos não possuíam nenhum tipo de acesso à internet. Foto: Leo Malafaia/AFP

Durante a pandemia da Covid-19, quando a educação a distância se tornou obrigatória para a continuidade do ensino, cerca de seis milhões de alunos não possuíam nenhum tipo de acesso à internet. Foto: Leo Malafaia/AFP

O Brasil é o país que mais mata transsexuais

O dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra) apontou que, em 2024, o Brasil foi o país mais letal para pessoas trans. Segundo a pesquisa, a expectativa de vida média dessa população é de 35 anos, o que mostra que, se todos têm as mesmas 24h, para alguns, o número total de dias disponíveis é bem diferente.

Além disso, apenas 4% das pessoas trans e travestis estão no mercado formal de trabalho e somente 0,02% teve acesso ao ensino superior. Quando tentam ingressar em oportunidades de emprego, cerca de 80% das pessoas transsexuais já enfrentaram discriminação em alguma etapa de um processo seletivo, segundo levantamento da Agência AlmapBBDO e do Instituto On The Go.

A dupla jornada é uma realidade para a maioria das mulheres

Segundo dados da PNAD Contínua, publicada pelo IBGE em 2022, as mulheres dedicaram 9,6h a mais que os homens na realização de afazeres domésticos ou tarefas de cuidado. Em média, elas passaram 21,3h semanais nessas atividades, já os homens, 11,7h.

A pesquisa levou em consideração a participação de pessoas acima de 14 anos nessas tarefas, o que revela que as atividades de cuidado são atribuídas às mulheres mesmo antes da fase adulta.

Para algumas famílias, sair da extrema pobreza pode levar gerações

Historicamente, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. E além dos estudos para medir a desigualdade entre a população, há outro dado tão alarmante quanto: a persistência intergeracional de renda. Ou seja, esse conceito analisa o quanto as condições econômicas de uma família determinam a perspectiva dos filhos.

Segundo o estudo “O elevador social está quebrado? Como promover mobilidade social”, publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil tem a segunda pior mobilidade social entre os países analisados. Na prática, a pesquisa apontou que seriam necessárias cerca de nove gerações para que os descendentes dos brasileiros que representam os 10% mais pobres atinjam o nível de renda médio do país.

O estudo tem finalidade ilustrativa, mas mostra bem a dimensão e as dificuldades existentes para combater a desigualdade.

Segundo dados do IBGE divulgados em 2024, cerca de 59 milhões de brasileiros viviam com menos de R$ 22 ao dia. Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Segundo dados do IBGE divulgados em 2024, cerca de 59 milhões de brasileiros viviam com menos de R$ 22 ao dia. Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Muita terra na mão de pouca gente

Segundo o Atlas do Espaço Rural Brasileiro, publicado pelo IBGE, os estabelecimentos rurais brasileiros com mais de mil hectares representam apenas 0,9% do total de propriedades, porém, eles somam cerca de 47% do território produtivo disponível. Mas além disso, segundo o estudo, cerca de 74% desses estabelecimentos são geridos majoritariamente por pessoas brancas.

O desemprego afeta mais uns do que outros

Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), documento apresentado anualmente por empregadores ao Ministério do Trabalho e Emprego, no segundo trimestre de 2024 haviam 7,5 milhões de pessoas desocupadas e a taxa média de desemprego era de 6,9%. No entanto, para as mulheres pretas o número era de 10,1%.

Já o Relatório de Transparência Salarial apontou que em quase 43% dos estabelecimentos, as mulheres pretas ou pardas somavam menos de 10% do contingente de trabalhadores. Além disso, dos quase 102 milhões de trabalhadores empregados, quase 39% estavam na informalidade, mas entre os homens pretos a taxa era de 44% e entre as mulheres, 41%.

A origem da meritocracia: dos livros de ficção científica à realidade

Por incrível que pareça, o termo meritocracia surgiu como uma sátira. Em 1958, o sociólogo britânico Michael Young publicou o livro “The Rise of Meritocracy” (A Ascensão da Meritocracia, em português), onde imaginava um futuro distópico em que, no ano de 2033, o poder era concentrado nas mãos de pessoas que ascenderam socialmente apenas através do mérito medido com base na inteligência e no esforço.

A princípio pode parecer justo, mas a ideia de Young era justamente uma crítica. Ele pretendia alertar sobre os riscos de uma sociedade que só valoriza o desempenho individual medido por diplomas e testes. No livro, quem tinha mérito ascendia socialmente e os demais eram tratados como incapazes, preguiçosos ou descartáveis.

Assim, a desigualdade ganhava uma nova face: era legitimada socialmente. Afinal, quem estava por baixo merecia o lugar em que se encontrava.

No entanto, na década de 1980, o que era uma crítica virou sinônimo de algo positivo. A partir daí, o termo foi apropriado por empresários que defendiam que os melhores cargos deveriam ser ocupados pelas “melhores pessoas” e por políticos liberais. Essas pessoas se apoiam em uma suposta igualdade de oportunidades para negar políticas de reparação ou inclusão.

Meritocracia para quem?

Imagine acordar todo dia às 5h da manhã, preparar o café, vestir as crianças, deixá-las na escola, pegar um ônibus lotado, depois um trem, e só então começar a jornada de trabalho. Difícil, não? Agora imagine fazer esse trajeto sabendo que, se sua situação econômica não é boa, segundo alguns “falta esforço”.

A distância entre casa e trabalho, o tempo disponível para descanso ou estudo, a rede de apoio — ou a ausência dela — são apenas alguns dos fatores que moldam as oportunidades de cada pessoa. E mais do que isso: todos eles são profundamente influenciados por marcadores sociais como raça, classe, gênero, território, orientação sexual. Muitas vezes, atuando de forma combinada.

Em grandes cidades, com um transporte público aquém das necessidades da população, quem pode ter um carro não enfrenta as mesmas filas. Quem mora perto do trabalho já começa o dia em vantagem. Quem nunca precisou escolher entre pagar a internet ou comprar gás não entende o que significa esforço em contextos desiguais.

Com 147 mil habitantes, o distrito paulistano de Cachoeirinha possui uma vaga de emprego a cada dez pessoas economicamente ativas. Já em Pinheiros, bairro nobre, são 20 vagas. Foto: Victor Moriyama/Getty Images

Com 147 mil habitantes, o distrito paulistano de Cachoeirinha possui uma vaga de emprego a cada dez pessoas economicamente ativas. Já em Pinheiros, bairro nobre, são 20 vagas. Foto: Victor Moriyama/Getty Images

A meritocracia parte da premissa de igualdade, mas enquanto alguns começam próximos à linha de chegada, outros, por mais que corram, não conseguem nem mesmo alcançar o ponto de partida.

Reconhecer isso não é “passar pano” e nem invalidar o esforço individual, é enxergar a realidade como ela é: complexa, desigual e estruturalmente viciada. Sem justiça social, a meritocracia se torna um sistema de privilégios disfarçado.

À primeira vista, o discurso meritocrático pode seduzir. Mas não se engane, embora gostemos de acreditar que chegamos até onde chegamos somente por mérito próprio, muitos fatores influenciam essa jornada.

Quer entender mais sobre o assunto? Assine agora a plataforma do ICL, acesse o curso “Combatendo as Armadilhas da Meritocracia” e tenha tudo na ponta da língua para combater a desinformação e o discurso de quem acha que tudo é “mimimi”.

* Estagiário sob supervisão de Leila Cangussu

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