Em 5 de outubro de 1988, após 21 anos de uma ditadura civil-militar, o Brasil celebrava a promulgação de sua nova Carta Magna, carinhosamente apelidada de “Constituição Cidadã”. Fruto de um processo popular e combativo, o texto constitucional representou um marco na história nacional – um dos primeiros passos na redemocratização do país. O texto foi aprovado garantindo direitos e liberdades fundamentais e estabelecendo as bases para um Estado Democrático de Direito.
Trinta e cinco anos depois, a Constituição de 1988 sobrevive. Seus artigos e parágrafos continuam orientando a sociedade e a justiça brasileira, guiando a luta por justiça social, igualdade e democracia mesmo em um contexto marcado por desafios, retrocessos e tensões políticas.
O fim da ditadura e a Assembleia Constituinte
Em 1986, após as primeiras eleições diretas para presidente, o Brasil começa a respirar aliviado. A Assembleia Nacional Constituinte passa a se reunir para reerguer, sobre os escombros do autoritarismo, as bases legais de um novo país. Mais do que um ordenamento jurídico, a Constituição que surgiria carregava o peso e o sonho de uma nação que ansiava por reinventar seu próprio destino e deixar o passado sangrento para trás.
A tarefa, porém, não era simples. Os constituintes se depararam com a herança nefasta da ditadura: desigualdade social acachapante, direitos políticos em frangalhos e uma estrutura de poder ainda refém dos privilégios de elites. A nuvem escura do passado autoritário ainda não tinha se dissipado totalmente enquanto diferentes projetos de nação se confrontavam nos corredores do Congresso Nacional.
Mas a Assembleia Constituinte rompeu com a lógica excludente que marcou o passado e abriu suas portas para a participação popular. Movimentos sociais, sindicatos e organizações da sociedade civil levaram suas demandas e sonhos para o processo constituinte. No total, foram 122 sugestões apresentadas, das quais 83 cumpriam os requisitos regimentais e foram consideradas na elaboração do ordenamento jurídico do país.
Lideranças como Ulysses Guimarães, conduzindo os trabalhos com pulso firme e sensibilidade política, e figuras como Lula, Brizola e Benedita da Silva, ecoando as vozes das ruas, marcaram época e consolidaram sua trajetória política até que, em outubro de 1988, nascia a Constituição Federal.
O artigo 5 da Constituição Federal de 1988
No texto debatido por quase dois anos, um dos primeiros artigos estabelece: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Esse artigo, tratando todos os brasileiros da mesmo quanto a gênero, raça e etnia, é considerado um marco contra a discriminação em vários aspectos e a favor de diversos direitos individuais.
Historicamente, as mulheres tinham menos liberdades do que os homens – como igualdade salarial, a posse de terras e a licença maternidade. O chamado Lobby do Batom garantiu uma série de conquistas para as mulheres no texto de 1988, como a confirmação da Lei do Divórcio de 1977, licença maternidade de 120 dias e mecanismos de proteção contra a violência doméstica.
Após décadas da ditadura civil-militar, a Constituição Brasileira tornava ilegal a tortura e os tratamentos desumanos ou degradantes, ao mesmo tempo em que garantia a liberdade de expressão, o direito de resposta e as liberdades de consciência e crença.
Os avanços sociais da Carta Magna
Nascida da luta contra a opressão e a desigualdade durante e após o fim da ditadura, a Constituição de 1988 trouxe, do plano de governo de Jânio Quadros e de outros movimentos de justiça social, uma série de avanços progressistas.
O direito à vida, à liberdade, à igualdade, à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho e à previdência social, entre outros, foram elevados à categoria de direitos fundamentais, rompendo com o passado autoritário e elitista e estabelecendo um novo pacto social para todos os brasileiros.
A Carta Magna também consolidou a democracia participativa, ampliando a participação popular nos processos decisórios por meio de instrumentos como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de lei. A defesa do meio ambiente, dos direitos dos povos indígenas e a garantia da liberdade de imprensa também foram marcos importantes para o Brasil e como exemplo para o mundo.
A Reforma Agrária e a distribuição de terras no Brasil ganharam uma aliada na Constituição Federal da Nova República. Apesar do Estatuto da Terra ser de 1964 – antes do golpe – o texto de 1988 reconhece a função social da propriedade (quando o Estado pode sobrepor o interesse coletivo pela justiça social ao direito individual pela posse) e o direito à terra para quem nela trabalha.
Sim, há pontos do texto em que falta clareza, dificultando a implementação de políticas públicas até os dias de hoje e permitindo que movimentos sociais sejam criminalizados, mantendo a concentração fundiária no país. Mas, inegavelmente, foi um avanço para um país mais justo.
Desafios da Constituição de 1988
Apesar de seus avanços e conquistas, a Constituição Cidadã enfrenta, desde a relatoria de seus primeiros artigos, uma série de desafios que colocam em risco sua existência e seu legado – além da própria democracia brasileira.
O agravamento de discursos autoritários e de ataques às instituições democráticas representa uma ameaça constante à ordem constitucional. Com a crescente polarização política, alimentada pela desinformação e por discursos de ódio, diminuímos as possibilidades de diálogo e tolerância, ferramentas essenciais para a manutenção da democracia. Os ataques terroristas de 8 de janeiro de 2023 em Brasília são prova viva de que não podemos esquecer nosso passado, sob o risco de repeti-lo.
E, assim como o crescimento da extrema direita e suas práticas antidemocráticas, a agenda neoliberal – implementada com mais força por meio de emendas constitucionais e reformas dos últimos governos – tem promovido o desmonte do Estado Social. Desde o impeachment da ex-presidente Dilma, vimos o esfacelamento de diversos direitos trabalhistas e previdenciários, além de frequentes ameaças ao Sistema Único de Saúde (SUS) e à educação pública.
Em 2020, por exemplo, coube à oposição ao então presidente Jair Bolsonaro aprovar o auxílio emergencial de R$600, e não os R$200 pensados inicialmente – algo que submeteria milhares de brasileiros a tratamentos degradantes.
Tivemos avanços sociais desde 1986, isso é indiscutível, mas ainda convivemos com níveis vergonhosos de desigualdade social, racial e de gênero e toda a violência causada por essa discriminação tão velada e ao mesmo tempo tão visível.
A árdua conquista de retirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU, de 2014 a 2018, foi perdida com o aumento da pobreza e crescimento da insegurança alimentar e nutricional. Em 2023, primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula, conseguimos reduzir em 83% a insegurança alimentar severa – passando de 8% para 1,2% da população total. Tudo isso reforça a necessidade de se aprofundar a luta pela efetivação dos direitos e garantias constitucionais.
Brasil, um país de todos?
Mesmo que a igualdade seja um direito assegurado pela Constituição, a representatividade da população nas esferas de poder ainda é um problema no Brasil. O acesso aos cargos legislativos ainda é majoritariamente masculino e branco, contrariando as estatísticas populacionais.
A educação se mantém desigual entre instituições públicas e privadas, da pré-escola ao ensino superior. E a segurança pública protege pessoas de pele branca enquanto discrimina e agride quem tem a pele negra, uma herança dos 300 anos de escravidão no Brasil.
Para ajudar, a descrença na classe política e nos partidos é agravada quase que diariamente por escândalos de corrupção. Os ditos representantes do povo no Congresso frequentemente formulam leis que dizem apenas sobre seus próprios interesses, e cabe às minorias organizadas recorrer aos outros Poderes, como o Supremo Tribunal Federal, para garantir que a Constituição seja cumprida.
A combinação de todos esses fatores contribui, ainda mais, para o distanciamento entre a população e seus representantes. Isso sem contar a herança de todos os mecanismos ideológicos pensados para não despertar o interesse do povo brasileiro nas questões políticas.
É fundamental combater a desinformação e promover um debate público plural, baseado em evidências e respeito às diferenças de formas de pensar. A educação política e o fortalecimento da mídia independente são essenciais para garantir o acesso à informação de qualidade e o exercício da cidadania. Valorizar o jornalismo e a educação é um dos primeiros passos para consolidar uma participação democrática verdadeira na nossa sociedade.
Durante a ditadura chilena, por exemplo, reportagens compradas em veículos da grande imprensa brasileira serviram para conquistar a opinião pública quanto ao ditador Augusto Pinochet. Quando os documentos comprovando isso vieram à tona, reacenderam o debate sobre a importância da mídia independente.
Além disso, é urgente resistir ao desmonte do Estado Social e lutar pela ampliação dos direitos sociais, com investimentos robustos em saúde, educação, moradia e políticas de combate à pobreza e à desigualdade. Vale lembrar que a Constituição de 1988 não foi escrita na pedra, e sim no papel. Isso faz dela um instrumento vivo que deve ser atualizado frequentemente, seguindo as demandas da sociedade.
No entanto, reformas constitucionais devem ser debatidas de forma ampla e democrática, com a participação popular, sempre visando o aprimoramento da democracia e a garantia dos direitos fundamentais. Nesse contexto, fica evidente a necessidade de estimular a participação cidadã nos espaços de poder, como conselhos de políticas públicas e audiências públicas. A reforma política, com o objetivo de garantir um sistema eleitoral mais justo e representativo, também se faz fundamental.
A luta pela democracia é um processo contínuo
A Constituição de 1988, apesar das inúmeras tentativas de desconstrução, continua sendo um instrumento poderoso nas mãos daqueles que lutam por um Brasil mais justo, democrático e igualitário. Cabe a todas as brasileiras e aos brasileiros, imbuídos do espírito do constituinte e democrático, defender seu legado.
Essa defesa se traduz na luta pela sua efetivação e construir o futuro que a Constituição sonhou para o Brasil. A chama da esperança acesa em 1988 precisa ser mantida viva diariamente para que os sonhos de democracia e justiça social se tornem realidade para todos os brasileiros.
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