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O Estado de Direito e a Constituição Federal de 1988

Descubra como a Constituição de 1988 transformou o Brasil em um Estado Democrático de Direito e continua guiando a luta por justiça e igualdade.
30/07/2024 | 13h24

Em 5 de outubro de 1988, após 21 anos de uma ditadura civil-militar, o Brasil celebrava a promulgação de sua nova Carta Magna, carinhosamente apelidada de “Constituição Cidadã”. Fruto de um processo popular e combativo, o texto constitucional representou um marco na história nacional – um dos primeiros passos na redemocratização do país. O texto foi aprovado garantindo direitos e liberdades fundamentais e estabelecendo as bases para um Estado Democrático de Direito.

Trinta e cinco anos depois, a Constituição de 1988 sobrevive. Seus artigos e parágrafos continuam orientando a sociedade e a justiça brasileira, guiando a luta por justiça social, igualdade e democracia mesmo em um contexto marcado por desafios, retrocessos e tensões políticas.

O fim da ditadura e a Assembleia Constituinte

Em 1986, após as primeiras eleições diretas para presidente, o Brasil começa a respirar aliviado. A Assembleia Nacional Constituinte passa a se reunir para reerguer, sobre os escombros do autoritarismo, as bases legais de um novo país. Mais do que um ordenamento jurídico, a Constituição que surgiria carregava o peso e o sonho de uma nação que ansiava por reinventar seu próprio destino e deixar o passado sangrento para trás.

A tarefa, porém, não era simples. Os constituintes se depararam com a herança nefasta da ditadura: desigualdade social acachapante, direitos políticos em frangalhos e uma estrutura de poder ainda refém dos privilégios de elites. A nuvem escura do passado autoritário ainda não tinha se dissipado totalmente enquanto diferentes projetos de nação se confrontavam nos corredores do Congresso Nacional.

Esplanada foi palco de manifestações populares por avanços sociais na Constituição. Crédito: ABR

Esplanada foi palco de manifestações populares por avanços sociais na Constituição. Crédito: ABR

Mas a Assembleia Constituinte rompeu com a lógica excludente que marcou o passado e abriu suas portas para a participação popular. Movimentos sociais, sindicatos e organizações da sociedade civil levaram suas demandas e sonhos para o processo constituinte. No total, foram 122 sugestões apresentadas, das quais 83 cumpriam os requisitos regimentais e foram consideradas na elaboração do ordenamento jurídico do país.

Lideranças como Ulysses Guimarães, conduzindo os trabalhos com pulso firme e sensibilidade política, e figuras como Lula, Brizola e Benedita da Silva, ecoando as vozes das ruas, marcaram época e consolidaram sua trajetória política até que, em outubro de 1988, nascia a Constituição Federal.

O artigo 5 da Constituição Federal de 1988

No texto debatido por quase dois anos, um dos primeiros artigos estabelece: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Esse artigo, tratando todos os brasileiros da mesmo quanto a gênero, raça e etnia, é considerado um marco contra a discriminação em vários aspectos e a favor de diversos direitos individuais.

Historicamente, as mulheres tinham menos liberdades do que os homens – como igualdade salarial, a posse de terras e a licença maternidade. O chamado Lobby do Batom garantiu uma série de conquistas para as mulheres no texto de 1988, como a confirmação da Lei do Divórcio de 1977, licença maternidade de 120 dias e mecanismos de proteção contra a violência doméstica.

O Lobby do Batom no Congresso Nacional. Crédito: Agência Senado

O Lobby do Batom no Congresso Nacional. Crédito: Agência Senado

Após décadas da ditadura civil-militar, a Constituição Brasileira tornava ilegal a tortura e os tratamentos desumanos ou degradantes, ao mesmo tempo em que garantia a liberdade de expressão, o direito de resposta e as liberdades de consciência e crença.

Os avanços sociais da Carta Magna

Nascida da luta contra a opressão e a desigualdade durante e após o fim da ditadura, a Constituição de 1988 trouxe, do plano de governo de Jânio Quadros e de outros movimentos de justiça social, uma série de avanços progressistas.

O direito à vida, à liberdade, à igualdade, à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho e à previdência social, entre outros, foram elevados à categoria de direitos fundamentais, rompendo com o passado autoritário e elitista e estabelecendo um novo pacto social para todos os brasileiros.

Representantes dos povos indígenas protestam no Congresso pela garantia de direitos na Assembleia Constituinte. Crédito: Agência Senado

Representantes dos povos indígenas protestam no Congresso pela garantia de direitos na Assembleia Constituinte. Crédito: Agência Senado

A Carta Magna também consolidou a democracia participativa, ampliando a participação popular nos processos decisórios por meio de instrumentos como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de lei. A defesa do meio ambiente, dos direitos dos povos indígenas e a garantia da liberdade de imprensa também foram marcos importantes  para o Brasil e como exemplo para o mundo.

A Reforma Agrária e a distribuição de terras no Brasil ganharam uma aliada na Constituição Federal da Nova República. Apesar do Estatuto da Terra ser de 1964 – antes do golpe – o texto de 1988 reconhece a função social da propriedade (quando o Estado pode sobrepor o interesse coletivo pela justiça social ao direito individual pela posse) e o direito à terra para quem nela trabalha.

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra protesta pela retomada das demarcações de terra para a Reforma Agrária. Crédito: Wilson Dias/ Agência Brasil

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra protesta pela retomada das demarcações de terra para a Reforma Agrária. Crédito: Wilson Dias/ Agência Brasil

Sim, há pontos do texto em que falta clareza, dificultando a implementação de políticas públicas até os dias de hoje e permitindo que movimentos sociais sejam criminalizados, mantendo a concentração fundiária no país. Mas, inegavelmente, foi um avanço para um país mais justo.

Desafios da Constituição de 1988

Apesar de seus avanços e conquistas, a Constituição Cidadã enfrenta, desde a relatoria de seus primeiros artigos, uma série de desafios que colocam em risco sua existência e seu legado – além da própria democracia brasileira.

O agravamento de discursos autoritários e de ataques às instituições democráticas representa uma ameaça constante à ordem constitucional. Com a crescente polarização política, alimentada pela desinformação e por discursos de ódio, diminuímos as possibilidades de diálogo e tolerância, ferramentas essenciais para a manutenção da democracia. Os ataques terroristas de 8 de janeiro de 2023 em Brasília são prova viva de que não podemos esquecer nosso passado, sob o risco de repeti-lo.

Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro se reuniram em frente a Quartéis do Exército para protestar contra o resultado das eleições e pedir pela Intervenção das Forças Armadas. Crédito: Folha de S. Paulo

Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro se reuniram em frente a Quartéis do Exército para protestar contra o resultado das eleições e pedir pela Intervenção das Forças Armadas. Crédito: Folha de S. Paulo

E, assim como o crescimento da extrema direita e suas práticas antidemocráticas, a agenda neoliberal – implementada com mais força por meio de emendas constitucionais e reformas dos últimos governos – tem promovido o desmonte do Estado Social. Desde o impeachment da ex-presidente Dilma, vimos o esfacelamento de diversos direitos trabalhistas e previdenciários, além de frequentes ameaças ao Sistema Único de Saúde (SUS) e à educação pública.

Em 2020, por exemplo, coube à oposição ao então presidente Jair Bolsonaro aprovar o auxílio emergencial de R$600, e não os R$200 pensados inicialmente – algo que submeteria milhares de brasileiros a tratamentos degradantes.

Tivemos avanços sociais desde 1986, isso é indiscutível, mas ainda convivemos com níveis vergonhosos de desigualdade social, racial e de gênero e toda a violência causada por essa discriminação tão velada e ao mesmo tempo tão visível.

Prédio no Morumbi com piscinas na varanda contrasta com a favela de Paraisópolis, em São Paulo. Imagem povoou livros didáticos na década de 1990 como símbolo da desigualdade. Crédito: Ucondo

Prédio no Morumbi com piscinas na varanda contrasta com a favela de Paraisópolis, em São Paulo. Imagem povoou livros didáticos na década de 1990 como símbolo da desigualdade. Crédito: Ucondo

A árdua conquista de retirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU, de 2014 a 2018, foi perdida com o aumento da pobreza e crescimento da insegurança alimentar e nutricional. Em 2023, primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula, conseguimos reduzir em 83% a insegurança alimentar severa – passando de 8% para 1,2% da população total. Tudo isso reforça a necessidade de se aprofundar a luta pela efetivação dos direitos e garantias constitucionais.

Brasil, um país de todos?

Mesmo que a igualdade seja um direito assegurado pela Constituição, a representatividade da população nas esferas de poder ainda é um problema no Brasil. O acesso aos cargos legislativos ainda é majoritariamente masculino e branco, contrariando as estatísticas populacionais.

A educação se mantém desigual entre instituições públicas e privadas, da pré-escola ao ensino superior. E a segurança pública protege pessoas de pele branca enquanto discrimina e agride quem tem a pele negra, uma herança dos 300 anos de escravidão no Brasil.

Para ajudar, a descrença na classe política e nos partidos é agravada quase que diariamente por escândalos de corrupção. Os ditos representantes do povo no Congresso frequentemente formulam leis que dizem apenas sobre seus próprios interesses, e cabe às minorias organizadas recorrer aos outros Poderes, como o Supremo Tribunal Federal, para garantir que a Constituição seja cumprida.

Mesmo após a decisão do STF sobre o marco temporal, o Congresso decidiu pautar um Projeto de Lei que beneficia a bancada ruralista. Crédito: Mídia Ninja

Mesmo após a decisão do STF sobre o marco temporal, o Congresso decidiu pautar um Projeto de Lei que beneficia a bancada ruralista. Crédito: Mídia Ninja

A combinação de todos esses fatores contribui, ainda mais, para o distanciamento entre a população e seus representantes. Isso sem contar a herança de todos os mecanismos ideológicos pensados para não despertar o interesse do povo brasileiro nas questões políticas.

É fundamental combater a desinformação e promover um debate público plural, baseado em evidências e respeito às diferenças de formas de pensar. A educação política e o fortalecimento da mídia independente são essenciais para garantir o acesso à informação de qualidade e o exercício da cidadania. Valorizar o jornalismo e a educação é um dos primeiros passos para consolidar uma participação democrática verdadeira na nossa sociedade.

Durante a ditadura chilena, por exemplo, reportagens compradas em veículos da grande imprensa brasileira serviram para conquistar a opinião pública quanto ao ditador Augusto Pinochet. Quando os documentos comprovando isso vieram à tona, reacenderam o debate sobre a importância da mídia independente.

Além disso, é urgente resistir ao desmonte do Estado Social e lutar pela ampliação dos direitos sociais, com investimentos robustos em saúde, educação, moradia e políticas de combate à pobreza e à desigualdade. Vale lembrar que a Constituição de 1988 não foi escrita na pedra, e sim no papel. Isso faz dela um instrumento vivo que deve ser atualizado frequentemente, seguindo as demandas da sociedade.

No entanto, reformas constitucionais devem ser debatidas de forma ampla e democrática, com a participação popular, sempre visando o aprimoramento da democracia e a garantia dos direitos fundamentais. Nesse contexto, fica evidente a necessidade de estimular a participação cidadã nos espaços de poder, como conselhos de políticas públicas e audiências públicas. A reforma política, com o objetivo de garantir um sistema eleitoral mais justo e representativo, também se faz fundamental.

A luta pela democracia é um processo contínuo

A Constituição de 1988, apesar das inúmeras tentativas de desconstrução, continua sendo um instrumento poderoso nas mãos daqueles que lutam por um Brasil mais justo, democrático e igualitário. Cabe a todas as brasileiras e aos brasileiros, imbuídos do espírito do constituinte e democrático, defender seu legado.

Essa defesa se traduz na luta pela sua efetivação e construir o futuro que a Constituição sonhou para o Brasil. A chama da esperança acesa em 1988 precisa ser mantida viva diariamente para que os sonhos de democracia e justiça social se tornem realidade para todos os brasileiros.

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